sábado, 29 de outubro de 2011

Boletim Médico Divulgado Confirma Câncer do Ex Presidente Lula

      O Ex-Presidente da República, Sr. Luís Inácio Lula da Silva realizou exames no dia de hoje no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, tendo sido diagnosticado um tumor localizado de laringe.
      Após avaliação multidisciplinar, foi definido tratamento inicial com quimioterapia, que será iniciado nos próximos dias. O paciente encontra-se bem e deverá realizar o tratamento em caráter ambulatorial.
      A equipe médica que assiste o Ex-Presidente é coordenada pelos Profs. Drs. Roberto Kalil Filho, Paulo Hoff, Artur Katz, Luiz Paulo Kowalski, Gilberto Castro e Rubens V. de Brito Neto.

      Dr. Antonio Carlos Onofre de Lira
      Diretor Técnico Hospitalar
      Dr. Paulo Cesar Ayroza Galvão
      Diretor Clínico"      


      Bollettino medico Usciti conferma Cancro L'ex presidente Lula
      
       L'ex presidente, il signor Luiz Inacio Lula da Silva ha tenuto gli esami oggi in siro-libanese Hospital di San Paolo, è stato diagnosticato un tumore della laringe.
      Dopo una valutazione multidisciplinare, abbiamo definito il trattamento iniziale con chemioterapia, che inizierà nei prossimi giorni. Il paziente sta bene e dovrebbero essere sottoposti a trattamento a livello ambulatoriale.
      Il team medico che assiste l'ex presidente è coordinato dal prof. Dr. Roberto Kalil Filho, Paulo Hoff, Arthur Katz, Luiz Paulo Kowalski, Gilberto Castro e Rubens V. de Brito Neto.

      Dott. Antonio Carlos Onofre de Lira
      Direttore Tecnico Ospedale
      Il dottor Paulo Cesar Galvao Ayroza
      Direttore Clinica "

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

A "Ditadura" das Leis- Silvia Costa da Silva

      Após muitos anos de luta, uma das principais reivindicações dos plebeus romanos foi atendida, a "Lei das Doze Tábuas", ou seja, o fim do direito consuetudinário com o estabelecimento das leis escritas. Este anseio devia-se ao fato que, em toda contenda envolvendo patrícios e plebeus, aqueles aproveitavam-se do fato da não existência de leis escritas para aplicá-las ao seu bel prazer, de acordo com os seus interesses.
    Nos dias atuais, parece que a existência de códigos escritos não tem muita valia para o setor popular da sociedade. Há até quem empregue a expressão "cidadão comum" para contrapor justamente a quase totalidade da população brasileira  ao grupo político dirigente do país. Cidadãos de primeira e segunda classe- estranha contradição em uma sociedade que se diz democrática.
     Os cidadãos de primeira classe não são apenas os que têm dinheiro, mas a possibilidade de tearem redes de segurança para si e o seu grupo através das leis. São aqueles que possuem a liberdade de estabelecerem os próprios aumentos, os próprios limites de ação, enquanto mudam as vidas dos cidadãos de segunda classe, com o pretenso poder de uma pseudo-representatividade que lhes é delegada.
     Na realidade o ato (coercitivo) de votar é o veto da liberdade do indivíduo de cobrar dos seus representantes, pois na cultura política brasileira cobrança é ofensa, críticas são calúnias e difamações; fraudes nunca são motivos para cadeia; a assinatura nunca é a do seu dono; privilégios nunca são extensos para quem os paga, os desvios das verbas da educação e da saúde não são nem sequer verificados. E haja contas suspeitas aprovadas!  Em um país históricamente recém saído da ditadura, tenta-se transformar em lei o retorno da censura- só para garantir a legalidade de tudo...

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O humor do coronel (Rosane Pavam- Carta Capital)

      Rafinha bastos alcançou a unanimidade. Depois de proferir na bancada de Custe o Que Custar, dia 19, uma sequência de palavras sobre a gravidez da cantora Wanessa Camargo, “Eu comeria ela e o bebê, não tô nem aí”, todos já sabem que um dos mais destacados integrantes do programa televisivo não é um comediante. Ele exercitaria, em lugar disso, a grosseria simples ou, por muita consideração, um humor bunga-bunga, inspirado no temperamento dos sultões. Talvez, ainda, para inseri-lo na história brasileira, agiria como um latifundiário diante do martírio sexual das escravas negras. E como alguém riria disso, a não ser os próprios coronéis e seus simpatizantes?
      O filósofo Henri Bergson deu ainda no século XIX a mais duradoura lição sobre o riso. Bergson dizia que a risada ocorre com efeito restaurador. Ri-se, segundo ele, de quem é inferior a nós, para sanar um equívoco social. Por exemplo, uma mulher que não enxergue a idade avançada, vestindo-se e maquiando-se exageradamente, mereceria a risada, que corrigiria seu comportamento. Wanessa, cantora de sucesso, filha jovem e bonita de um compositor popular vindo de família pobre, e o futuro filho dela, pelo contrário, não seriam exemplos a merecer a correção, especialmente de Rafinha, que o público não reconhece superior a ela ou ao bebê em alguma medida.
      O objetivo da piada não é degradar o ser humano, mas lembrar que ele já é degradado”, ensinou o escritor George Orwell. Ou, como afirmou o humorista Chico Anysio a CartaCapital no ano passado: “O humor deve visar a crítica, não a graça. Ele vai ser engraçado onde puder”. A seguir o que dizem esses autores, Rafinha feriu todas as regras do funcionamento humorístico. Não que esse boxeador verbal seja o único a quem se deva apontar a imprudência, já que, ao dizer tal frase, ele se viu provocado pelo comandante da bancada do programa, Marcelo Tas. Fora este a levar o assunto – a beleza da cantora grávida – à baila de seus comentadores subordinados. O que esperava quando levantou a bola para que Rafinha nela batesse? E, especialmente, por que não o advertiu em público logo que a frase foi proferida? Sobre o episódio, ele declarou à revista Veja São Paulo: “Não gostei, isso não é piada, não se encaixa na categoria humor. É uma deselegância, uma agressão gratuita. Ele foi infeliz. Acho que o CQC precisa superar a adolescência, passar dessa fase de rebeldia sem causa”.
      Para o historiador da Universidade de São Paulo Elias Thomé Saliba, autor de um livro clássico sobre o humor brasileiro, Raízes do Riso, “nem humoristas os integrantes do CQC são”, pois “humoristas são criadores de humor”. E eles também não seriam cômicos, “porque não usam a totalidade dos recursos de um cômico, o corpo, os trejeitos lúdicos, com o objetivo de provocar o riso”. O que Rafinha fez, a seu ver, não foi uma piada, antes o “resultado de mera irreverência compulsória, forçada pelo ambiente de público ao vivo, com claque de risadas, que estimula a irrestrição verbal dos comentaristas”. As cenas mais criativas do programa, o historiador acredita, são as pseudoentrevistas com políticos, que parodiam o próprio veículo da imprensa televisiva e atingem os limites do burlesco, “mas que se tornam cada vez mais raras no CQC”.
      No dia 3, Rafinha, diminutivo do ator alto de 34 anos, cujo sobrenome dá pano para manga (“bastos” remetendo a basta, entre outras infelizes evocações), desapareceu da atração televisiva. Não que ele já não houvesse dito ao vivo durante esse programa que custa o que custa, 130 mil reais por minuto de inserções comerciais, de 240 mil a 2,4 milhões por merchandising interno, segundo a Folha de S.Paulo, sua intenção de “comer” outras mulheres. Mas somente quando o ex-jogador de futebol Ronaldo Fenômeno mostrou contrariedade com a frase ofensiva, dirigida à esposa de seu sócio Marcus Buaiz, a -coisa ficou impossível de aguentar.
      A TV Bandeirantes, onde brilha o CQC, mostrou-se então, pela primeira vez, incomodada com Rafinha, substituindo-o por Monica Iozzi na bancada, uma decisão para amainar os ânimos, mas estranha para quem observa os fatos. Apontado pelo jornal The New York Times -como o mais influente mundialmente no Twitter-, Rafinha já dissera, durante seus shows de pé e na rede social, que a mulher feia deveria se sentir feliz quando estuprada. Embora a “piada” não tivesse sido proferida durante o programa de tevê, o ator, por conta dela, era alvo de uma representação do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo ao -Ministério -Público. Seria, para a emissora, um funcionário cuja conduta deveria ser observada? A Bandeirantes se viu atingida agora após a alegada ingerência de Ronaldo sobre sua cúpula, pois o jogador, além de se recusar a falar ao CQC, a teria ameaçado com a disposição de trabalhar por cortes de anunciantes ao programa.
      O colega de bancada de Bastos, outro ator, Marco Luque, que rira da frase no instante em que fora proferida, abaixando a cabeça balouçante e, sobre a testa, encostando uma das mãos, emitiu curiosa nota no dia 2, em que classificou a piada do companheiro de “idiota”. Luque, garoto-propaganda da mesma companhia telefônica que patrocina Ronaldo, teria sua razão para manifestar horror diante de palavras fortes. Danilo Gentili, outra sumidade recém-saída do CQC para talk show próprio na emissora, tuitou e apagou no mesmo 2 de outubro: “Sempre enxerguei algo mais significativo sendo construído por um comediante linchado por falar merda do que por um queridinho por puxar sacos”. A postagem fez a delícia de seguidores como Daniel Lima, que a parodiou no Twitter: “Sempre enxerguei algo mais significativo sendo construído por um comediante linchado por falar sacos do que por um queridinho por puxar merda”.
      No dia 2, declarara o Observer, revista dominical do jornal inglês The Guardian, que Gentili representava um momento brasileiro especial, em que os comediantes estariam livres para criticar “o poder”. Um exemplo de raciocínio do apresentador, citado pela publicação, foi desenvolvido durante um show em Brasília, no ano passado: “Votar em Dilma (Rousseff) porque ela foi torturada? Eu pedi para ela ser? Um presidente tem de ser esperto. Se ela foi capturada e torturada, significa que foi uma idiota”. Outra preciosidade já saíra de um comentário seu na rede: “Entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz”. Gentili não mostrou arrependimento pela frase com Dilma, mas, para se remediar junto à comunidade judaica, ele, mais afeito do que Rafinha aos comentários “políticos”, apresentou seu pedido formal de desculpas à Confederação Israelita do Brasil.
      Em 1973, Millôr Fernandes, ilustre humorista brasileiro, sofreu um processo instaurado pelo então ministro da Justiça, Armando Falcão, por causa desta frase publicada em O Pasquim: “Jaqueline (Kennedy) nasceu de rabo pra lua e soube usá-lo”. Foi apenas um entre vários exemplos a demonstrar que os humoristas brasileiros, ao contrário do que crê o Observer, têm a tradição de criticar o poder, mesmo em tempos duros. Millôr afrontava a ditadura não em sua representação política, mas moral. Desafiava a censura federal em voga a todo escrito artístico que denegrisse alegados valores da “família brasileira”. Era humor crítico de quem vê oportunismo no fato de a viúva do presidente americano envolver-se repentinamente com um milionário armador grego.
      O humor coronelístico de Rafinha Bastos, fundado no pensamento colonial escravista do Brasil, um país, portanto, de história politicamente incorreta, sem a necessidade de que os humoristas preguem agora a incorreção, não o leva a agir assim. Chico Anysio, assim como Jô Soares, sempre proferiu piadas sexistas, machistas e misóginas, mas, como lembra o historiador Saliba, quase sempre encarnando outros personagens, como oligarcas e nhonhôs: “Os preconceitos estavam lá, todos, alguns em toda a sua crueza, mas eram reversíveis, mudavam de lado a todo o momento, os papéis eram trocados, retomando o universo do burlesco”.
      Depois de tudo o que houve, Rafinha tentou se explicar pela graça. Não usou de humor autoderrisório, praticado por mestres da stand-up comedy como George Carlin, incansável ao ridicularizar, entre outros, o fundamentalismo religioso de seu país, os Estados Unidos. Pelo contrário, o brasileiro reforçou o preconceito ao posar com duas mulheres de biquíni no Twitter, alegando sua felicidade na noite de suspensão do CQC. Em um vídeo, brincou de recusar carnes como baby beef e fraldinha, além de algo “para beber” numa churrascaria. Às perguntas que lhe fez o portal iG sobre o episódio, respondeu com receitas de bolo, evocando, em um processo de inversão, a censura ditatorial brasileira, que obrigava a imprensa a publicar textos culinários em lugar de notícias.
      Não se sabe que tempo terá Rafinha para reinventar-se, ele que viu cancelados dois comerciais de que participaria e cinco apresentações pagas, para as quais cobraria até 20 mil reais por duas horas de trabalho. E é pena que, ao contrário de outras mulheres da história (os anos de conservadorismo teriam dificultado a ascensão feminina à condição humorística no Brasil, como acredita Saliba), Wanessa não tenha respondido à grosseria de Rafinha com uma boa piada. Humor de gênero está longe de constituir novidade. Foi praticado em frases como a da ativista Florence Kennedy: “Se homem ficasse grávido, o aborto seria um sacramento”. Ou por Ginger Rogers, exausta de ouvir falar da genialidade- de seu parceiro de foxtrote, Fred Astaire: “Faço tudo o que ele faz, só que de salto alto e andando para trás”.

 
Rosane Pavam

Rosane Pavam é jornalista, editora de Cultura de CartaCapital . Autora do livro O Sonho Intacto - Nas Palavras de Ugo Giorgetti e do blog Contos Invisíveis.

João Batista Damasceno: Prescrição e impunidade

Rio - A midiatização dos processos propicia condenações antecipadas e possibilita impunidade de reais autores de crimes. Delegados e promotores se empenham mais quando se trata de fato de interesse da mídia, é o que revelam pesquisas. Juízes, por vezes, decretam prisões temporárias ou preventivas em razão do clamor por condenação, desconsiderando que o pressuposto da prisão cautelar é a garantia do processo, e não a punição antecipada do crime, por mais grave que seja.
      A Justiça de primeiro grau é integralmente composta por juízes profissionais. Todos são concursados. Mesmo que se aponte um ou outro favorecimento em concurso, não se pode negar a qualidade técnica dos aprovados, ainda que a tecnicidade não seja ideologicamente compromisso com a garantia dos direitos fundamentais. Nos tribunais estaduais e regionais, 20% dos membros são nomeados pelo Executivo, possibilitando injunção política. Os demais são de carreira, mas metade é promovida por merecimento, em processo de reprodução das elites institucionais e politização da Justiça.
      Os tribunais superiores são compostos na integralidade por membros nomeados pelo presidente da República, sem participação social. O presidente Lula, no fim do seu mandato, disse que nomear um ministro do STF o sujeitava a mais pressão que nomear um dos seus ministros e abdicou do dever da nomeação. A presidenta Dilma indicou para o STF um juiz de carreira.
      Os crimes de trânsito praticados por um jogador de futebol em 1995 estavam julgados em primeira e segunda instância, pela Justiça fluminense, desde 1999. Ainda que os recursos para o STJ e STF não tenham efeito suspensivo, o ex-jogador conseguiu suspensividade do julgado num habeas corpus impetrado em Brasília. Somente em 2011 voltamos a falar da execução da decisão da Justiça fluminense, após esgotamento dos recursos nos tribunais superiores, quando tudo já estava prescrito.



João Batista Damasceno é cientista político e juiz de Direito.

Membro da Associação Juízes para a Democracia

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Milton Cunha: Sapato preto, cinto marrom

       Ele orienta jovens universitários sobre como enfrentar a banca de julgamento, no dia da apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso, o famoso e temido TCC. Entre tantas dicas de como não usar expressões chulas ou não copiar da Internet páginas e páginas da dissertação, quando arranca da seleta plateia gargalhadas por ser espirituoso e cheio de caretas dramáticas, o orientador começa a tecer considerações sobre o tema ‘O que vestir’, impensável para universitários pobres que sequer podem escolher entre a calça A ou B, pois só têm a A.
      Em pensamento, abandono a aula e volto no tempo: estou sentado diante do Guru de Yoga famosíssimo, na bancada do ‘Sem Censura’, ao lado de minha Deusa Leda Nagle. Ele está lançando seu esperadíssimo livro sobre como não usar sandálias, pois foram feitas para a areia, como diz a denominação ‘sand’ em inglês. Ele fala, fala, diz que as do tipo Havaianas estão muito na moda, mas não carregam consigo a liturgia de respeito que certas convenções sociais exigem. Eu olho para a cara do sujeito e lentamente deixo vir de minha boca as palavras de minha indignação: “Mas o senhor não acha que é contraditório um homem que trabalha com coisas da energia espiritual, como o senhor, estar dando importância ou mesmo atribuindo força e poder a um item desprezível, como calçados, para a avaliação do valor de um ser humano?”.
      Daquele silêncio do irrespondível, que fechou a tampa do caixão daquela entrevista (me lembro que depois um espectador telefonou para registrar que a palavra sandália viria de uma raiz latina, nada tendo a ver com a tal areia inglesa que o Guru invocava), voltei em meu redemoinho de pensamentos para a sala, no momento em que o palestrante frisava, aos gritos: “Não, cinto marrom com sapato preto e meia branca, não! Jamais, nunca, em tempo algum; é uma combinação tão horrorosa que sempre que eu estou na banca e o sujeito está com esta combinação, mais que 9,5 não dou, pois fico hipnotizado de tanto horror diante de mim”. Pobre de uma sociedade que instrumentaliza seus estudantes a valorizar a aparência, na completa inversão da sabedoria do que a roupa não faz o monge. Adeus, Gandhi; adeus, São Francisco de Assis; aplausos para socialites, estilistas, o circo dos bem-nascidos, bem-sucedidos, bem arrumados. “Não usem anéis chamativos, nem profundas fendas nos vestidos para seduzir os velhos da banca”, continuava ele.
      E eu ali, diante da mais risível das situações, quando tudo o que uma universidade tem que fazer é fomentar a inteligência, formar cidadãos conscientes de seu valor social para além da vestimenta. O que estamos fazendo com nossos jovens, professores universitários? Para que tipo de vida os estamos empurrando?

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Sociedade sem graça

JOSÉ DE SOUZA MARTINS*


      A variedade e a frequência da violência que nos assombra constitui indício de profundas e alarmantes mudanças sociais fora de controle: pais que matam filhos, filhos que matam pais, netos que matam avôs, bebês que são jogados no lixo, bêbados que dirigem carros em alta velocidade e matam. E mesmo humoristas que querem fazer rir à custa do desrespeito e do menosprezo pelo outro. A sociedade está ficando sem graça. Só há graça na reciprocidade de valores sociais em contraposição à tentação de conveniências pessoais. Nossa tradição de humor é de raiz conservadora e se baseia, sobretudo, em fazer rir das contradições próprias das insuficiências da nossa modernidade, do imitar sem ser ou do ser sem saber. Daí que o caipira seja o nosso sujeito crítico por excelência e nosso insuperável personagem de humor.

J. S. Martins (2011)
      A sociedade dos incalculáveis ganhos econômicos tornou-se a sociedade das incalculáveis perdas morais. Falta uma bolsa de valores sociais, que meça diariamente quanto perdemos de nós mesmos, de nossa dignidade, de nossa auto-estima, da estima e do respeito pelo outro. A sociedade do pendão da esperança está se transformando na sociedade da desesperança e do ceticismo.
      Já há uma rotina de notícias sobre pessoas embriagadas que, dirigindo carro, atropelam, machucam e matam. Vamos nos acostumando, que é o pior sinal da complacência e da rendição incondicional à banalização da vida. Assassinos do volante foram soltos até antes que suas vítimas fossem enterradas. Edson Roberto Domingues, 55 anos, trabalhador, negro, chefe de família, teve 90% do corpo queimado quando seu caminhãozinho foi batido, e pegou fogo, pelo carro Camaro, importado, de R$ 165 mil, dirigido por um jovem embriagado, em disparada, que feriu quatro outras pessoas. Naquela rua a velocidade máxima é de 60 km por hora, que Edson Roberto respeitava. Foi vitimado por um bêbado irresponsável que corria a 116 km hora. Mediante fiança de R$ 245 mil, o autor da violência foi solto 24 horas antes da morte de sua vítima e dois dias antes que a família a enterrasse no Cemitério da Lapa.
      O respeitador da lei foi irremediavelmente punido, como se fosse o culpado; o violador da lei passou umas horas na cadeia e está livre, como se fosse vítima. O assassino vai ser julgado por homicídio doloso, mas o STF já tem decisão sobre outro caso do mesmo gênero, de 2002, em que o dolo é questionado. Como observou um especialista, uma pena que deveria ser de 20 anos de prisão acaba sendo, no máximo, de 4 anos e até trocada por cestas básicas para os pobres. Quando o dinheiro pode pagar por aquilo que não tem preço, quando vida e moeda se equivalem, já significa que nessa equivalência a condição humana se perdeu. O abrandamento do Código de Processo Penal, para casos assim, vai na mesma direção.
      História igual ao do dono do Porsche de R$ 600 mil que abalroou e destruiu o carro dirigido por uma moça, matando-a. Salvo por um bombeiro, ele saiu dos escombros de seu carro preocupado unicamente com os danos ao seu veículo. Nossa alma foi mercantilizada no egoísmo da equivalência mercantil do que não é equivalente ou não deveria ser.
      Os longos anos de ditadura, de falta de liberdade e de direitos, deram lugar a uma sociedade que se embriaga na falsa concepção de que a liberdade só existe no abuso da liberdade sem freios, sem regras, sem respeito pela liberdade do outro. De que o direito só o é no abuso do direito sem a contrapartida de um código de deveres, os do respeito pelo direito do outro. A democratização corre o risco de se tornar uma farsa na anomia que desagrega, na falta de normas decorrentes de valores sociais de referência. Esses casos sugerem que os valores estão invertidos, pervertidos.
      O eixo do nosso senso de justiça vem se deslocando do que por longo tempo definiu os valores sociais e regulou o comportamento das pessoas, a sociedade valorizada como todo. A sociedade tinha a primazia na definição do certo e do errado, do bem e do mal. É verdade que a vara de marmelo teve uma função histórica na formação do caráter do brasileiro, até a geração de nossos pais e avós. O Brasil venceu essa fase repressiva e descabida e começou a formar seus filhos na brandura da compreensão, na honestidade pedagógica de falar, mas de também ouvir.
      Mas essa revolução de perspectiva não levou em conta os trânsfugas da educação tradicional e da moderna, os que confundiram liberdade com abuso, direito com prepotência, democracia com impunidade. Chegamos ao tempo cinzento das novas iniquidades, o do direito torto, da lei capciosa, da lei de Gerson, do individualismo exacerbado, da solidão que cega. Em larga extensão, a sociedade brasileira está matando o outro e o sentido da alteridade e da reciprocidade. “Deus é brasileiro” foi frase comum na boca de todos durante um longo tempo de nossa história. Mas Deus morre todos os dias não só nos atos dos que a si mesmos se supõem deuses; também nas várias modalidades de aniquilamento do semelhante.

* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Dentre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto, 2011) e Uma Arqueologia da Memória Social – Autobiografia de um moleque de fábrica, (Ateliê Editorial), 2011.Publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Aliás, A Semana Revista], Domingo, 9 de outubro de 2011.
Fonte: espaçoacademico.wordpress.com 

domingo, 16 de outubro de 2011

Política e Educação- A ignorância como cúmplice da corrupção

      João Luís de Almeida Machado Doutor em Educação pela PUC-SP; Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP); Professor Universitário e Pesquisador; Autor do livro "Na Sala de Aula com a Sétima Arte – Aprendendo com o Cinema" (Editora Intersubjetiva).



      Política (po.lí.ti.ca) sf (gr politiké) 1 Arte ou ciência de governar. 2 Arte ou ciência da organização, direção e administração de nações ou Estados. 3 Aplicação desta arte nos negócios internos da nação (política interna) ou nos negócios externos (política externa). 4 Orientação ou métodos políticos: Política de campanário. 5 Arte ou vocação de guiar ou influenciar o modo de governo pela organização de um partido, influenciação da opinião pública, aliciação de eleitores etc. 6 Prática ou profissão de conduzir negócios políticos. 7 Conjunto dos princípios ou opiniões políticas. 8 Astúcia, maquiavelismo.
      Educação (e.du.ca.ção) sf (lat educatione) 1 Ato ou efeito de educar. 2 Aperfeiçoamento das faculdades físicas intelectuais e morais do ser humano; disci­pli­na­mento, instrução, ensino. 3 Processo pelo qual uma função se desenvolve e se aperfeiçoa pelo próprio exercício: Educação musical, profissional etc. 4 Formação consciente das novas gerações segundo os ideais de cultura de cada povo. 5 Civilidade.

      Os conceitos acima apresentados, extraídos do dicionário Michaelis, têm como propósito esclarecer dois conceitos essenciais para a vida de qualquer cidadão brasileiro. Política, mesmo para aqueles que abominam as práticas espúrias normalmente associadas a essa parte de nossas existências; está no agir e também no não agir; no associar-se e igualmente no não aliar-se; no pensar e certamente, no agir por instintos ou por direcionamento alheio; no ato de votar conscientemente assim como no voto de protesto e na luta pelo direito de não ter que ir às urnas...
      Em nosso país, certamente política se parece muito mais com “maquiavelismo” que propriamente com “arte ou ciência de governar”. Para melhor esclarecimento de todos, “maquiavelismo” é uma injusta forma de definir a ação política, administrativa e governamental em que “os fins justificam os meios”, ou ainda, através da qual os interesses de poucos se sobrepõem aos da maioria.
     Nicolau Maquiavel, certamente um dos maiores expoentes do realismo político de todos os tempos, ousou dizer em “O Príncipe”, sua obra principal, livro de cabeceira de inúmeros políticos, inúmeras verdades pensadas e praticadas por todos (praticamente sem exceção) aqueles que freqüentam os gabinetes e ante-salas do poder estabelecido.
      O pensador italiano do século XVI destaca, por exemplo, que a ambição, quando motiva e leva os homens aos mais prestigiosos cargos e mais ricos patrimônios não parece ter fim e, em virtude disso, ocasiona uma luta sem fim por mais e melhores condições. Ao lermos nas entrelinhas percebemos então que, o que poderia ser percebido a princípio como algo natural ou mesmo bom para as pessoas, acaba originando comportamentos que excedem os limites da civilidade (termo associado à definição apresentada no Michaelis para educação).
      Quando Maquiavel destaca que os “príncipes” (governantes em geral) devem ser mais temidos que amados, já que as duas coisas ao mesmo tempo parecem ser impossíveis, a compreensão geral é a de que, por isso mesmo, e devido ao poder concentrado em suas mãos, compete aos donos do poder sensibilizar a população a partir de demonstrações de força que esclareçam a todos quem realmente manda...
      Em sistemas democráticos de governo, utilizando-se das mídias eletrônicas, os governantes descobriram que não apenas é possível conciliar o ser temido e o ser amado, como passaram a utilizar-se com enorme regularidade de práticas que lhes garantam, entre seus opositores e não simpatizantes, do “porrete”, enquanto, do outro lado, utilizam-se de pacotes de benefícios diretos para todos aqueles que são complacentes e partidários de suas ações.
      No Brasil, por exemplo, isso é facilmente perceptível quando analisamos dados como aquele que nos informa a rejeição do eleitorado aos políticos que investem pesadamente em educação, conforme pesquisa divulgada pela revista Época (mais detalhes na postagem “Educação ganha eleição?”, no blog Escolhendo a Pílula Vermelha). De acordo com esse levantamento, 70% dos prefeitos brasileiros que investiram em educação e, dessa forma, apostaram que os benefícios de uma escola de qualidade podem garantir um amanhã melhor para suas comunidades, não conseguiram se reeleger ou eleger seu sucessor...
      Por outro lado, 65% dos prefeitos que beneficiaram seus munícipes com mais vias públicas pavimentadas e obras e/ou benefícios sociais (como cestas-básicas, material escolar gratuito, remédios por preços módicos, salários adicionais...), foram agraciados com novos mandatos ou elegeram seus candidatos a sucessão.
      E é justamente nesses dados, que adicionados as breves reflexões sobre Maquiavel, ou ainda aos conceitos de política e educação, que repousam algumas conclusões tristes e sombrias quanto aos próximos anos de nosso país, caso não façamos algo em prol da decência, da lisura, da honestidade, da ética, da cidadania e da civilidade na política brasileira.
      A ignorância, a pobreza e a dependência da população são cúmplices da corrupção e, certamente, ajudam a alavancar as negociatas que enriquecem inúmeros políticos brasileiros. Não interessa a esses “senhores” melhorar, efetivamente a qualidade da educação brasileira. Isso significaria, no final das contas, uma população mais esclarecida, atuante, crítica e exigente. Qual político, em sã consciência, quer ver a comunidade auferindo as contas públicas e descobrindo os desvios das verbas através das compras superfaturadas e das licitações fraudadas em reuniões secretas, regadas a muito vinho importado cujos preços são impublicáveis para 90% da população brasileira...
      Ao definir-se educação como “formação consciente das novas gerações segundo os ideais de cultura de cada povo”, penso que fazemos a tarefa pela metade, pois não estamos trabalhando em prol de uma consciência plena – tanto no âmbito pessoal quanto, principalmente, no coletivo – além disso, creio que, talvez, os ideais de cultura de nosso povo tenham em seu âmago, a tolerância aos atos espúrios da política, a corrupção vil, ao comportamento corrompido e individualista, a busca pela fortuna mesmo que isso implique passar por cima de quem for...
      Quero acreditar, sinceramente, que o futuro pode ser muito melhor para todos. Temos sido surpreendidos por fatos que demonstram a evolução do país no que tange a sua vida econômica – o que tem gerado melhoria na qualidade de vida de milhões de pessoas. Mas, não podemos por esses ganhos, fechar os olhos aos desmandos que cerceiam a mais e mais pessoas o acesso ao saber proporcionado pela educação e que, todos sabemos, pode garantir ao país um futuro muito mais próspero do que o que se avizinha.
      Penso que “o aperfeiçoamento das faculdades físicas intelectuais e morais do ser humano” ou ainda o “disci­pli­na­mento, a instrução, o ensino” que conduzem a “civilidade” são de essencial importância para que a política seja, realmente, “arte ou ciência da organização, direção e administração de nações ou Estados” em prol de todos, ou seja, sem educação de qualidade, não há política na acepção da palavra que verdadeiramente desejamos...
      Obs.: E a luta contra a corrupção começa nos pequenos atos cotidianos de cada um. Não dar propina, respeitar as leis, ter paciência nas filas, votar com consciência, participar da educação dos filhos, cobrar serviços públicos de qualidade...

sábado, 8 de outubro de 2011

Para Uma Melhor Reflexão Sobre o Momento Político Em Campos dos Goytacazes

Ética na Política? 
Da sagrada ingenuidade dos céticos ao realismo maquiavélico

Por ANTONIO OZAÍ DA SILVA (Docente na UEM e doutorando na Faculdade de Educação da Universidade de S. Paulo.)


      Até que ponto a política é compatível com a ética? A política pode ser eficiente se incorporar a ética? Não seria puro moralismo exigir que a política considere os valores éticos?
      Quando se trata da relação entre ética e política não há respostas fáceis. Há mesmo quem considere que esta é uma falsa questão, em outras palavras, que ética e política são como a água e o vinho: não se misturam. Quem pensa assim, adota uma postura que nega qualquer vínculo da política com a moral: os fins justificam os meios.
      O ‘realismo político’, ou seja, a busca de resultados a qualquer preço, subtrai os atos políticos à qualquer avaliação moral, entendendo esta como restrita à vida privada, dissociando o indivíduo do coletivo.
      Esta concepção sobre a relação ética e política desconsidera que a moral também é um fator social e como tal não pode se restringir ao santuário da consciência dos indivíduos. Em outras palavras, embora a moral se manifeste pelo comportamento do indivíduo, ela expressa uma exigência da sociedade (um exemplo disso é a adoção dos diversos "códigos de ética"). Ou seja, não leva em conta que a política nega ou afirma certa moral e que, em última instância, a política também é avaliada pelo comportamento e entendimento moral das pessoas. Aliás, se a política almeja legitimidade não pode, entre outros fatores, dispensar o consenso dos cidadãos — o que pressupõe o apelo à moral.
      Há também os que, ingenuamente ou não, adotam critérios moralizantes para julgar os atos políticos. Por conseguinte, condicionam a política à pureza abstrata reservada ao ‘sagrado’ espaço da consciência individual. Estes imaginam poder realizar a política apenas pelos meios puros.
      O moralismo abstrato concentra a atenção na esfera da vida privada, do indivíduo. Portanto, aprisiona a política à moral intimista e subjetiva deste. Ao centrar a atenção na esfera individual, o moralista julga o governante tão-somente por suas virtudes e vícios, enfatizando suas esperanças na transformação moral dos indivíduos.
      Ao agir assim reduz um problema de teor social e coletivo a um problema individual. No limite, chega à conclusão de que as questões sociais podem ser solucionadas se convencermos os indivíduos isoladamente a contribuírem, por exemplo, dividindo sua riqueza como os desafortunados.
      O resultado é catastrófico: o moralista angustia-se porque a política não se enquadra nos seus valores morais individuais e termina por renunciar à própria ação política. Dessa forma, contribui objetivamente para que prevaleça outra política.
      De um lado o ‘realismo político’; de outro, o moralismo absoluto. Nem tanto mar, nem tanto terra. A política e a moral, embora expressem esferas de ação e de comportamento humano específicas e distintas, são igualmente importantes para a ação humana no sentido da transformação social.
      Política e moral são formas de comportamento que não se identificam (a primeira enfatiza o coletivo; a segunda o indivíduo). Nem a política pode absorver a moral, nem esta pode ser reduzida à política. Embora sejam esferas diferentes, há a necessidade de uma relação mútua que não anule as características particulares de cada uma. Portanto, nem a renúncia à política em nome da moral; nem a exclusão absoluta da política.
      Mas, ainda fica a pergunta inicial: é possível a ética na política? Para uma resposta mais abrangente é preciso analisar as diferenças entre ética e moral (conceitos que usamos de forma indistinta).

      Ética e moral

      Em nosso cotidiano enfrentamos problemas morais e éticos. Por exemplo: devo cumprir a promessa que fiz ao meu amigo, embora venha a perceber que fazê-lo me causará prejuízos? Sempre devo dizer a verdade ou há ocasiões em que a mentira não apenas se faz necessária como será benéfica ao meu interlocutor? Devo persistir numa ação que moralmente é valorada como boa, mas cujas conseqüências práticas são extremamente prejudicais a outrem? Se cumpro ordens posso ser julgado do ponto de vista moral? Se meu amigo colabora com o inimigo devo denunciá-lo?
      A questão ética é, portanto, uma questão prática que extrapola a política — no sentido restrito da política institucional. É interessante como se exige ética na política e, muitas vezes, no âmbito da vida privada, procedemos de forma anti-ética. Aliás, determinados casos políticos onde se alardeia a exigência da ética, nada tem a ver com esta: são, em suma, meros casos de polícia.
      Esta relação direta com a realidade dos indivíduos contribui para o entendimento comum que assemelha ética à moral e toma uma pela outra. Um bom exemplo desta confusão conceitual está na expressão já consolidada no vocabulário as diversas profissões: os códigos de ética. Na verdade são normas, regras procedimentos, que configuram, digamos, um código de moral. Observemos que mesmos os partidos políticos têm os seus códigos de ética!
      Ética tem origem no grego ethos, que significa modo de ser. A palavra moral vem do latim mos ou mores, ou seja, costume ou costumes. A primeira é uma ciência sobre o comportamento moral dos homens em sociedade e está relacionada à Filosofia, isto é, pergunta-se sobre a fundamentação última das questões. Sua função é a mesma de qualquer teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando os conceitos correspondentes. A segunda, como define o filósofo VÁZQUEZ (1992), expressa "um conjunto de normas, aceitas livre e conscientemente, que regulam o comportamento individual dos homens".
      O campo da ética é diferente da moral: enquanto tal não lhe cabe formular juízo valorativo, mas sim explicar as razões e proporcionar a reflexão. A moral pressupõe regras de ação e imperativos materializados em realidades históricas concretas. A moral antecede à própria ética, é normativa e se manifesta concretamente nas diferentes sociedades enquanto resposta às suas necessidades. Sua função consiste precisamente me regulamentar as relações entre os indivíduos e entre estes e a comunidade, contribuindo para a estabilidade da ordem social.
      A moral não é natural. Pelo contrário, resulta da ação do homem enquanto ser social, histórico e prático. Como fato histórico, a moral corresponde aos diversos estágios da evolução da humanidade. A ética acompanha este desenvolvimento sem se reduzir à moral. No entanto, ambas se confundem porque a ética parte de situações concretas, isto é, dos fatos e conseqüentemente da existência da moral.
      Explicitado as relações e diferenças entre ética e moral, retomemos o fio da meada: é possível a ética na política? Se seguirmos o itinerário da política, dos gregos à modernidade, verificaremos que não há resposta simples nem única. De um lado, a exigência da ética enquanto componente da política expressa o desejo da sua moralização. Como a moral é essencialmente uma forma de comportamento relacionada com a consciência individual, seus critérios chocam-se com a esfera da política enquanto atividade coletiva. A política pressupõe ainda confrontos e conflitos entre interesses de grupos opostos e antagônicos, o que potencializa ainda mais o choque com os imperativos morais do indivíduo.
      Na política não é apenas o interesse individual que está em jogo, mas também os interesses de grupos e coletivos expressados pelas ações dos indivíduos. É verdade que muitas vezes aquilo que aparece como algo pertinente à coletividade, de fato mascara o interesse pessoal e carreirista do político que pede seu voto e que faz o discurso do bem comum.
      Mas, mesmo este político está preso aos interesses dos grupos que financiam sua eleição e, de certa forma, precisa mediatizar seu interesse egoísta com aquele do grupo social do qual faz parte ou do qual depende financeiramente para dar vôos políticos mais altos. Além do mais, nem que se resuma à mera retórica, ele necessita aparentar ser o que não é: um defensor dos anseios coletivos, do bem-estar social da coletividade.
      Por outro lado, a moralização da política recoloca uma antiga problemática: a relação entre o público e o privado. Foram os gregos na antigüidade que inventaram o espaço da política enquanto expressão da vontade coletiva, isto é, enquanto esfera da ação humana que submete a vontade arbitrária e privada do poder pessoal do governante às instituições públicas. Dessa forma, cunharam a distinção entre a autoridade pública — expressão do coletivo — e autoridade privada — identificada com o déspota, o chefe de família. A condição da política é justamente a ausência do despotismo.

      Os fins justificam os meios?

      Com Maquiavel a política atinge a maioridade e é concebida enquanto esfera autônoma da vida social. A política deixa de ser pensada a partir da ética e da religião. Neste sentido, Maquiavel representa uma dupla ruptura: com os clássicos da antiguidade greco-romana e com os valores cristãos medievais. A política deixa de ser pensada apenas no contexto da filosofia e se constitui enquanto um campo de estudo independente, com regras e dinâmica livres de considerações privadas, morais, filosóficas ou religiosas.
      Em Maquiavel, a política identifica-se com o espaço do poder, enquanto atividade que na qual se assenta a existência coletiva e que tem prioridade sobre as demais esferas da vida humana. A política funde-se com a realidade objetiva, com os problemas concretos das relações entre os homens: deixa de ser prescritiva — em torno de uma abstração moral e ideal — e passa a ser vista como uma técnica, com leis próprias, atinente ao cotidiano dos indivíduos.
      Para Maquiavel a política deve se preocupar com as coisas como são, em toda sua crueza, e não com as coisas como deveriam ser, com todo o moralismo que lhe é subjacente. Ao libertar a política da moral religiosa, Maquiavel explicitou seu caráter terreno e transformou-a em algo passível de ser assimilado pelos comuns dos mortais.
      Isto teve um preço. Não por acaso seu nome virou adjetivo de coisa má. Maquiavelismo virou sinônimo de uma prática política desprovida de moral e de boa fé, um procedimento astucioso e velhaco. De fato, o florentino nada mais fez do que demonstrar a hipocrisia da moral da sua época, isto é, mostrar como, por trás de uma moralidade que justificava a dominação dos senhores feudais e da senhora feudal, a Igreja Católica, a política era cruel e friamente praticada através de meios nada cristãos: traições, assassinatos, guerras etc.
      A política explicitada e descrita em sua obra com dezenas de exemplos retirados da história mais se assemelha ao inferno dantesco do que ao paraíso prometido aos pobres camponeses, desde é claro, que eles se conformassem com a exploração e a situação de miséria em que viviam. Ontem como hoje a recompensa ao conformismo está no pós-morte, no além.
      Maquiavel não introduziu as práticas amorais na política. A despeito de toda a moralidade, o ‘maquiavelismo’ que lhe imputam já se fazia presente antes dele escrever sua obra mais polêmica: O Príncipe. Quem ler este livro sem levar em consideração e estudar minuciosamente o contexto histórico no qual ele escreveu, não aprenderá nem fará justiça ao seu autor.
      Com Maquiavel cai por terra a falácia da política enquanto busca da justiça, do bem comum etc. A fraseologia cristã-medieval fundada na moral religiosa mascara o fundamento da política e do Estado: a manutenção do poder político em torno das classes dirigentes em cada época histórica. Conquistar e manter o poder: eis em síntese a finalidade essencial da política. É neste sentido que Maquiavel cunha sua famosa e mais polêmica frase: "Os fins justificam os meios”.
      Muito já foi dito e escrito sobre esta assertiva. E ela permanece atual. Em primeiro lugar, é difícil não reconhecer que há uma relação entre fins e meios. Como diria um revolucionário russo: "É preciso semear um grão de trigo se se quiser obter uma espiga de trigo".
      Há uma relação dialética entre fins e meios, no sentido de que há uma interdependência entre ambos. O problema é o que a afirmação maquiaveliana encerra em si: o que se pode e o que não se pode fazer para atingir determinado fim? Se o fim é justo, todos os meios justificam-se?
      Esta questão não pode ser satisfatoriamente respondida sem equacionarmos outra que se coloca a priori: o que justifica o fim? Ora, a realidade social na qual vivemos está longe de assemelhar-se ao paraíso ou à harmonia positivista da ordem e progresso. A ordem se mantém a ferro e fogo, isto é, a partir da ocultação ideológica das relações e mecanismos de exploração e pelo uso do aparato repressivo estatal, sempre que se faz necessário.
      Por outro lado, este século, se pensarmos filosoficamente e não apenas do ponto de vista tecnológico, enterrou a ilusão positivista — mas também iluminista e a leitura evolucionista marxista — de que a humanidade marcharia sempre numa direção progressista. Duas guerras mundiais, o nazismo, o fascismo, o stalinismo, as ditaduras de esquerda e de direita etc., negam qualquer idéia no sentido de uma evolução linear positiva.
      Mesmo de um ponto de vista essencialmente capitalista, o progresso é um fracasso pois que toda a riqueza produzida com o desenvolvimento tecnológico está concentrada cada vez mais em mãos de poucos, aumentando o fosso entre ricos e pobres — e não precisa ser marxista para verificar que a miséria aumenta no mundo, que a desigualdade cresce e que as mazelas sociais atingem até mesmo os países mais poderosos.
      Assim, a questão dos fins está relacionada à questão política-social. Porém, se entendemos a política enquanto conflitos de interesses entre grupos e classes sociais, a justificação dos fins diz respeito às opções que fazemos quanto ao projeto político. Evidentemente adotar uma ou outra opção justificará este ou aquele fim. Numa sociedade onde impera a desigualdade e as relações de dominação e exploração entre as classes e grupos sociais, os fins não são universais, como também não o é a moral.
      Justificado o fim pelo projeto social que assumimos, podemos então discutir se os fins justificam os meios. Há uma tradição, que começa com o próprio Maquiavel, que responde afirmativamente (quanto a este é preciso esclarecer que ele se refere ao Estado e não aos procedimentos morais individuais). Se pensarmos na ação política concreta seria ingenuidade, própria de um moralismo abstrato desligado de contextos históricos concretos, imaginarmos que tanto a direita quanto a esquerda não justificou os meios utilizados pelo fim perseguido.
      Esta análise nos coloca diante de problemas concretos. Partindo do pressuposto que os fins buscados são diferentes, pode a direita e a esquerda utilizar os mesmos meios? Quem luta pela liberdade pode usar recursos ditatoriais, repressivos? Quem respeita a vida humana pode adotar procedimentos de tortura assassinatos etc., em nome do objetivo político? O que diferencia uma ditadura de esquerda de outra de direita? O terrorista que luta pela liberdade de seu país justifica os meios que utiliza e que, invariavelmente, vitima inocentes?
      Os fins justificam os meios, é verdade. Mas apenas na medida em que estes meios não entram em contradição com os fins almejados. Quer dizer, nem tudo é permitido! Só é aceitável aquilo que contribui para que se atinja o fim e que não represente a negação deste. Toda a experiência do ‘socialismo real’ expressa a comprovação histórica de que não basta proclamar certos fins — por mais justos que sejam — é preciso encontrar os meios adequados.
      Não se constrói uma nova sociedade utilizando-se os mesmos recursos predominantes na velha estrutura social. Os marinheiros de Kronstadt, os camponeses da Ucrânia e os trabalhadores oprimidos por um Estado e um partido que governou ditatorialmente em seu nome que o digam. Neste caso, os fins já são outros e muito diferentes dos enunciados. Dialeticamente, os meios também mudaram e justificam-se pelos fins ora em pauta. Maquiavel tinha razão...






quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Mais Uma Questão da Educação

Assassinato a 4 rodas


Matheus Pichonelli*, Carta Capital
 
      Nas sociedades indígenas, a passagem para a vida adulta é um grande evento. Muitas vezes os rituais são marcados por testes que envolvem dor e paciência, como acontece nas tribos sateré-mawé, que vivem entre o Amazonas e o Pará. Ali, antes de se tornarem homens, os indiozinhos são obrigados a colocar a mão numa luva tomada por formigas tucandeiras. Se resistir 15 minutos, será homem.
      Nas aldeias de concreto e asfalto, o batismo para a maioridade coincide com o momento em que deixamos de ser bípedes e nos tornamos quadrúpedes, numa espécie de salto na linha evolutiva. O ritual acontece entre os 17 e 18 anos, quando os anciãos nos levam para os arrebaldes da cidade e emprestam as chaves dos seus carros. A instrução é mínima: engata aqui, coloca o pé ali (quando já alcançamos os pedais), olha sempre para o retrovisor. Numa conversão mágica entre líquidos arrancados do seio da terra (ou da camada de pré-sal) e a atmosfera de gás carbônico, passamos finalmente a andar com as próprias rodas.
      A sensação de liberdade é concluída meses depois, quando pagamos para que alguém nos ensine educação no trânsito. Para alguns, é como tirar porte de arma, embora alguns prefiram retirar o documento no mercado clandestino – porque uma das características do bom quadrúpede é a pressa. Seja como for, a ideia de liberdade tem lá sua relação com as luvas das tucandeiras. A diferença é que as picadas levam mais de 15 minutos: “Se passar na faculdade, compro um desses pra você”. Ou: “Empresto o meu desde que você passe de ano”. Ou: “Compro, empresto, financio pra você, desde que você desfile na rua do vizinho”.
      Quando nos tornamos quadrúpedes, ganhamos acesso a eventos e lugares que nos pareciam distantes até os 18 anos, como motéis, clubes e baladas. Já não precisamos combinar horários de saída ou chegada. Nem esperar a reabertura do metrô às quatro e meia da manhã. A liberdade de ir e vir é conquistada, dessa forma, por um novo contrato social, selado a partir da benevolência (e patrocínio) dos pais. Aos 18 anos, aprendemos a ser livres antes mesmo de saber lavar as próprias meias.
      Quadrúpedes de carteirinha, passamos finalmente a atuar no papel que esperam de nós. Num tempo de diálogos truncados, em que a polifonia de vozes na multidão anula os traços da personalidade que grita, lotamos de adesivos e rodas rebaixadas os automóveis que falarão por nós. Já não protestamos; buzinamos. Não corremos, aceleramos. Não agredimos, damos cavalos de pau. Cada um a seu jeito, para se fazer notar na multidão que se espreme em espaços cada vez mais reduzidos nas mesmas ruas, as mesmas zebras que protegem os bípedes e suas limitadas ideias sobre liberdade.
            Para ser quadrúpede, vale a pena deixar de comer, beber, viajar. Há, do lado de fora, uma indústria automobilística que entope, com benefícios governamentais, nossas ruas e povoam nossos fetiches: até 2014, haverá um carro para cada 4 habitantes no Brasil, embora, no mesmo País, apenas uma a cada duas pessoas tenha acesso a esgoto. As ruas não se multiplicam com a mesma velocidade das esteiras rolantes, mas a ideia de transporte coletivo é quase um retorno à idade média: por que colocar 60 bípedes num mesmo ônibus se eles podem se multiplicar, no conforto do ar condicionado, em 60 quadrúpedes solitários?
      Na passagem pela maioridade, o ensinamento nada tem a ver com espaço, e sim com conquista. As patas são quatro, mas o bem é individual – à imagem e semelhança de seus donos. Tanto que, em alguns casos, já não se sabe quem é quem: ao deixar as quatro rodas, há quem siga andando de quatro, como o caso do dono do Camaro que atropelou duas mulheres e bateu em pelo menos dois carros na volta da balada, num saldo de quatro feridos e um morto.
      Veloz e furioso, só parou no último acidente, quando voou direto para a delegacia e foi socorrido pelo papai, que bancou os 245 mil reais de fiança. Quadrúpede que é quadrúpede não fica mais de três dias na prisão.

 *Matheus Pichonelli
Formado em jornalismo e ciências sociais, é subeditor do site e repórter da revista CartaCapital desde maio de 2011. Escreve sobre política nacional, cinema e sociedade. Foi repórter do jornal Folha de S.Paulo e do portal iG. Em 2005, publicou o livro de contos 'Diáspora'.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A “Brincadeira” II

      Continuando nossa conversa iniciada na última postagem (terça, dia 04/10), pergunto: qual é a importância dada pelo povo brasileiro à educação? Analisemos dois momentos vistos esta semana nos meios de comunicação e façamos perguntas pertinentes (terão respostas?).
      Cena 1: fãs adolescentes, menores de idade, acompanhados ou não por seus pais, em pleno meio de semana, em delírio atrás do cantor canadense Justin Bieber. Idolatria pura, gerada por conglomerados da indústria cultural para vender o seu ídolo. Pergunta 1: estas crianças não teriam que estar em sala de aula? Onde estão os órgãos competentes, tão céleres em casos de problemas que alunos venham a ter dentro das escolas, mas tão ausentes em um caso como este? Afinal, pelo que eu saiba a pura presença e/ou autorização dos pais para que seus filhos faltem dias e dias de aula não justificam tal desatino. Mensagem passada pelo acontecimento: assistir aula não é tão importante quanto assistir o Justin! Pontos para a ignorância (idolatrem ídolos com pés de barro!), perda para a educação.
      Cena 2: novela Fina Estampa, horário que sabemos que nossas crianças e adolescentes estão assistindo televisão. A personagem, menor de idade, freqüenta livremente o baile funk, e apresenta uma “música” de sua autoria, na qual afirma que é péssima na escola, que tira zero em quase tudo, mas tira 10 no popozão. E a mãe uma criatura abestada, exclama que sabia que a filha tinha talento! Talento para quê???? Para afirmar mais uma vez o triste estereótipo de que a jovem da favela não dá para o estudo, só para o funk? Vai o quê, na novela, virar mulher fruta? Tudo muito triste, mesmo porque nós, professores, estamos cansados de presenciar o quanto falta de diálogo entre boa parte dos nossos alunos e seus pais.




terça-feira, 4 de outubro de 2011

A “Brincadeira”

Silvia Costa da Silva


      No próximo ano teremos eleições municipais. Porém, está a cada dia que passa mais difícil escolher um candidato que mereça o nosso voto.
      Dá nojo assistir às propagandas partidárias obrigatórias e seus velhos discursos de que as prioridades do governo serão a educação, a saúde e a segurança pública. Já repararam que estas são, justamente, as áreas mais carentes de atenção do poder público?
      Irei me concentrar na minha área de atuação: a educação. Vivemos nas escolas públicas uma realidade, no mínimo, esquizofrênica. Por um lado há uma pressão intensa para que os alunos sejam aprovados. Os alunos têm, hoje, 4 recuperações ao ano, fora bimestres com trabalhos variados e pouca matéria sendo dada. Preguiça do professor? Não, houve uma redução significativa das cargas horárias de várias disciplinas (um exemplo: o aluno tinha 4 aulas semanais de História. Hoje, dependendo do ano que está cursando, tem apenas 2 aulas semanais). Do outro lado, o governo exige, através das avaliações periódicas, bom desempenho do aluno. Como assim?
      Solução? Claro que há. O que não há é vontade política para tal. Nas escolas há professores mal remunerados, que têm que trabalhar em vários empregos para dar conta das despesas de suas famílias. E ninguém viaja para resort de luxo no nordeste, ninguém anda de helicóptero ou avião. É despesa banal do dia-a-dia mesmo, colégio, saúde, moradia. Afinal, se você não pagar um plano de saúde para a sua família vai acabar morrendo em uma eterna peregrinação pelos hospitais públicos, como a televisão tem mostrado exaustivamente nos últimos dias.
      Noto em meus alunos um verdadeiro descrédito em relação à educação. Se eles soubessem o futuro negro do nosso país, não estariam tão “na boa”. Senão, vejamos o que a História tem à nos ensinar: não há mão-de-obra qualificada no Brasil em quantidade suficiente para atender à demanda. E isso você apura conversando com qualquer pessoa do setor das indústrias. Enquanto isto, a Europa está em crise, com este tipo de mão-de-obra sobrando por falta de emprego.
      Durante muitos anos os europeus vêm protestando, em uma visão equivocada sobre a sua realidade, contra a presença imigrante em seus países, “roubando” seus empregos. Porém, imigrantes na Europa destinam-se à parte do mercado de trabalho que os europeus em geral não ocupam: o da mão-de-obra não qualificada.
      Daqui a alguns anos (mas não muitos) serão os brasileiros que estarão protestando por este motivo, ou seja, a ocupação do mercado de trabalho por imigrantes. Porém, a parte ocupada será justamente a melhor, ou seja, a da mão-de-obra qualificada, a dos melhores salários. Para os nativos sobrarão os subempregos, e a junção da ignorância com a necessidade irá (e já nos dá exemplos) gerar movimentos sociais explosivos. Será que iniciativas populistas de bolsas isso e aquilo darão conta desta realidade? Afinal, norte-americanos e europeus são extremamente avessos ao Estado do bem-estar social. Serão os estrangeiros naturalizados os futuros eleitores. Por enquanto agradar a turba ignara faz sentido para a maioria da classe política. No futuro não fará mais.