quarta-feira, 8 de maio de 2013

Botequim

Jornal do Brasil
Maria Lucia Dahl


Fui ver a peça Botequim, do Gianfrancesco Guarnieri, escrita há quarenta anos e dirigida por Antonio Pedro naquela época e agora.
Não vi a peça na sua primeira versão, mas imagino que o tal Botequim onde pessoas de todas as espécies frequentam, fosse uma espécie de oásis no meio de uma ditadura, na década de setenta, onde todos bebiam, comiam, conversavam e fugiam dos policiais.
Hoje continua do mesmo jeito, só que, num sentido figurado, a chuva pesada que cai lá fora, faz as pessoas entrarem no botequim e mostrarem o Brasil de agora, onde elas parecem legais, mas em vez de serem dominadas pela ditadura e lutarem pela liberdade, lutam pelo dinheiro, fazendo qualquer coisa por ele e contradizendo tudo o que se lutava para conseguir, como a liberdade e a ideologia.
Na versão da peça de hoje, as pessoas são todas falsas. A viúva, dona do botequim, que é uma simpatia com seus frequentadores e amigos, é, na verdade, uma mulher que matou o marido para ficar com o seu dinheiro. No meio de uma conversa animada e muita cerveja entra um ladrão que rouba as pessoas, como se fosse muito normal, a não ser pela cara dele, coberta com uma máscara. E acho que a maneira de falarem da liberdade, nessa nova versão da peça, foi só no sentido sexual , quando um casal que está ali sentado desde o início numa mesa e brigando entre eles, acaba fazendo as pazes quando ela resolve dar pra ele, o que se entende como a forma de sexualidade liberada na década de 70 quando a maioria das moças deixou de ser virgem.
 O que entendi dessa segunda versão foi no que o país se tornou depois da ditadura, quando o povo se tornou livre das prisões e torturas para se transformar em escravo do dinheiro, fazendo qualquer coisa por ele, sem nenhum princípio, ética, ou ideologia, enquanto nos anos 70, dava-se a vida por elas à espera de um mundo unido e sem guerra.
Os atores de Botequim são maravilhosos e a Marcia do Valle, atriz e cantora que substitui na versão moderna a cantora Marlene, é fantástica nas duas categorias.
Foi a Márcia também que lutou durante alguns anos para produzir esta peça, com direção de Antonio Pedro e todo um grupo de ótimos atores à procura de um financiamento
Parabens para ela que conseguiu um happy end para o seu objetivo.
Dias depois de assistir a este espetáculo, recebi um telefonema da atriz e produtora Betse de Paula dizendo que nós ganhamos 12 prêmios no festival de audiovisual de Pernambuco, com o filme que escrevi o argumento e ela dirigiu e produziu - Vendo ou alugo -, cujo roteiro foi escrito por nós duas e a Julia Abreu, que também durou anos para se realizar, por causa dos mesmos motivos de Botequim: dinheiro! Por que será que é tão difícil fazer cultura no Brasil antes durante ou depois da ditadura? Por que a grana se espalha pelos políticos e partidos e entram num circulo sem saída, transformando-se em mensalões, por exemplo?
Será que esse nosso novo botequim melhorou um pouquinho, depois da ditadura, pelo menos no sentido de liberdade, ou continua, outra vez tudo escondido dentro de um corpo de uma jovem, aparentemente nu?

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Caio Prado Júnior: a derrota do marxismo no Brasil


Blog da REA

JOÃO ALBERTO DA COSTA PINTO*
imagesPara este dossiê dedicado ao centenário de nascimento de Caio Prado Júnior**, um dos mais importantes intelectuais brasileiros do século XX, desenvolvo um argumento de análise sobre a trajetória e o conjunto de sua obra centrado numa hipótese explicativa aparentemente ambígua, qual seja: o Caio Prado Júnior apresentado nas páginas a seguir definir-se-á como um intelectual demarcado teoricamente pelo “marxismo soviético” (stalinismo) e politicamente como uma expressão da visão de mundo autoritária da “democracia” do positivismo neocorporativista (na matriz durkheimiana). A ambigüidade da afirmação estaria no fato de se considerar aqui as visões de mundo stalinista e neocorporativista como antípodas, mas, ao contrário, o marxismo-stalinista e o positivismo-neocorporativista serão aqui considerados como termos estruturalmente complementares no que se refere à definição do que entendo ser o fundamental na caracterização da visão de mundo expressa no conjunto de obra e práticas da trajetória caiopradiana.
1. Trajetória institucional.
Caio Prado Júnior nasceu em São Paulo, em 1907, filho da família Silva Prado, uma das mais tradicionais famílias paulistanas. Fez os estudos básicos no Colégio São Luís, importante colégio da capital paulista. Adolescente, estudou por dois anos num colégio em Eastbourn, na Inglaterra. Em 1928, formou-se Bacharel em Direito na Faculdade de Direito de São Paulo (Faculdade São Francisco que em 1934 foi incorporada à USP). Em 1928, casou-se com Maria Hermínia Cerquinho Prado. Depois de formado, Caio Prado exerceu por algum tempo a profissão de advogado, atividade logo abandonada por não concordar com as práticas profissionais de alguns dos principais escritórios de São Paulo. Seu casamento foi subvencionado pelos seus pais até a data de separação, acontecida em 1939. Em 1940, recebe uma grande herança da avó e junto com Monteiro Lobato, em 1942 utiliza o dinheiro dessa herança no planejamento e execução do projeto da Editora Brasiliense e da Gráfica Urupês.
Sofreu a sua primeira prisão por motivos políticos por causa de um exclamativo: “Viva Getúlio Vargas!”, dado em 1930 numa festa em homenagem ao candidato Júlio Prestes acontecida no Clube Trianon em São Paulo. Em 1931, filiou-se ao PCB. Antes dessa filiação tivera experiência política frustrada com o Partido Democrata Paulista. Nesse período já era leitor de algumas das principais publicações sobre o socialismo soviético.[1] No ano de 1932, fez uma viagem de um mês com sua esposa à URSS. Dessa viagem resultou o livro, publicado em 1934 – URSS: Um novo mundo. Após a viagem, Caio Prado Junior ministrou várias conferências referentes à experiência do socialismo soviético. Relacionado ainda com a URSS, traduziu e publicou em 1935, pelas Edições Caramuru (São Paulo) o livro – manual de Nicolau Bukharin – Tratado do Materialismo Histórico (1922). Este livro teve divulgação mundial e gerou significativa polêmica com alguns dos principais quadros da Intelligentsia do marxismo europeu nas décadas de 1920 e 1930, formuladas como duras críticas à natureza positivista do marxismo bukharinista, pela sua tentativa de “melhorar” o marxismo, pelo fato do pensador bolchevique buscar uma aproximação metodológica com as ciências sociais acadêmicas, principalmente aquelas centradas pelas proposições da reflexão sociológica durkheimiana.[2]
Em novembro de 1935, depois de uma intensa participação política junto à Aliança Nacional Libertadora (onde fora presidente do Diretório Provisório de São Paulo), quando dos acontecimentos da Intentona Comunista, promovida pelo PCB, Caio Prado foi novamente preso. Nessa ocasião estava em viagem por Porto Alegre. Quando dos fatos da Intentona, o interventor Flores da Cunha, que era muito amigo da família de Caio de Prado, sugeriu-lhe uma fuga para a Argentina. No entanto, afirmando sua inocência frente à organização dos acontecimentos do levante, recusou-se a fugir. Afirmou às autoridades policiais que nada sabia do golpe (o que é bem provável), foi liberado para retornar a São Paulo e ao chegar à capital paulista, quando se apresentou às autoridades foi imediatamente preso. Ficou na prisão até 1937, data em que foi solto por falta de provas quanto à sua participação na Intentona. Imediatamente, com sua esposa e filhos, viajou para a França num vapor comercial francês saído do Rio de Janeiro. Viajou até Casablanca, no Marrocos, e de lá seguiu sozinho para Paris. A esposa e os filhos continuaram a viagem no mesmo navio, chegando a Paris, dias depois. Caio Prado e sua família ficam na França até 1939. Ali, tem contato intenso com a cultura universitária, assistiu aulas de Marc Bloch, Lucien Febvre, Marcel Mauss, Fernand Braudel. Alguns destes, principalmente Braudel, já eram amigos seus. Amizade construída quando a “missão de professores franceses” esteve por vários anos dando cursos na recém fundada Universidade de São Paulo. Este ambiente intelectual – de fortes colorações durkheimianas – foi determinante para o alicerçamento de seus fundamentos teóricos.[3]
fig 5Em 1933, publicou o seu primeiro livro: Evolução Política do Brasil. Pequeno ensaio historiográfico que se fez clássico por sua ênfase numa interpretação materialista da História que rompia com uma tradicional historiografia descritiva. Com este livro iniciou-se o debate de Caio Prado com a agenda do PCB, no que se refere à questão da presença ou não do feudalismo no Brasil Colônia. Mas, é com o livro Formação do Brasil Contemporâneo, publicado em 1942, que Caio Prado atinge seu ápice como historiador. Este é o seu livro fundamental, mas ao contrário do que se poderia esperar, diante do que escreveu em 1933, este não é um livro marxista.
Em 1952, sua produção intelectual muda de tema. Publica nesse ano, em dois volumes, a obra Dialética do Conhecimento. Trata-se de uma extraordinária apologia stalinista do marxismo. Nesse trabalho desenvolve o ambicioso projeto de construir, para o mundo do socialismo que avançava a largos passos, aquilo que chamará de Lógica Dialética Positiva, isto é, as bases epistemológicas de um conhecimento que não deveria se apresentar mais como o negativo dos sistemas de pensamento do capitalismo. Escudado num positivismo centrado em psicologias comportamentais procurava reformar conceitualmente o próprio marxismo. Teve duras respostas do PCB, mas, ainda assim, foi uma obra muito lida entre os comunistas brasileiros. O autor complementou as questões levantadas nessa obra, quando publicou em 1959, o livro Notas Introdutórias à Lógica Dialética. Ambos os livros procuravam desenvolver aquilo que chamará de Lógica Dialética Positiva, isto é, um projeto epistemológico para o marxismo contemporâneo onde a lógica dialética não se apresentasse mais como o “negativo” da “Metafísica” (a epistemologia do modo de pensar capitalista) tal como “apresentado” com Marx e Lênin, com a vitória do comunismo soviético o momento agora era o de realizar as bases de uma nova “epistemologia”, a epistemologia do socialismo vitorioso, a Lógica Dialética Positiva. Meu argumento é o de que para esse projeto filosófico, Caio Prado desenvolvia o mesmo sentido sugerido na obra de Bukharin, já citada, isto é, reformar o marxismo, “atualizando-o”, com o que havia de melhor na ciência contemporânea. Se a aproximação de Bukharin é com Durkheim, Caio Prado no seu projeto epistemológico aproxima-se da filosofia da linguagem e de estudos sobre a neurofisiologia do cérebro.
Estimulado por vários amigos resolve participar em 1954 de um concurso público à cátedra de Economia Política na Faculdade de Direito São Francisco – USP, instituição onde se formara em 1928. Dão-lhe o título de livre-docente pela tese que defendeu e que depois publicou em livro – Diretrizes para uma Nova Política Econômica Brasileira. Ganhou o título, mas não o concurso. Com esse livro, definia-se o conteúdo programático do grupo de intelectuais que junto com Caio Prado formam o que se poderia chamar de “PCB paulista”. Desse livro, estabeleceu-se em definitivo a agenda política do grupo, que no ano seguinte estará com Caio Prado na fundação da Revista Brasiliense, revista que circulou (51 números) até fevereiro de 1964. A edição março-abril desse ano foi destruída na gráfica pelas forças da repressão. Esta revista é um marco editorial do período, um dos maiores documentos de reflexão sobre os projetos que a esquerda nacionalista desenhou nas conjunturas do período de sua circulação, e foi também o “partido comunista” de Caio Prado Júnior. Sua realização foi muito criticada pelo PCB que por sua dissidência editorial, acabou por se constituir num espaço editorial amplo e heterodoxo para a expressão intelectual de esquerda no Brasil. Cumpre lembrar, que na ocasião, isto é, no período de sua circulação (1955-1964), o PCB também tinha a sua imprensa. No que se refere ao debate teórico, para o marxismo brasileiro, a revista pecebista Estudos Sociais teve também um papel importante na divulgação do ideário marxista-comunista no Brasil. Nesta revista, aparecem as primeiras traduções de textos de Georg Lukács, Lucien Goldmann, Antonio Gramsci, entre outros clássicos que sempre foram marca heterodoxa dissidente ao stalinismo. Nessa revista apareceram também os primeiros trabalhos de Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. Na Revista Brasiliense, os primeiros trabalhos de Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni. Isto é, o marxismo carioca (a princípio ligado ao PCB e depois plasmado na Universidade) e o marxismo acadêmico (uspiano) paulista.
No ano de 1957, publica um interessante livro – Esboço dos Fundamentos da Teoria Econômica – que é pouco conhecido, mas creio ser de fundamental importância por ali apresentar, principalmente nos seus dois últimos capítulos, de modo antecipado, o sentido de sua argumentação crítica contra a agenda da Revolução Brasileira proposta pelo PCB, que desenvolverá em definitivo em 1966, no seu livro de maior repercussão política – A Revolução Brasileira. Repercussão essa motivada pelo intenso debate programático sobre o sentido revolucionário que as esquerdas deveriam manifestar no Brasil demarcado por uma conjuntura francamente conservadora, como era aquela gestada após o golpe militar de março de 1964.
fig 6Em 1961, junto com sua filha e alguns amigos empreende outra viagem à URSS. Dessa viagem, Caio Prado escreve o livro – O Mundo do Socialismo(1962). Este é um livro praticamente desconhecido. É uma apologia stalinista, uma apologia “stakhanovista” ao mundo do socialismo em realização no Leste europeu, para o autor, a prova empírica que lhe justificava o projeto de redimensionamento epistemológico do marxismo.
O próximo livro de Caio Prado, publicado em 1966 será A Revolução Brasileira. Era o seu acerto final de contas com a agenda teórica e política do PCB. Este livro gerou um intenso debate no seio da esquerda nacional, contudo, a agenda ali proposta, não sugeria, como se poderia supor nada que estabelecesse um vínculo revolucionário no Brasil com práticas socialistas, muito pelo contrário, a agenda pradiana limitava-se a algumas melhorias trabalhistas, principalmente para os trabalhadores no campo, mas, mesmo assim tais propostas pouco avançavam sobre a legislação já existente. Caio Prado não oferecia absolutamente nada, como alternativa transformadora da realidade nacional. O curioso é que o livro por conter uma pesada crítica às diretrizes do PCB, no que se refere à interpretação do passado colonial e aos caminhos da revolução brasileira, acabou por ser adotado como referência basilar a grupos de esquerda dissidente, envolvidos, inclusive, alguns deles, com a luta armada, aspecto esse que sempre foi criticado pelo autor.
Em 1968, um novo concurso para docência, agora no departamento de História da USP, para a cátedra de História do Brasil. Concurso que visava preencher a vaga de Sérgio Buarque de Holanda, que se aposentara em protesto às prisões de vários colegas e alunos da universidade pela repressão da ditadura militar. Curiosa situação essa a do intelectual comunista tentando preencher a vaga de um professor que se aposentara compulsoriamente porque protestava contra a ditadura militar. Caio Prado inscreveu-se para o concurso com a tese “História e Desenvolvimento” que publicou em 1974. Nesta tese sintetizava sua programática teórica desenvolvida desde a década de 1930. O regime militar, contudo, não permitiu a realização do concurso. Mais uma vez a universidade fechava-lhe as portas, ainda que acabasse depois por participar dela com certa regularidade, como argüidor de bancas de tese.
Por causa de uma entrevista, que foi mal editada, a um periódico estudantil da Faculdade de Direito foi preso mais uma vez em 1969. Prisão que durou até meados de 1971. Nesse período teve um grande choque emocional, com a notícia do suicídio do seu filho, Roberto Mioac Prado de apenas 21 anos, filho do seu segundo casamento com a senhora Helena Mioac. Nunca se recuperou desse fato. Sua filha, Danda Prado, afirmou-me que foi por causa de tal acontecimento que o seu pai de maneira cada vez mais progressiva passou a sofrer de grave doença neurológica ao longo da década de 1970, doença essa que o levou à perda definitiva de sua consciência em 1980. De 1980 a 1990, viveu praticamente em estado vegetativo graças à ajuda de aparelhos. Faleceu em setembro de 1990.
Enfim, com estas rápidas notas sobre a trajetória pessoal é possível ter-se uma idéia sintética sobre os caminhos da obra e pensamento de Caio Prado. A seguir apresento um sumaríssimo esboço sobre o sentido estrutural de seu projeto político que o conjunto de sua obra apresenta.
2. Projeto teórico.
Durante a sua vida, o período em que Caio Prado Júnior mais intensamente esteve envolvido com a política foi, sem dúvida, aquele da ação da Aliança Nacional Libertadora (ANL – 1934-1935).
Numa série de oito artigos, publicados no jornal paulista A Platéa, em julho e agosto de 1935, jornal que era dirigido por Brasil Gerson e que foi um dos principais órgãos do movimento aliancista em São Paulo, Caio Prado Júnior fundamentou não só as premissas do seu modelo, como também caracterizou o sentido geral do movimento. Comenta nesses artigos o programa da Aliança. Fundamentalmente, a posição política do movimento escudar-se-ia em dois aspectos: o antiimperialismo e a posição contrária ao sistema agrário em vigência. Contra o imperialismo por este ser responsável pela nossa situação de semicolônia das grandes potências que dominavam o mundo, fato esse que gerava a impossibilidade do país constituir para si uma estrutura econômica nacional, própria e autônoma. O caráter de semicolônia devia-se em grande parte à organização do sistema agrário de fazenda, que em larga escala estava fundado na exploração agrícola do trabalho assalariado, ou semi-assalariado de camponeses sem terra. E o aspecto característico dessa estrutura agrária dava-se pela produção de gêneros tropicais, atendendo somente as necessidades dos mercados externos. Como corolário dessas marcas estruturais e como proposta de transformação desse estado de coisas, Caio Prado sugere fundamentalmente a criação e realização de um sólido mercado capitalista interno, porque só com esse é que se caracterizaria então um Brasil economicamente autônomo. E concluía, afirmando que a criação de uma economia nacional e progressista só pode [ria] ser obtida com a transformação do regime agrário, isto é, pela abolição do sistema de fazendas e grandes propriedades e entrega das terras aos camponeses.[4]
Com a afirmação da necessidade de uma economia nacional, de um mercado nacional, como o elemento da transformação fundamental, isto é, a base da revolução brasileira, Caio Prado aponta-nos também o sujeito de tal transformação: o Estado Nacional. Um Estado marcadamente interventor. Não sugere qualquer indicativo de estatização, indica apenas a necessidade de regulação. Adianto também a afirmação de que não se trata de um Estado similar ao modelo keynesiano. Um Estado nacional que procuraria obstaculizar internamente a presença das atividades econômicas do imperialismo (agregadas principalmente ao latifúndio) e ao fazer isso estaria estimulando a efetividade do mercado interno e isso traduziria a superação das práticas remanescentes do antigo sistema colonial (em síntese, esta é a súmula do projeto político do autor).
Em meados da década de 1950, como já afirmei, o autor funda com um grupo de intelectuais a Revista Brasiliense. O contexto político é distinto, mas os problemas estruturais do país são os mesmos apontados no diagnóstico de 1935. Sem vínculos partidários e aceitando textos assinados por intelectuais dos vários setores progressistas da sociedade, a revista assume nítidas feições nacionalistas. E este nacionalismo tem como epicentro argumentativo a produção teórica de Caio Prado Júnior. Um ano antes do primeiro número da revista, em 1954, Caio Prado publicou o livro – Diretrizes para uma nova política econômica brasileira, que, conforme já mencionado, tratava-se da monografia do concurso à cátedra de Economia Política da Faculdade de Direito. Segundo Elias Chaves Neto, a ocasião da defesa pública deste trabalho constituiu-se em grande acontecimento para a intelectualidade paulista, e que as teses ali apresentadas acabaram por balizar a discussão da proposta nacionalista junto aos setores da inteligência progressista paulistana que acabaram por organizar a Revista Brasiliense.
Nesse livro, Caio Prado constata que o Brasil tinha ainda uma tarefa básica a realizar: romper com as amarras ainda existentes do “sistema colonial”. Romper com a situação que afirmava o Brasil como país dependente no cenário internacional, como um apêndice da economia internacional, assim, o Brasil teria que ainda construir o seu capitalismo, para com isso deixar de ser apenas um produtor de matérias-primas destinadas ao abastecimento de mercados externos, porque tal situação preservava a estrutura da anomalia histórica, a de uma economia que continuava girando em círculos, tal como no passado, montando e desmontando ao sabor daqueles centros, empresas produtoras que são como apêndices longínquos deles. Ou seja, quase duas décadas depois, o mesmo diagnóstico que já vinha apresentando desde a década de 1930 e praticamente com as mesmas alternativas de transformação. Três aspectos haveriam de nortear as alternativas superadoras desse legado imperialista: a consolidação do Mercado interno, a efetivação da produção industrial nacional, sob a ação efetiva do Estado Nacional.
Caio Prado sugere mais uma vez que o mercado interno passe a condicionar uma atividade produtiva verdadeiramente nacional. O autor entende que a produção não se impõe por si mesma, mas deveria ser determinada pelo mercado interno. Esse mercado interno, na década de 1950, já apresentava uma força significativa, a atividade industrial paulista. Com a indústria nacional em afirmação, Caio Prado encontrava as bases da negação do sistema colonial, isto porque, nela se encontrariam as possibilidades do alargamento do mercado interno, sugeria uma revolução capitalista brasileira feita pelos consumidores, contudo, tal mercado não se definia a priori conforme o modelo clássico liberal. Como corolário de tal processo, impunha-se a necessidade da reforma agrária, porque o trabalhador rural ao ter sua situação melhor definida economicamente, conseqüentemente estaria ampliando o consumo no mercado interno. No que se refere ao papel do Estado, o autor em momento algum sugere, volto a dizer, qualquer estatização. O que propõe é um Estado com capacidades regulatórias e argumenta que o Estado Nacional deveria juntar-se às forças sociais progressistas: o proletariado, o campesinato e a burguesia industrial e comercial livre de compromissos com o imperialismo e capital financeiro internacional.
O Estado Nacional para Caio Prado não deveria afirmar-se como representação de classe, mas como um representante geral dos interesses nacionais. Um Estado antiimperialista que deveria estimular o que chama de economia integrada. No seu livro de 1966 – A Revolução Brasileira – definiu economia integrada como uma prática que só poderia propor-se pela íntima articulação, no mercado nacional, da produção e do consumo junto à ação reguladora do Estado. Para Caio Prado, a iniciativa privada dentro de um processo de efetivação de uma economia integrada deveria ter outro papel, do que aquele que normalmente desenvolve, ou seja, as atividades econômicas teriam de ser controladas por fatores além e acima da iniciativa privada. Contudo, em momento algum da sua obra, o autor defende a eliminação da iniciativa privada, o que sugere efetivamente é a eliminação da “livre” iniciativa privada, como afirma, não uma iniciativa privada deixada a seu arbítrio e livre, mas estritamente regularizada e encaminhada para aqueles setores de atividade onde a necessidade dela se faça mais sentir frente aos interesses do país. E complementada e substituída sempre que convier pela ação direta do Estado. Poder-se-ia caracterizar esta argumentação como uma tese keynesiana no modelo de economia política do autor, mas esta também é uma tese de Azevedo Amaral, assim parece-me mais factível aproximar Caio Prado da agenda de Azevedo Amaral desenvolvida junto ao Estado Novo do que à de Keynes, ainda mais porque o modelo keynesiano pontua sua agenda frente à reorganização do capitalismo. Ora, no Brasil a questão era como organizar o capitalismo, não como reorganizá-lo, por isso, e também pela aproximação da noção pradiana de “economia integrada” com a noção de Azevedo Amaral de “economia equilibrada”, creio ser esta uma premissa mais adequada para contextualizar historicamente o projeto pradiano: apresentá-lo como um modelo tardio no quadro do pensamento autoritário da década de 1930.
Em 1961, o autor manifestava preocupação com o caráter “incipiente” do investimento capitalista no Brasil, que diante de um quadro de aceleração da inflação, via-se em situação de prejuízo para com as atividades produtivas, fato esse que poderia então comprometer o funcionamento da economia nacional em conjunto. Além da inflação a alta taxação dos lucros, segundo o autor, que também era empresário, também poderia levar à descapitalização das empresas, privando-as dos recursos financeiros de que necessitam para seu desenvolvimento, e comprometendo assim o próprio desenvolvimento do país. Não sei se estava ou não preocupado com os seus investimentos capitalistas particulares, mas o fato é que em 1961, numa conjuntura de extrema densidade política para a esquerda brasileira, o autor sugeria nela um modelo alternativo de prevenção de crises do capitalismo nacional, uma proposta de harmonizar a situação e que não prejudicasse o financiamento que as empresas necessitam e que também pudesse atenuar o sacrifício dos trabalhadores. Na sua proposta sugeria a criação de um fundo que organizasse a capitalização de uma parte dos lucros nas próprias empresas que os produziram, mas em favor não dos capitalistas titulares das mesmas empresas e sim do Estado, em modelo similar aos pactos corporativos do fascismo brasileiro dos anos 1937-1945, o autor afirma que esse fundo deveria ser administrado pelo Estado através de algum órgão paraestatal. Esse fundo teria participação no capital de todas as empresas do país – das de maior significação e vulto pelo menos, e aplicaria os benefícios daí decorrentes em programas de assistência social. E quais poderiam ser as conclusões políticas do modelo que Caio Prado Júnior sugeria como o seu exemplo de agenda para a Revolução Brasileira? Afirma que o principal fato resultante seria o de que com o fundo ninguém teria prejuízo, haveria apenas, por parte dos capitalistas, um sacrifício pessoal (sic) e não para as suas empresas porque essas teriam os recursos de reinvestimento assegurados, contudo, o mais importante é que em termos políticos, com tal gesto, os capitalistas poderiam então passar a contar com muito mais boa vontade de seus empregados, porque esses passariam a estar se esforçando não mais apenas para o lucro e o engrossamento dos capitais de seus patrões, mas naquela circunstância, os esforços do seu trabalho seriam também por uma entidade pública que tem participação na empresa e que os beneficia através da assistência que presta.[5] Com este exemplo descrito da interpelação política conjuntural do intelectual Caio Prado Júnior, temos uma das marcas emblemáticas da derrota do marxismo do Brasil.
3. Caio Prado Júnior: a derrota do marxismo no Brasil.
Diante do que afirmei podem-se depreender os principais aspectos que matrizam o ideário de Caio Prado Júnior. O primeiro deles é que em momento algum de sua obra defende uma revolução brasileira de tintas socialistas. A revolução no Brasil seria fundamentalmente capitalista, mas propositora de um capitalismo nacional, isto é, um tipo de capitalismo diferenciado do capitalismo imperialista. As práticas capitalistas nacionais haveriam de combater os laços internos de alguns setores vinculados estreitamente com as práticas imperialistas externas, justamente os setores que ainda demarcavam a presença do antigo sistema colonial – o caso do latifúndio é clássico. Assim, ao combater as heranças do sistema colonial combatia-se o imperialismo, logo, a natureza estrutural do capitalismo brasileiro seria diferenciada daquela do capitalismo internacional. A razão de tal fato estaria dada pela tipicidade societária brasileira, uma sociedade não seviciada pela lógica dos egoísmos societais impostos pela ordem capitalista liberal, essa característica brasileira seria uma das principais resultantes da evolução histórica nos “nexos morais” de tipo superior que sugere na argumentação apresentada no seu livro de 1942, que, é preciso que se ressalve (pelo contexto em que foi publicado – durante o holocausto racista do nazismo), era um livro demarcado por passagens expressivamente racistas, além de apresentar também ambíguas influências de teses similares àquelas de Oliveira Viana e Gilberto Freyre.
Em segundo lugar, pela persistência das práticas institucionais do velho modelo do sistema colonial na contemporaneidade do país, e como não se haviam efetivado práticas genuinamente capitalistas (conforme o modelo liberal ocidental) na sociedade brasileira (tese fundamental apresentada no livro de 1962, que a maioria dos estudiosos “oficiais” da obra pradiana se esquiva de comentar), com a ação normativa do Estado, o capitalismo a ser construído pautar-se-ia então por práticas altruístas – esse seria o organismo em franca e ativa transformação que (afirma isso de modo peremptório no seu livro de 1942) não tinha se estruturado no Brasil ainda em linhas definitivas. Como as práticas do capitalismo internacional (vistas na sua essenciabilidade pela marca do egoísmo liberal) não tinham deitado raízes nas práticas sociais do Brasil, o capitalismo nacional brasileiro em formação não teria esse vício de origem, isto é, não teria práticas sociais egoístas típicas do individualismo da cultura liberal. O Capitalismo Brasileiro seria composto por bases altruísticas, de solidariedade orgânica e o que garantiria tal especificidade seria, sem dúvida, o Estado Nacional regulador. Desse modo, para Caio Prado Júnior, o Estado nunca seria um espaço de interesses privados, mas dos interesses gerais da sociedade pensados e articulados em voz uníssona. Ora, tal ideário era uma das marcas substantivas do positivismo reformador, tão presente na cultura política brasileira, positivismo que remonta a Saint-Simon, Auguste Comte, e noutra variação mais “sofisticada”, a Emile Durkheim (que tinha inclusive, na sua proposta coletivista uma tese de socialismo evolucionário, oriundo não das contradições da exploração capitalista, mas das características de uma prática capitalista de espírito regulatório). Nesse sentido, tenho como premissa global de interpretação do modelo pradiano o fato de que o conjunto de sua obra e de suas práticas institucionais deveria ser considerado pela análise historiográfica como exemplo de um modelo tardio inserido no quadro do pensamento autoritário brasileiro, o quadro daqueles que como Azevedo Amaral, por exemplo, defenderam junto ao Estado Novo os emblemas da democracia autoritária, no caso pradiano, uma democracia autoritária neocorporativista .[6]


* JOÃO ALBERTO DA COSTA PINTO é Doutor em História (UFF) e docente no Departamento de História – Universidade Federal de Goiás (UFG). Publicado na REA, nº 70, março de 2007, disponível emhttp://www.espacoacademico.com.br/070/70esp_pinto.htm
** Dossiê publicado na REA, nº 70, março de 2007, disponível emhttp://www.espacoacademico.com.br
[1] Um exemplo das suas preocupações bibliográficas está manifesto na resposta que deu à enquête promovida pela Revista Acadêmica (Rio de Janeiro, n. 11, 1935), quando o diretor da revista, Murilo Miranda perguntou a Carlos Lacerda e a Caio Prado Júnior, quais deveriam ser os títulos fundamentais para a constituição de uma biblioteca socialista. Lacerda listou trinta e cinco títulos e quase todos eram textos de Marx e Engels. Caio Prado Júnior listou apenas cinco títulos, a saber: Tratado do Materialismo Histórico, de Nicolai Bukharin; Précis d’economie politique, de Lapidus e Ostrovitianov;Questions fondamentales du marxisme, de Georg Plekhanov; Imperialismo, último estágio do capitalismo, de V. I. Lênin e, por fim, L’etat socialiste, de Anton Merger. Não faz nenhuma referência às obras de Marx. Sobre esta pesquisa da Revista Acadêmica, consultar KONDER, Leandro. O Marxismo na Batalha das Idéias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, pp. 33-34.
[2] Sobre esta obra de Bukharin, consultar – COHEN, Stephen. Bukharin: uma biografia política, 1888-1938. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, especialmente o capítulo 04: A teoria marxista e a política bolchevique – Materialismo histórico de Bukharin, pp. 129-145. Sobre o debate que o livro provocou e as críticas do “marxismo ocidental”, consultar: Vários Autores… Bukharin – teórico marxista. Belo Horizonte: Oficina de Livros, 1989, destacando o texto de Lukács: Tecnologia e Relações Sociais (pp. 41-51); de Gramsci: Notas críticas sobre uma tentativa de ‘ensaio popular de sociologia’ (pp. 83-127). A primeira edição brasileira do livro do Bukharin, que foi traduzida por Caio Prado Júnior em tradução não assinada, saiu pela editora Caramuru (São Paulo, 1935, em quatro volumes. A notícia de ser Caio Prado o tradutor é dada por Edgard Carone, no seu artigo – Caio Prado Júnior. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 32, São Paulo, 1991, pp. 214-217 [p. 214]. Essa tradução foi revista pelo próprio Edgard Carone quando da segunda edição da tradução em português: BUKHARIN, Nicolai. Tratado do Materialismo Histórico. Lisboa/Porto/Luanda: Centro do Livro Brasileiro, s.d.p. Mas, ante tudo o que se relaciona às expectativas neopositivistas do marxismo bukharinista, é importante ressalvar que nesse livro, que foi publicado num contexto de grandes debates sobre os destinos políticos da revolução, debates que defendiam uma democratização na gestão da revolução, nesse livro, Bukharin deixa claro que se a revolução continuasse sendo comandada por práticas centralistas (capitalistas gestoriais) de chefes como Lênin, teria como resultado a excrescência autoritária de uma nova classe, os gestores. Na mesma data de publicação dessa obra, um dos grandes teóricos do marxismo russo (que a “revolução” gestorial de Lênin esmagou), Alexander Bogdanov, com o seu grupo Verdade Operária, afirmava preocupação similar à de Bukharin. Na mesma direção estavam as críticas do grupo Oposição Operária do qual fazia parte a futura gestora da diplomacia soviética stalinista, Alexandra Kollontai. Todas estas opiniões foram caladas após a realização do X Congresso do PCURSS. Será que Caio Prado tinha preocupações similares quanto ao centralismo do PCB e por isso se preocupou com o livro e as teses de Bukharin, sendo portanto, no contexto brasileiro um dos primeiros a criticar os gestores comunistas do partido? Não creio. Pelo que descreverá depois, em 1962, num outro livro – O Mundo do Socialismo – sobre a URSS, o que se depreende é que Caio Prado endossava, isto sim, as práticas autoritárias e centralistas dos gestores do PCURSS, dessa maneira, portanto, a recepção de Bukharin por Caio Prado, creio, deriva-se da aproximação do revolucionário russo com os métodos positivistas durkheimianos. Sobre os debates preparatórios para o X Congresso do PCURSS, realizado em 1921, consultar, entre outros, o belo texto de MOREL, Henri E. As discussões sobre a natureza dos países de Leste (até a Segunda Guerra Mundial): nota bibliográfica. In NEVES, Artur J. Castro (org.). A Natureza da URSS (Antologia). Porto: Afrontamento, 1977, pp. 229-252.
[3] Sobre a trajetória do historiador paulista na França, o estudo biográfico mais detalhado, chegando inclusive a descrições pitorescas, é aquele realizado na Tese de Doutorado de Paulo IUMATTI. Caio Prado Júnior, historiador e editor (02 volumes). Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em História da USP, 2001, que teve a orientação da professora Maria Odila Leite da Silva Dias (com quem Caio Prado Júnior esteve envolvido amorosamente no início da década de 1970). O grande ponto a destacar na detalhada investigação feita por Iumatti são as fontes. Por causa de disputas judiciais entre a família e a última companheira de Caio Prado Júnior – a senhora Maria Cecília Naclério Homem, o espólio documental do pensador é ainda praticamente inabordável. Não sei ao certo como Paulo Iumatti teve acesso exclusivo a uma série de cadernos que Caio Prado Júnior alimentava como uma espécie de “diário político”, com seus comentários, sem dúvida alguma preciosíssimos, sobre o cotidiano da vida política nacional. Tenho uma hipótese de como ele chegou aos documentos que não posso demonstrar aqui. Paulo IUMATTI, no seu livro Diários Políticos de Caio Prado Júnior: 1945. São Paulo: Brasiliense, 1998, fez uso de muitas passagens desses cadernos, sem, no entanto, anexá-los integralmente como prova empírica (ficamos apenas com os excertos selecionados pelo pesquisador). Da biografia, feita na tese de doutorado, acima referida, obtém-se muitas notícias sobre Caio Prado Júnior e dessas, um aspecto a ressalvar, pela importância que Iumatti lhe dá, relaciona-se ao período (1937-1939) em que o historiador se exilou com sua família em Paris, depois da longa prisão no Brasil provocada pelos fatos da Intentona, como indiquei anteriormente. Em Paris, Caio Prado Júnior envolveu-se em intensos estudos e pesquisas, aproximando-se do mundo acadêmico nas hostes da sociologia durkheimiana, da antropologia maussiana e da historiografia dos Annales. Com essas outras matrizes foi fecundar sua obra, fato que Iumatti reconhecerá como positivo, porque “melhoraram” as perspectivas do marxismo pradiano. Dessa maneira, afirma Iumatti, a atitude mais correta para se abordar a trajetória política pradiana seria aquela de relevar antes de tudo a sua luta pela ampliação da democracia, dos direitos sociais e dos direitos civis e políticos do brasileiro, ao contrário de reduzir essa trajetória a termos como “socialista”, “social democrata” ou “marxista” (p. 235). Ora, essas opiniões são insustentáveis. Afirmar que Durkheim poderia melhorar o marxismo é ignorar o que é o marxismo ou o que é o modelo durkheimiano (as perspectivas políticas da sociologia de Durkheim procuravam sistematizar um modelo organizacional neocorporativista do capitalismo visando combater diretamente a influente presença das lutas dos marxistas na sociedade francesa e européia em fins do século XIX. A sociologia durkheimiana que propunha uma diretriz socialista inspirada no positivismo saint-simoniano emergia naquele contexto político para competir com o marxismo. Por essas implicações políticas, o senhor Iumatti, não deveria tão rapidamente “livrar” o seu “objeto de estudos” de maiores significações interpretativas), por outro lado, ao endossar um Caio Prado Junior emasculado de qualquer epíteto esquerdista, o senhor Iumatti sem o querer acerta redondamente ao referendar um Caio Prado Júnior como expressão de um marxismo sem conseqüências políticas revolucionárias. Ainda sobre a relação marxismo e sociologias de matriz durkheimiana, convém ressalvar que Bukharin também tentou essa aproximação (ver nota 03) – talvez por isso Caio Prado o traduziu, mas, por causa dessa opção política de dar tintas positivistas ao marxismo, teve seu modelo “refutado” por alguns dos mais importantes marxistas do século XX, Antonio Gramsci e Georg Lukács. Em suma, o Caio Prado Júnior que emerge da detalhada biografia do senhor Iumatti, em muitos momentos, parece que “sofria” de certo bovarismo intelectual diante do pensamento francês. Sobre a relação conflitiva e determinante do pensador paulista com o PCB, a pesquisa e o sem número de juízos de valor apresentados pelo senhor Iumatti na sua tese pouco ou quase nada esclarecem.
[4] Sobre esses artigos, consultar: PRADO JÚNIOR, Caio. O Programa da Aliança Nacional Libertadora. In Revista Escrita / Ensaio, n. 10, São Paulo, 1987.
[5] Essa proposta de um fundo estatal para as empresas privadas está exposta em PRADO JÚNIOR, Caio. O Desenvolvimento econômico e o problema da capitalização. In Revista Brasiliense, n. 34, São Paulo, março – abril de 1961, especialmente em pp. 52-58.
[6] Apresentei essa perspectiva em PINTO, João Alberto da Costa. Os impasses da Intelligentsia diante da Revolução Capitalista no Brasil (1930-1964): Historiografia e Política em Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Nelson Werneck Sodré. (Tese de Doutorado). Niterói, RJ: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), 2005.