segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Olhos nos olhos do desenhista Rugendas: música e afeto na família escrava

LUIZ A. GIANI*
Fonte: http://espacoacademico.wordpress.com/

      Alguém lhe diz que a falta de afeto na família “tem um nome: falta de dinheiro”, o que comumente é interpretado como resultado do fracasso da distribuição da riqueza. Por outro lado, você ouve um psicanalista afirmar que “não se pode ignorar o indivíduo, que não se pode jogar a culpa só na sociedade”. Então, você encontra nessas duas posições motivação suficiente para voltar à velha questão, ainda muito problemática, das relações entre indivíduo e sociedade.

      Depois do projeto “fome zero”, a nação está se mobilizando para um novo projeto, em 2005, desta vez destinado a zerar a falta de afeto na família.
      Falar sobre a presença do afeto na família leva-nos a associações com a atenção, cuidados, carinhos, agrados e variadas formas de apoio e relacionamento prazeroso presentes nas rodas de música, dança e demais artes, além de todo tipo de brincadeiras, jogos, rezas, festas, refeições, etc., etc.


      Hoje, já é farta a literatura que enfatiza a alegria dos escravos e seus descendentes, no Brasil. A esta cultura africana dionisíaca contrapõe-se a civilização européia e cristã que, há vários séculos, vem recebendo críticas históricas sobre suas características castradoras, de sofrimento, dor e culpa. Para dar eficácia a seus objetivos, os “civilizados” cristãos inventaram mecanismos disciplinares e repressivos fundados na alegada existência do diabo, do pecado mortal e da pena capital, o inferno eterno. Sabe-se que as idéias e ideologias adquirem força material, dominando, subjugando, amordaçando a própria sociedade que as inventou. Livrar-se delas é tarefa extremamente difícil para o indivíduo. Quando os indivíduos o conseguem é porque já se constituíram condições sociais favoráveis, independentemente, em grande parte, da própria vontade dos indivíduos.
      Entre os críticos da formação social brasileira, o editorialista Ênio Silveira (Editora Civilização Brasileira) relata que no programa da peça “Orfeu da Conceição” (“Orfeu negro”), encenada em 1956, o poeta Vinicius de Moraes “tornou bem claro que sua peça constituía, antes de mais nada, homenagem ao negro brasileiro. Homenagem à sensibilidade artística de uma raça eminentemente plástica, no sentido de que, através de ritmos, cores e formas, sempre conseguiu – na liberdade e no cativeiro – demonstrar genuína alegra de viver, adaptando-se às mais estranhas e por vezes odiosas condições…”



      A filosofia, por ser invenção da sociedade grega, parece ter ficado muito restrita à Europa e suas colônias. A história da África é exclusiva ou predominantemente oral, até recentemente, o que impossibilita o amplo acesso ao pensamento dos antigos sábios africanos. Neste caso, os olhos da cidadania, hoje, voltam-se freqüentemente para os olhos dos brancos europeus, especialmente os viajantes, como Rugendas. Na observação de Sérgio Milliet (tradutor de obra de Rugendas), os conceitos de Jean Jacques Rousseau estavam ligados às concepções filantrópicas, em oposição aos interesses escravagistas. O humanismo de Rugendas tem ligações com Rousseau (no entanto, que condições teriam levado Rousseau, apesar de seu imenso humanismo teórico, a não assumir seus filhos, entregando-os na roda?). Os romances de Rousseau são obras primas da preocupação em torno da educação com música e afeto, entre outros recursos do coração.
      Integrando a expedição científica enviada pela Rússia ao Brasil, para a qual fora contratado como desenhista, Rugendas (João Maurício Rugendas, Augsburgo: 1802; Weilheim: 1858) não se restringiu à arte do desenho em torno da música e dos afetos, entre outros aspectos e costumes, dos africanos escravizados (Rugendas abandonou a expedição, viajando por conta própria). Ele também filosofou sobre o que via e ouvia, enquanto desenhava “Batuque”, “Lundu”, “Jogo da capoeira”, “Festa de Nossa Senhora do Rosário, Padroeira dos Negros” e “Habitação de negros”, entre dezenas de outros quadros. O admirador dos quadros de Rugendas pode, assim, usufruir da rara oportunidade estética de juntar à sua subjetividade – a do olhar do espectador – a subjetividade do criador, qual seja, a do olhar do próprio Rugendas.


      Para citar pelo menos uma fala dos afro-descendentes sobre a sua própria história, recorremos a Alaor Gregório de Oliveira (presidente da Associação União e Consciência Negra, de Maringá) e Valdeir Gomes de Souza (Assessor Municipal de Promoção da Igualdade Racial, de Maringá). Em um trabalho acadêmico, para o Curso de Especialização em Ciências Sociais, “Reflexões sobre as relações interétnicas e a questão racial no Brasil”, do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Maringá, eles reafirmam que “a principal marca do modo de ser brasileiro deixada pelos negros é, sem dúvida, a alegria. Uma alegria que persiste mesmo diante das grandes e reconhecidas desigualdades sociais que excluem grande parte de nossa população, justamente onde encontram-se inseridos os negros e descendentes. Os negros escravizados, mesmo diante das formas cruéis de vida, dos castigos físicos e morais impostos, apesar de tudo isso, encontravam momentos para extravasar na música, na dança e nos folguedos uma alegria incompreendida pela lógica do colonizador”. Trata-se de um tempo de prazer subordinado e, ao mesmo tempo, contraposto ao tempo de trabalho escravo.
      Pode-se afirmar que a aguçada sensibilidade de Rugendas o fez perceber a contradição entre o prazer e o trabalho explorado. Música, afeto e dança estão em contradição com o trabalho escravo, tal como ele captou, em um nível de percepção bem acima dos homens letrados de seu tempo. Diz ele, no capítulo “Usos e costumes dos negros”, da Viagem pitoresca através do Brasil, obra editada em Paris, 1835:
      Dir-se-ia que após os trabalhos do dia, os mais bulhentos prazeres produzem sobre o negro o mesmo efeito que o repouso. À noite, é raro encontrarem-se escravos reunidos que não estejam animados por cantos e danças; dificilmente se acredita que tenham executado, durante o dia, os mais duros trabalhos, e não conseguimos nos persuadir de que são escravos que temos diante dos olhos (Rugendas. Viagem pitoresca através do Brasil)
      E hoje, “abolida” a escravidão, o que acontece? Uma corrente sociológica insiste em afirmar que o lazer é uma função do tempo livre. E mais: que a sociedade moderna atual é a sociedade do lazer. Contra a tônica positivista desta concepção, uma das correntes marxistas prefere entender que, enquanto houver trabalho explorado, o tempo da música, afeto e dança é tempo liberado (e não livre) do trabalho, tempo destinado a recuperar as forças de trabalho exploradas. Não existe, assim, tempo livre nas sociedades em que o trabalho é trabalho explorado, sob uma nova forma, a capitalista. Esta levou o poeta Cazuza a cantar que “enquanto houver burguesia não haverá poesia”.


      O prazer da música, do afeto, da dança, não se contrapõe ao trabalho, quando a formação social é a da comuna, proprietária do seu próprio trabalho e seus produtos. Assim, pode-se arar, plantar, colher, caçar, etc., no mesmo espírito com que se canta e dança, sem a opressão inerente ao trabalho explorado. Trabalho e prazer estão em harmonia, confundem-se, não se separam.
      O olhar de Rugendas sobre a contradição entre o prazer e o trabalho vale para os dias de hoje? Fica para você, leitor, a conclusão. Em tempos de escravidão, o prazer contrapõe-se a trabalho escravo. Hoje, a música, o afeto, a dança e o carinho da família contrapõem-se a quê, quando a maioria da população já está excluída do trabalho? Como se resolve a química entre, de um lado, Orfeu, Dioniso, os afetos, e, de outro lado, a exclusão do trabalho – modo de ser da chamada “razão instrumental” (meios destinados a atingir com racionalidade os fins impostos pela lógica do capital) – que atinge um número imenso e cada vez maior de famílias? Um bilhão de famintos, no planeta: bem maior que esta é a cifra de todos os excluídos. Como parte desse quadro, a família atual é conseqüência e não fator, à semelhança da família escrava.





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* LUIZ A. GIANI é Professor da Universidade Estadual de Maringá e Doutor em História pela História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Campus de Assis). Ministra a disciplina Teoria Crítica da Sociedade, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – Mestrado, da Universidade Estadual de Maringá. Publicado na REA nº 44, janeiro de 2005, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/044/44cgiani.htm






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