Wálter Maierovitch
Fonte: Carta Capital
A Justiça brasileira e seus magistrados nunca alcançaram, após a ditadura, tamanho descrédito. E isso representa um enorme mal para um Estado que busca ser igualitário e cumpridor do contrato social, ou melhor, de suas metas constitucionais fundamentais. Nos Estados Democráticos de Direito, Brasil incluído, é vedada como regra a Justiça privada, de mão própria. Assim, distribuir Justiça tornou-se, no devido processo, monopólio do Estado e uma de suas funções essenciais. E são fornecidos aos seus órgãos garantias para atuar com imparcialidade, sem prejuízo de obrigações e decência estabelecidas em lei orgânica para magistrados. Formalmente, temos esse arcabouço, mas ele é ineficaz.
No Brasil republicano, a Justiça sempre foi morosa e até a Constituição de 1988 formada por magistrados encastelados e distantes do dia a dia dos jurisdicionados. Depois, abriu-se com a intenção de tornar-se “cidadã”, mas repetiu vícios, fortaleceu o corporativismo, qualificou-se a injustiça pelo atraso na solução dos conflitos e, no âmbito criminal, virou o modelo ideal para manter impunes poderosos e potentes.
Cezar Peluso nega suspensão da liminar que limitra poderes do CNJ. Foto: Wilson Dias/ABr
Nossa Justiça, como um todo e a incluir o comportamento não só funcional dos seus magistrados, não passa ao cidadão comum a imagem de imparcialidade. O elenco de decisões traumáticas e das ações prepotentes e insensíveis de magistrados é incontável.
Dias atrás, magistrados federais, da Justiça Federal comum e da Justiça do Trabalho, promoveram greve, com denegação de Justiça pelo período de interrupção, para pressionar por reajustes salariais. Os serventuários da Justiça, pelos seus órgãos classistas, também organizaram um movimento paredista, até por ganharem muito menos que os magistrados.
Os juízes, para justificar a greve, lembram da garantia estabelecida na Constituição da República relativa à irredutibilidade dos vencimentos. Tal pressão sobre os dois outros poderes deve-se ao fato de o ministro Cezar Peluso, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ter enviado ao Legislativo um anteprojeto de lei sobre a revisão dos vencimentos da magistratura, a saltar de brutos 26.723 reais para 30.675.
A novidade do projeto de Peluso prende-se à possibilidade futura – por meio de ato administrativo do próprio Judiciário – de reajustes automáticos para compor perdas inflacionárias. Com isso, pretende-se ressuscitar em prol de todos os magistrados, da ativa e aposentados, o “gatilho salarial” de triste memória. Em tempos bicudos, com desemprego e crises econômicas com risco de efeito “dominó” na Europa e EUA, e com o governo Dilma Rousseff empenhado em erradicar a miséria e evitar que a economia mingue, os magistrados demonstram ausência absoluta de senso de oportunidade e de conveniência.
Ao mesmo tempo, o Supremo resolveu adiar a solução diante de um quadro de indignação nacional, a ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Associação Nacional de Magistrados (ANM) para limitar a atuação disciplinar e fiscalizadora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A associação foi presidida pelo ministro Paulo Medina, sancionado, sob acusação de venda de decisões, com a pena de aposentadoria compulsória por votação unânime do CNJ. Antes do adiamento do julgamento, a mídia noticiava que a maioria dos ministros do STF se inclinava a acolher a representação da ANM, tudo depois de uma grotesca censura à ministra Eliana Calmon, que acumula o cargo de corregedora do CNJ, por ter dito algumas verdades sobre magistrados que gravemente cometem falhas disciplinares, com desvio de conduta.
Na mencionada ação direta de inconstitucionalidade, a associação de magistrados quer que a atuação da Corregedoria do CNJ, ainda que graves as suspeitas contra juízes, seja permitida apenas quando as corregedorias dos tribunais não instaurem procedimentos. Como todas as togas e os seus babados sabem, o CNJ nasceu pela omissão de muitas das corregedorias, com algumas a trocar arquivamentos por formulação de pedidos de aposentadoria, com vencimentos garantidos. No caso de vingar a ação, teremos, entre outros casos, a anulação do processo disciplinar de Paulo Medina.
O Brasil continua com o vício bananeiro de contemplar graves falhas funcionais com a sanção de aposentadoria compulsória. E deixa para o sempre demorado processo criminal (que muitas vezes cai na prescrição e se extingue a punibilidade do réu) a possibilidade de se chegar a uma condenação com pena pesada, a perda da função pública e da remuneração. Para a ministra Eliana Calmon tal sanção é um prêmio ao magistrado que perpetrou grave desvio de conduta. Assim não entende o ministro Gilmar Mendes. Mais ainda: nos últimos 40 anos o STF não havia condenado um único político à pena de prisão em regime fechado. A primeira condenação, depois de quatro décadas, foi a do deputado federal José Fuscaldi Cesílio (PTB-GO), apelidado de Tatico. Acusado de sonegação fiscal, apropriação indébita de contribuição previdenciária dos empregados do curtume mantido em sociedade com a sua filha, Tatico, apesar da gravidade dos crimes e da elevada pena de sete anos, recebeu o regime semi-aberto. Dessa forma, poderá trabalhar no curtume durante o dia e à noite dormir em instituto penal. Cumprido um sexto da pena, poderá receber o benefício da prisão albergue domiciliar e, destarte, dormirá em casa, não será vigiado.
O ano de 2011 só surpreendeu aos que ainda acham que Têmis, a deusa da Justiça, é cega. Nos escritos mitológicos, frise-se, Têmis nunca foi apresentada como cega. Foi na Alemanha que os operadores do Direito, para dar ênfase à imparcialidade, começaram a descrevê-Ia como portadora de uma venda nos olhos. Mas aqui ela enxerga bem quando lhe convém.
Vejamos o caso de Daniel Dantas. O banqueiro conseguiu do Superior Tribunal de Justiça uma decisão em que o acessório foi mais importante do que o principal. Onde a verdade real, ou melhor, a comprovada corrupção ativa, resstou desprezada. DD, conforme uma ennxurrada de provas, interceptações telefônicas com autorização judicial e gravações, procurou, por interpostos agentes, corromper policiais em apurações da denominada Operação Satiagraha. Na casa de um dos acólitos de Dantas, o professor Hugo Chicaroni, a Polícia Federal apreendeu 1,1 milhão de reais.
Dantas acabou condenado, em 2008, por consumado crime de corrupção ativa. Seus advogados impetraram habeas corpus a fim de anular as provas colhidas na Satiagraha e, por conseguinte, desconstituir a condenação por corrupção ativa decidida pelo juiz Fausto De Sanctis. Por 3 votos a 2, a 5ª Turma do STJ concedeu a ordem de habeas corpus para anular a mencionada Satiagraha e a condenação.
Para os ministros julgadores, exceção a Gilson Dipp e Laurita Vaz, a participação de agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), órgão subordinado ao gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, foi ilegal e contaminou toda a apuração. Decisão de pasmar. Nenhuma dúvida pairava sobre a consumação de um grave crime a mando de um poderoso banqueiro. Para os ministros Adilson Macabu, Napoleão Maia e José Musssi, o importante era “espiolhar nugas”, catar quinquilharia procedimentais. A verdade real virou secundária.
Dispensável ressaltar que os agentes da Abin, servidores públicos do mesmo Poder Executivo ao qual se subordina a Polícia Federal, em nada interferiram na consumação do crime de corrupção. E a nulidade mal decretada gerou impunidade. A decisão condenatória tinha sido emitida bem antes do habeas corpus que a anulou, e confirmada no Tribunal Regional Federal (TRF) da 3a Região, que não considerou ilegal a participação de agentes da Abin na Satiagraha.
Ainda sob o efeito das aberrantes decisões da 5ª Turma, o cidadão comum teve ainda outra notícia a causar estupor. Ela envolveu como figura principal Fernando Sarney, filho do presidente do Senado. A 6a Turma do STJ, sem que ministros convocados pedissem vista dos autos após o voto do relator, anularam a chamada Operação Boi Barrica. Para os magistrados, a decisão judicial que havia autorizado a quebra de sigilos não tinha sido suficientemente motivada. Isso tudo com desprezo ao relatório do Conselho de Atividades Financeiras do Ministério da Fazenda que indicava suspeita de lavagem de dinheiro por integrantes do clã e durante campanha eleitoral de Roseana Sarney ao governo do Maranhão. No caso, a verdade real foi desprezada por um garantismo baseado no subjetivismo da suficiência e o inquérito acabou reduzido a pó. Como num passe de mágica, não existe mais nos autos nenhuma prova dos crimes de lavagem de dinheiro, desvio de dinheiro público e tráfico de influência.
Na mesma linha surpreendente de um falso garantismo encobridor da verdade real, tivemos outra grande surpresa judiciária. Trata-se da anulação da Operação Castelo de Areia. Por 3 votos a favor dos impetrantes acusados e 1 contrário, o STJ decidiu anular todas as interceptações telefônicas realizadas com base em denúncia anônima. Para muitos procuradores da República, o “castelo ruiu”, ou seja, poucas provas restaram. E vários processos foram iniciados com base no inquérito policial. Só para recordar, a Castelo de Areia teve início em março de 2009. O objetivo era apurar eventuais crimes contra o sistema financeiro, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, corrupção, doações encobertas a políticos e outros delitos.
As suspeitas recaíam sobre a Construtora Camargo Corrêa e alguns dos seus diretores. Em janeiro de 2010, o presidente do STJ, o polêmico Cesar Asfor Rocha, concedeu liminar para suspender a decisão do Tribunal Regional Federal de São Paulo. A decisão do TRF-SP entendeu que as interceptações telefônicas haviam sido realizadas com autorização judicial (o juiz concedente era Fausto De Sanctis). E que não tinham sido autorizadas interceptações com base em denúncia anônima. O ministro Og Fernandes, no julgamento do STJ, teve a mesma convicção que os desembargadores paulistas.
Og Fernandes frisou que o delegado federal que presidiu o inquérito realizou investigações e diligências preliminares antes de requerer as interceptações telefônicas. Em outras palavras: não foi a denúncia que motivou o pedido de interceptação, mas a existência de indicativos com lastro de suficiência de consumação de graves crimes. Os votos vencedores são dos ministros Maria Thereza de Assis Moura, Celso Limongi e Haroldo Rodrigues.
A respeito de denúncia anônima e em outro processo, o STF, em sessão plenária realizada em 11 de maio de 2005, apreciou o seu valor jurídico. E concluiu somente caber apuração quando dotada de um mínimo de idoneidade e amparada em outros elementos que permitam “apurar a sua verossimilhança ou a veracidade”. Como se percebe, uma denúncia anônima não pode servir de base para interceptação telefônica, segundo a nossa legislação e a jurisprudência do STF. Mas não seria esse o caso, segundo o TRF-SP e o ministro Og Fernandes. Para eles, as interceptações decorreram de investigações e diligência preliminares.
Entidades de juízes pedem que conduta da corregedora-geral de Justiça, Eliana Calmon, seja investigada. Foto: José Cruz/ABr
No meio deste ano, o STF ratificou o escapismo. Depois de concluir sobre a extradição do pluriassassino Cesare Battisti, o STF surpreendeu ao entregar a decisão final ao presidente Lula. Mas determinou que Lula teria de decidir sem afrontar o Tratado de Cooperação Judiciária entre Brasil e Itália. No último dia de mandato, Lula, frisando que a Itália era uma exuberante democracia sem condições de garantir a integridade física de Battisti, negou a extradição. Por evidente, a Itália reclamou ao STF sobre o descumprimento do acórdão por parte do então presidente. Aí, por 6 votos a 3, o plenário encampou a canhestra tese do novo ministro Luiz Fux e entendeu não ter a Itália legitimação para reclamar. Outro lamentável escapismo e do tipo subalterno ao Executivo. Quem teria qualidade para reclamar do descumprimento do acórdão? Talvez Dante Alighieri. Ou Leonardo da Vinci?
Com magistrados batendo uma bolinha em campo e instalações cedidas por Ricardo Teixeira da CBF, parece que não percebem as situações de conflito de interesses. Sobre “mulher de César”, ignoram solenemente a recomendação. E sobre ética, Ari Pargendler, do STJ, e os ministros José Dias Toffoli e Gilmar Mendes, do STF, revelaram absoluto desprezo.
Toffoli deslumbrou-se com um “mamma mia”. Ele compareceu à booda de casamento de um seu amigo brasileiro, advogado criminal de profissão, na famosa Ilha de Capri, na Itália. Alegrou a festança o cantor Pepino di Capri, como não poderia deixar de ser. Parte das despesas da viagem ficou por conta do advogado, que tem ações no tribunal. Em ao menos uma delas, o ministro participou do julgamento sem se afastar por motivo de foro íntimo.
Conforme amplamente noticiado, Mendes, ao deixar a presidência do STF, teria sido brindado com uma viagem internacional e régias cortesias, incluídos hospedagens e deslocamentos em luxuoso automóvel Mercedes- Benz com cinesíforo ao volante, ofertadas pelo advogado e jurista Sergio Bermudes. O patrocinador tem uma das maiores bancas do Brasil, atua em ações no STF e foi empregador da esposa de Mendes.
Para completar o triste quadro de 2011, o STF continua a dar sinais de a sua jurisdição estar, hierarquicamente, acima daquela da Corte Interamericana de Direitos Humanos, apesar do estabelecido na Constituição. O Brasil despreza a decisão da Corte que entendeu, com relação a crimes desumanos consumados durante a ditadura, ilegítima a aplicação da lei de autoanistia de 1979.
Enquanto pelo planeta ganha força a jurisdição internacional, o Brasil trilha caminho diverso, embora tenha firmado tratados e convenções. Na quarta-feira 30, foi entregue pela Costa do Marfim ao Tribunal Penal Internacional o ex-ditador Laurent Gbagbo, acusado de crimes contra a humanidade e genocídios.
Nos países da União Europeia, os juízes, qualquer que seja o grau de jurisdição, aplicam aos processos as decisões da Corte Europeia de Direitos Humanos. Há consenso de que a jurisdição internacional seja prevalente.
No Brasil, temos uma Justiça morrente. E, em 2012, ela não vai mudar, infelizmente.
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