quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Vigiar, Sorrir e Punir: As ilusões líquidas da Sociedade do Espetáculo

Por: Erick Morais
Fonte: Genialmente Louco
As transformações tecnológicas ocorridas nas últimas décadas promoveram mudanças substanciais na forma como organizamos a vida em sociedade. Cada vez mais ligados à rede, o conceito entre o real e o virtual se modificou, de tal maneira que hoje muitos consideram que não há uma diferença entre uma coisa e outra, havendo apenas uma conexão e extensão entre ambas realidades, em uma espécie de realidade físico-virtual.
Apesar de muitas das características da modernidade líquida não serem exclusivas da contemporaneidade, é evidente que essas características se apresentam hoje com muito mais força e nitidez, haja vista as transformações tecnológicas inerentes à construção do mundo líquido moderno. Algumas delas aparecem no episódio “Queda Livre” da terceira temporada da série “Black Mirror” (na série inteira, inclusive). Nele, somos apresentados a uma sociedade em que todas as ações das pessoas são avaliadas pelas outras em uma espécie de rede social. As avaliações percorrem notas que variam entre zero e cinco estrelas, de modo a construir o score/nota que cada pessoa possui.
Dessa forma, as pessoas que possuem notas altas são bem vistas socialmente, além de gozarem de privilégios e acessos a bens e serviços que os sujeitos que possuem notas baixas não têm. Ou seja, cria-se imensas redes de poder, controle, vigilância e punição, a partir das notas que as pessoas recebem pelas suas atitudes, que são invariavelmente analisadas por um sem número de indivíduos, não necessariamente interligado às suas realidades.
A fim de possuir notas altas e ter acesso àquilo que é vendido pela sociedade como os requintes do prazer e da felicidade, as pessoas agem de modo totalmente superficial umas com as outras, chegando, por vezes, a beirar o ridículo e o nonsense. Aqueles que, por outro lado, buscam viver de forma autêntica e natural, sem se “preocupar” o tempo inteiro com opiniões alheias ou em causar boas impressões, são mal avaliados e vistos como perdedores, sujeitos marginalizados e excluídos de uma série de coisas em função das suas notas baixas.
A sociedade apresentada em “Black Mirror”, assim, se assemelha muito à nossa sociedade, à maneira como utilizamos as tecnologias e estruturamos nossas vidas. Como disse, muitas das características do mundo contemporâneo não são exclusivas dele, entretanto, ganharam maior dimensão em consequência dos aparatos tecnológicos desenvolvidos nas últimas décadas. Isso não quer dizer que o problema esteja propriamente nas tecnologias, mas no uso e na significação que nós as damos.
Querer, em alguma medida, aceitação social, ser uma pessoa querida, bem vista, bem “analisada” socialmente, é algo natural, que faz parte do processo de sociabilidade do ser humano. No entanto, isso deve acontecer com naturalidade e respeitando a subjetividade de cada um. A partir do momento em que ser aceito socialmente significa aderir a uma padronização comportamental, deixamos de ter algo que faz parte da natureza humana (a sociabilidade), para desenvolver uma patologia social, uma vez que uma sociedade de autômatos completamente iguais, não é uma sociedade de pessoas humanas.
O grande problema é que estamos gradativamente mais próximos de um estado patológico do que de uma sociedade realmente integrada, com os tecidos sociais fortalecidos. A integração existe de forma aparente por meio do uso e prosseguimento de protocolos determinados. Assim como no episódio da série, todas as nossas condutas são automaticamente avaliadas, como se todos estivessem verdadeiramente preocupados com as nossas vidas. Para os que seguem os protocolos, o resultado é sempre positivo, com aprovações, muitos likes e tapinhas nas costas. Para os que não seguem, nada pode ser feito.
Esse fenômeno da sociedade do espetáculo, em que o ter e o aparecer prevalecem sobre o ser, foi reforçado pelo desenvolvimento das tecnologias e das redes sociais, que, como disse Bauman, instalaram microfones nos confessionários e transformaram tudo em público ou potencialmente público. Dessa forma, tudo aquilo que fazemos ou temos deve passar pelo crivo da aprovação pública da rede, como se o nível de avaliação externa representasse necessariamente a verdade sobre o que somos.
Essa necessidade de aprovação constante revela quão narcísicos estamos, ao mesmo tempo em que também revela nossa condição frágil, fluída, volátil, líquida, como a dos nossos tempos. Além disso, essa estrutura demonstra o modo condicionado das nossas vidas, no qual dizemos e fazemos muito mais os que os olhares vigilantes aprovarão, do que o que realmente queremos. É a evidência da sociedade disciplinar que nos constitui, em que tudo é vigiado e punido, lembrando Foucault, apesar do véu de liberdade com que nos encobrem.
Embora, deva dizer mais uma vez que não há um problema propriamente em desejar algum tipo de aprovação social, em buscar integrar-se à sociedade, é preciso saber que isso não significa se despersonalizar e se converter em uma mera cópia. Bem como, não significa criar um simulacro de si e dos outros, para que se possa viver em uma bolha completamente artificial. Viver em rede, em comunidade, é muito mais do que seguir regras e protocolos que, no fim, atendem apenas a interesses individuais. É muito mais do que ganhar likes por ações falsas, receber sorrisos amarelos de pessoas superficiais, ter uma vida que não passa de uma caricatura malfeita de revista de fofoca e, sobretudo, ser uma pessoa cheia de dentes por fora e de correntes por dentro.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Sistema neoliberal coloca trabalhadores uns contra os outros, diz Noam Chomsky

Do Opera Mundi

“O neoliberalismo vem colocando os trabalhadores do mundo em competição uns contra os outros, mas permitindo a liberdade do capital e, de fato, um alto grau de proteção para o capital”, afirmou o linguista, filósofo e historiador de 88 anos.
Professor emérito do MIT (Massachusets Institute of Technology) e crítico constante do governo de Donald Trump, Chomsky afirmou que “estamos nos dirigindo a um precipício e o pior desses precipícios é condicionado pelos sistemas de mercado”. Para o intelectual, “a mudança neoliberal moveu as decisões da esfera pública ao mercado”.
Chomsky ainda criticou o partido político de Trump afirmando que os republicanos têm se dedicado a destruir a vida humana: “a posição da ala selvagem do capitalismo norte-americano, o Partido Republicano, é realmente impressionante, eles estão realmente correndo em direção a um precipício”, disse o intelectual, questionando se “houve realmente uma organização na história que se dedicou em destruir a vida humana?”.
“Se você é um crítico da política [dos EUA], você é antiamericano”, disse o acadêmico sobre como são vistos aqueles que se opõem ao governo no país. “Além dos EUA, eu não conheço nenhum outro país não-totalitário, não-autoritário, onde esse conceito exista”, afirmou Chomsky, que se considera socialista.
Além de se posicionar contra medidas tomadas pelo governo de Donald Trump, o intelectual se diz preocupado com as mudanças climáticas e com a saída dos EUA do Acordo de Paris. "Os EUA estão correndo em direção ao precipício, enquanto o mundo está tentando fazer alguma coisa contra o aquecimento global", afirmou

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

A burocratização do trabalho docente, ou, da cafetinagem acadêmica

Caros Amigos

Por Jean de Menezes
A formação humana é um processo social. Educação não é mercadoria.
Duas afirmações clássicas, nos lábios e na pena daqueles que resistem diante da lógica da fábrica que não opera no mesmo sentido.
Na sociedade capitalista há uma forte preocupação com a informação, e, a educação é tratada como mercadoria, e mais, pode-se escolher o modelo que desejar, pois se vende de tudo um pouco.
Encontramos escolas, universidades de todas as cores, projetos de todos os tipos, professores e plataformas eletrônicas para as interações sociais mais sofisticadas! Nem precisa sair de casa, pois “temos” delivery. Nosso leitor poderia indagar: “mas assim mesmo não são relações sociais?”
É verdade que isso tudo representam relações sociais, mas trata-se de relações coisificadas, fetichizadas e estranhas.
A burocratização do trabalho docente atinge patamares estratosféricos. Cada vez mais o professor deixa de lado a sua função educativa para realizar os afazeres burocráticos. Não queremos dizer com isso que os registros, dos mais diversos, tipos não são importantes no trabalho docente, mas a centralidade burocrática secundariza aquilo que deveria ser o central: a formação humana.
A chamada reestruturação produtiva não se limitou às fábricas, o trabalho predominantemente intelectual também está sujeito a esta reestruturação da produção e no caso das ciências humanas chega atingir o ridículo.
Em todas as grandes áreas do conhecimento de acordo com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) o trabalho intelectual deve apresentar uma produção em tempo determinado e procurar ultrapassar, se possível (bater as metas), a quantidade planejada. Quanto mais se produzir, maior será a qualificação, por exemplo, de um programa junto a CAPES.
É verdade que uma atividade deve ser planejada, ter seu cronograma, e procurar estabelecer o tempo para o seu desenvolvimento. Todavia, esta deveria ser uma prerrogativa daqueles que pesquisa, do pesquisador, do intelectual. Entretanto, não é assim que funciona.
A lógica de produção do conhecimento segue a mesma da indústria metalúrgica no que tange ao reprodutivismo. Os operários, neste caso o docente, deve produzir de acordo com as metas impostas por terceiros a todo vapor. Outra questão central, aqui, é quem determina o tempo de produção para o trabalhador intelectual.
O tempo da produção do conhecimento e da formação humana não é o mesmo tempo mecânico do relógio. A dimensão temporal é outra diante da produção do conhecimento.
Se considerarmos que a produção do conhecimento é uma relação social complexa, temos a inviabilidade de afirmarmos: “você tem um semestre para apresentar um artigo científico!”
Por quê?
Porque uma relação social exige interlocuções, apreciações, leituras em larga escala, verificações de hipóteses, reformulações, negações, reconsiderações, traduções, problematizações.
Mas como resolver nos marcos da atualidade que vivemos esta equação? Não há resolução eficaz, ao menos estruturalmente, de imediato. Então o que fazemos?

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Isenção do Imposto de Renda

Como sabemos "informação é poder", e muitas informações não são amplamente divulgadas porque não é do interesse de alguns que o sejam.
Sendo assim, aqui vai uma informação importante sobre a LEI 7713/88, que dispões, dentre outras coisas, sobre doenças que dão o direito à isenção do imposto de renda.
Em seu artigo 6, item XIV, a lei elenca os casos:
a) AIDS.
b) Alienação mental.
c) Cardiopatia grave.
d) Cegueira (inclusive monocular).
e) Contaminação por radiação.
f) Doença de Paget em estados avançados (osteite deformante).
g) Doença de Parkinson.
h) Esclerose múltipla.
i) Espondiloartrose anquilosante.
j) Fibrose cística(Mucoviscidose).
k) Hanseníase.
l) Nefropatia grave.
m) Hepatopatia grave.
n) Neoplasia maligna.
o) Paralisia irreversível e incapacitante.
p) Tuberculose ativa.

O laudo deverá ser emitido, preferencialmente, pelo serviço médico oficial da fonte pagadora.


“Reforma” trabalhista: a quem serve a lógica de ameaçar trabalhadores?

Valdete Souto Severo
Juíza do trabalho
Justificando

A ilegítima Lei 13.467/17 da reforma trabalhista, que tramitou a portas fechadas, em velocidade recorde e sem o cumprimento da promessa de Temer, de que faria vetos ao texto aprovado, está gerando inúmeros efeitos deletérios. Despedidas coletivas, alterações contratuais lesivas e ameaças no ambiente de trabalho tem sido relatadas. Um desses efeitos devastadores da “reforma” é o ambiente hostil em que se tem transformado algumas salas de audiências trabalhistas.
Mesmo sendo exceção, o número de relatos de situações de assédio, em que reclamantes são insistentemente “convidados” a desistir de suas pretensões, assusta. Mesmo antes do dia 11 de novembro, e portanto quando a Lei 13.467/17 sequer estava vigendo, já havia relatos nesse sentido. O uso do argumento perverso de que o trabalhador ou a trabalhadora terão de pagar o perito, caso não reste configurada insalubridade ou doença laboral, como motivo para que desistam do pedido antes mesmo da inspeção, é um dos exemplos mais citados.
Em nosso ordenamento jurídico, apenas o perito pode examinar o local de trabalho ou a pessoa que se crê atingida por uma doença profissional. Sequer o juiz pode declarar a existência da situação lesiva, sem o parecer técnico. O art. 195 da CLT exige a realização de prova pericial. Sua produção, portanto, sequer decorre de escolha ou requerimento da parte; é dever do juiz determiná-la. A perícia é o único meio de prova capaz de demonstrar se há ou não situação de risco ou dano no ambiente de trabalho.
Como então atribuir ao trabalhador ou trabalhadora cuja impossibilidade de suportar os custos da demanda é reconhecida pelo Estado, o ônus de pagar honorários ao perito? É importante ressaltar esse detalhe: a “reforma” atribui ao trabalhador beneficiário da gratuidade da justiça esse encargo.
Com a reforma trabalhista, a Justiça do Trabalho passa a ser o único ramo do Poder Judiciário em que a parte precisa ter a certeza do direito, antes mesmo de propor a ação, sob pena de ser punida, como se litigasse de má-fé. Tivesse o trabalhador, a certeza da condição perigosa ou insalubre, teria que dispor de meios para exigir seu cumprimento independentemente da intervenção estatal. Se ajuíza demanda, é exatamente porque não possui tal certeza.
Atribuir ao beneficiário da gratuidade da justiça o ônus de pagar honorários de perito é punição. Para quem duvida, basta ler o relatório do Deputado Rogério Marinho. Ele diz textualmente que “na medida em que a parte tenha conhecimento de que terá que arcar com os custos da perícia, é de se esperar que a utilização sem critério desse instituto diminua sensivelmente”.
O pressuposto aqui é claro: ou o trabalhador sabe que há insalubridade ou não deve pleiteá-la. Ele ainda afirma em seu relatório que “o objetivo dessa alteração é o de restringir os pedidos de perícia”, a fim de“contribuir para a diminuição no número de ações trabalhistas”.
Essa institucionalização da má-fé do trabalhador como regra, resultado de uma certa fúria revanchista contra o excesso de demandas trabalhistas, promove evidente inversão de valores.
Houvesse tal certeza, teria o empregador de ser compelido a respeitar imediatamente o direito, sem a necessidade do ajuizamento de demanda trabalhista e de todo o custo e o desperdício de tempo que isso implica. Portanto, seria mais lógico supor que o reconhecimento de uma situação insalubre ou perigosa de trabalho, através de perícia judicial, gerasse de imediato a imposição de condenação por dano social ao empregador, já que é ele que está tornando necessário o uso da máquina judiciária, por se negar a reconhecer um direito evidente.
Entretanto, sequer se cogita tal possibilidade. Mesmo quando, na chamada audiência inicial, a empresa “reconhece” a situação insalubre a fim de evitar perícia, não se defende a possibilidade de penalizar o empregador que, afinal de contas, sabia estar lesando direitos fundamentais e negou-se a cumprir suas obrigações, esperando passivamente o uso do Poder Judiciário Trabalhista.
Impor aos trabalhadores todo o peso que os aplicadores do Direito do Trabalho suportam pelo excesso de demandas é negar o óbvio: se existem muitas demandas trabalhistas, não é porque o direito fundamental à gratuidade da justiça vinha sendo respeitado. Ao contrário, é exatamente porque sonegar direitos trabalhistas no Brasil é um ótimo negócio.
O caso da situação nociva de trabalho é emblemático: muitos empregadores fazem o cálculo do custo e descobrem que melhor do que tornar salubre o ambiente de trabalho é aguardar pelas demandas trabalhistas, que serão ajuizadas apenas depois da perda do emprego (em face do medo razoável da inconstitucional despedida imotivada), precisarão de averiguação pericial e contarão com os “bons ofícios” dos juízes para promover conciliações que certamente não implicarão o ressarcimento integral do dano imposto.
Caso nada disso funcione, o valor devido será calculado sobre o salário mínimo e pago, após vários anos de tramitação processual, com juros de 1% ao mês. Basta aplicar os valores sonegados no mercado financeiro, contar com o fato de que vários trabalhadores não ajuizarão demandas trabalhistas e utilizar todos os recursos que a Justiça do Trabalho generosamente oferece, para que o lucro obtido sobre a saúde humana seja certo. Quem, portanto, movimenta indevidamente a máquina judiciária?
A previsão de sucumbência recíproca, uma lógica avessa à prática de cúmulo objetivo de demandas que ocorre na Justiça do Trabalho, também tem sido argumento de assédio em audiência. Interessante é que sequer a literalidade do texto “reformado” autoriza a ameaça aos trabalhadores e trabalhadoras. Note-se que o art. 791-A da CLT refere que serão devidos honorários de sucumbência “sobre o valor que resultar da liquidação da sentença, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa”.
Ou seja, existem apenas duas hipóteses legais que autorizam fixação de honorários de sucumbência no processo do trabalho, para aqueles que entenderem aplicável o texto da Lei 13.467/17. A primeira é a fixação sobre o valor da liquidação, mais uma prova, aliás, de que as sentenças seguirão sendo liquidadas e as iniciais, portanto, tal como diz o § 1° do art. 840 da CLT com a redação que lhe foi dada pela “reforma”, devem apenas fazer constar indicação do valor do pedido – e não liquidá-lo. A segunda é a fixação sobre o proveito econômico. A parte final do dispositivo refere-se à circunstância em que não é possível mensurar o proveito econômico.
Portanto, é preciso que ele exista. Um proveito econômico só não poderá ser mensurado quando existir. Se não há proveito, nada há que possa ser ou não mensurado. A hipótese mais recorrente é aquela da condenação em obrigação de fazer, como a determinação judicial de reinserção em plano de saúde.
Há proveito econômico que não pode ser mensurado e, em tal caso, a sucumbência, pela literalidade do art. 791-A, deverá ser fixada sobre o valor da causa. Por consequência, não há autorização legal para fixação de honorários de sucumbência quando houver improcedência. É que na improcedência não há proveito econômico nem valor a ser liquidado.
De tudo isso se conclui que a aplicação dessas regras exigirá dos juízes e juízas um grande esforço hermenêutico. Isso porque a Constituição estabelece o direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5°, LXXIV). E integral, segundo o dicionário, é aquilo que não sofre diminuição ou restrição; é totalcompleto. Logo, a assistência judiciária gratuita só será integral quando for total, completa. É até estranho ter que dizer o óbvio, mas é assim.
Em tempos de exceção, como o que vivemos atualmente no Brasil, o óbvio precisa ser dito.
É evidente que nada disso altera a principal discussão deste texto: ainda que houvesse previsão legal para a fixação de honorários de sucumbência a serem suportados pelo trabalhador ou trabalhadora, nos casos de improcedência (o que não há), ou que fosse possível exigir pagamento de honorários de perito do beneficiário da justiça gratuita sem ferir de morte a Constituição, não se sustentaria o discurso ameaçador que busca forçar a parte a desistir da causa, sob o argumento de que haverá a tal condenação. Portanto, mesmo reconhecendo a possibilidade de aplicação desses dispositivos, nada justifica sejam eles utilizados como argumento de terror durante audiências trabalhistas.
O clima de ameaça compromete a possibilidade de convívio saudável entre os atores do processo. Juízes, juízas, advogados e advogadas exercem funções que se complementam. Profissões que não existiriam, uma sem a outra. E a audiência é talvez o momento mais importante do processo, em que não apenas esses atores estabelecem o diálogo direto, mas também as partes, pela primeira vez, tomam contato com o Poder Judiciário e ficam frente a frente uma da outra, em situação de paridade.
Se para os juízes e advogados as audiências se multiplicam no dia ou na semana, para as partes muitas vezes ela é única. Via de regra, os trabalhadores e trabalhadoras apostam muito alto em suas demandas, pois ali deduzem pretensões econômicas, mas também afetos, mágoas, diálogos interrompidos. Evidentemente, não sabem se convencerão o Estado de que tem razão em suas pretensões, mas ainda assim querem produzir a prova necessária, querem ser ouvidos e respeitados. E o ordenamento jurídico lhes garante isso, afinal de contas existe um direito fundamental à tutela jurisdicional.
Não há dúvida de que atualmente a Justiça do Trabalho, como o Poder Judiciário em geral, sente o peso que o excesso de demandas e a pressão pelo cumprimento de metas impõe à estrutura judiciária. E, em nosso caso, há um ingrediente especial: somos a Justiça dos ex-empregados. Grande parte das trabalhadoras e dos trabalhadores que propõem demandas trabalhistas já perderam o posto de trabalho.
A urgência no provimento de suas pretensões é evidente e promove um constante conflito interno em quem advoga ou julga. Estamos sempre correndo contra o tempo, porque sabemos que é a parte autora que o suporta e, tratando-se como regra de direitos alimentares, esse ônus por vezes compromete a possibilidade de existência digna.
Todos nós, portanto, perseguimos o mesmo ideal de reduzir a necessidade de recurso à Justiça do Trabalho para garantir pagamento de saldo de salário, adicional de insalubridade ou indenização por doença laboral e, assim, permitir que as demandas sejam julgadas em tempo razoável. Promover assédio contra trabalhadores e trabalhadoras, impondo a renúncia prévia do direito à discussão judicial de determinada pretensão não contribui, porém, para diminuir o número de litígios, exatamente porque não enfrenta a causa desse problema.
Se realmente quisermos diminuir o número de demandas trabalhistas, precisamos reconhecer ao processo toda a gravidade que ele possui: cada pretensão reconhecida pelo Poder Judiciário representa uma agressão à ordem jurídica, um desrespeito que compromete o convívio saudável e que, portanto, precisa ser exemplarmente coibido, a fim de que não se repita. O raciocínio, portanto, deveria ser contrário àquele estimulado pela “reforma”.
Promover constrangimentos ou ameaças a quem busca a tutela jurisdicional não contribui para fortalecer o respeito à ordem jurídica, objetivo final de todos aqueles que lidam com o processo. Pelo contrário, assim agindo, negamos nossa razão de existência. É quem descumpre direitos fundamentais que deveria ser constrangido a não mais fazê-lo, através de punições exemplares, como condenação pela prática de dumping social, fixação de valores significativos para indenizações extrapatrimoniais ou cumprimento imediato das decisões de primeiro grau.
A lógica de assediar trabalhadores serve apenas para esvaziar – por dentro – a funcionalidade da Justiça do Trabalho. Os relatos insistentes de ameaças a trabalhadores e testemunhas, durante as audiências, é um péssimo indicativo de que estamos perdendo o parâmetro de convívio saudável durante a prática processual. E o resultado disso é o aumento do estresse, da litigiosidade e do conflito entre advogados e juízes. Mesmo constituindo exceção, em relação as audiências realizadas todos os dias Brasil afora, é preciso atenção e, sobretudo, uma reflexão: a quem serve a disseminação desse embate?
Os advogados e as advogadas são essenciais à administração da justiça, como afirma a Constituição de 1988. São os profissionais responsáveis por propor discussões judiciais, em defesa de direitos que permitam um convívio minimamente saudável em uma sociedade que é já tão desigual e perversa, em vários aspectos. É deles a função de construir teses jurídicas, narrar fatos e produzir provas que nos instigarão a refletir, repensar e fortalecer ou abandonar as primeiras impressões provocadas pela “reforma” trabalhista.
Os advogados e advogadas trabalhistas darão a tônica da resistência contra o desmanche e, sobretudo, contra o discurso de extinção da Justiça do Trabalho, que vem se fortalecendo nos bastidores de um poder ilegítimo que não dá sinais de arrefecimento. 
Juízes, juízas, advogadas e advogados somos, portanto, partes de um mesmo enredo que, na atual estrutura de Estado, muitas vezes se constitui concretamente como o único caminho para alterar a realidade da vida de tantas pessoas. Nosso cansaço e nossa angústia com a invencível demanda de trabalho não devem legitimar a criação de ambiente assediador exatamente ali onde o assédio precisa ser combatido.
A “reforma” e todo o discurso de extinção da Justiça do Trabalho nos convoca à união, à soma de esforços para que sigamos sendo o ramo do Poder Judiciário já reconhecido como o mais eficiente e eficaz.
2018 será um ano exigente.
Mais do que nunca é preciso reconhecer os limites e desafios de nossas diferentes funções, sua complementariedade, e a necessidade de respeito às prerrogativas de todos aqueles que atuam no processo. Demandas improcedentes são parte do sistema e, inclusive, justificam a necessidade de instrução e julgamento das lides trabalhistas. Como regra, não são resultado de má-fé, mas apenas do exercício regular do direito fundamental à tutela jurisdicional. Gratuidade da justiça é integral ou é nada. E os atores do processo são, todos eles – sem nenhuma exceção – dignos de respeito.
Valdete Souto Severo é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP; Diretora e Professora da FEMARGS Fundação Escola da Magistratura do Trabalho RS; Juíza do Trabalho; Membro da Associação Juízes para a Democracia AJD.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Marcia Tiburi: A política do terror

Revista Caros Amigos
Por Aray Nabuco, Lais Modelli e Nina Fideles
As pessoas estão todas morrendo de medo, e quem morre de medo se despreocupa da de­mocracia, fica a mercê do seu inimigo.” Assim, Marcia Tiburi, gradua­da em filosofia e artes, e doutora em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, define nossos tempos.
A estratégia, executada pelo arranjo “mafioso” entre mídia, Judiciário, Legislativo e empresários, pela derrocada da pre­sidente afastada Dilma Rousseff, continua dan­do seus pequenos golpes diariamente e arrancan­do aplausos de uma po­pulação que, segundo ela, tem seus afetos e ações manipulados. Ao mesmo tempo em que a esquer­da, hoje muito mais plu­ral e ampla que nos tem­pos idos, não dispõe de muitas armas. Para Marcia, a luta por hegemonia é desmedida porque “a direi­ta chega e simplesmente decreta, implanta, e faz o jogo da política da terra arrasada”.
O cenário não é animador, segundo a filósofa, po­rém, resta aos intelectuais, professores, jornalistas, esquerda, uma tarefa ética em relação à política, “em um contexto que fomos todos nós esvaziados de nós mesmos”.
Aray Nabuco – Marcia, só pra gente começar a nossa conversa, eu vou perguntar sobre a sua concepção desse governo em exercício. Você acha que a gente está entrando no império do macho, ou voltando de alguma maneira a ele?
Marcia Tiburi - Sem dúvida há um lastro, vamos chamar assim, um pano de fundo patriarcal, ma­chista e sexista nesse governo. Como designar, como chamar esse governo sem ser agressivo e não dizer do golpe? É um governo golpista, eu acho que talvez seja impossível que esse governo perca esse adjetivo enquanto ele durar. A gente pode inserir esse governo dentro do mais arcaico machismo, que é o machismo estrutural do qual a sociedade pade­ce, mas, ao mesmo tempo, existe um fenômeno de superfície que é muito curioso também. E esse fe­nômeno de superfície é a imagem, a cara, a fachada deste governo. E isso precisamos analisar também. A gente pode dizer “é evidente que é um governo de homens brancos”, mas não é só isso. Eu tento desen­volver uma reflexão sobre aquilo que eu chamo de sabedoria iconográfica, e na internet há uma inte­ressantíssima sabedoria iconográfica. Os persona­gens desse governo, vários deles, são associados a figuras macabras, a personagens macabros do cine­ma, da literatura. E isso, que pode parecer uma bo­bagem à primeira vista, se torna muito interessante quando a gente analisa certos elementos mais pro­fundos
em relação à questão estética, digamos as­sim. A questão estética é a visão da superfície, que a gente não pode negligenciar, porque tem certas coisas que estão aparecendo ali que muitas vezes as pessoas não percebem bem, mas que são muito fun­damentais, e que revelam uma coisa infinitamente mais interessante que fica por baixo. Então, não é só o machismo estrutural que está por baixo, tem alguma outra coisa sendo revelada. Michel Temer tem um apelido famoso na história, segundo consta ele foi apelidado por ACM de “mordomo de filme de terror”, alguns o chamam de “mordomo de velório”. Na internet a gente vê muito essas imagens, essa iconografia popular que reúne a figura de Michel Temer com vampiro, Nosferatu, o Drácula de Bela Lugosi. Mas não é só o Michel Temer. Tem também o José Serra que é famoso na história da política brasi­leira como sendo um vampiro. O Alexandre Moraes, que é o ministro da Justiça, passou a pouco a ser as­sociado ao Frankenstein. A nova presidente do STF, a ministra Carmem Lúcia, foi também associada a Mortícia. Se vocês forem à internet vocês vão ver várias associações da assim chamada iconografia popular, essa associação entre a figura bizarra, per­sonagem bizarro e esses personagens da realidade política do Brasil. A própria Marta Suplicy, que é uma figura que mudou de lado, mudou de partido, em um ato talvez desesperado, também começou a ser associada pela população que elabora esse tipo de imagem com zumbis e outras figuras bizarras.
 E eu acho que tem uma verdade nessa política atual que é o seu aspecto bizarro, que toca o incom­preensível, e aquilo que Freud chamava de unhei­mlich, que é o estranho e que ao mesmo tempo é inquietante, que é o familiar que ao mesmo tempo é estranho, aquilo que a gente entende, mas não entende, compreende, mas não compreende e que nos dá uma sensação de algo luminoso, assustador,
aquilo que é provocado na literatura de terror, no filme de terror, e que nos torna reféns. Então, nós somos reféns de alguma coisa, reféns dessas figuras vampirescas, dos lobisomens da política atual. Não sabemos o que fazer com eles. Acho que toda popu­lação, independentemente de serem ativistas ou não, se vê bastante refém desse tipo de atmosfera de terror. E terror é um bom nome pra isso, se a gen­te junta essa iconografia da internet com aquilo que a pesquisadora, jornalista e autora tão interessan­te Naomi Klein chama de capitalismo de desastre, num livro chamado A ideologia do choque. Quando ela desenvolve este conceito de capitalismo de de­sastre, ela fala do uso do choque e da construção de um projeto, digamos assim, em que o funcionamen­to estético da política se dá pelo terror. E nesse caso, lembrando de Marx citando Hegel, “a história pri­meiro se dá como tragédia e depois se repete como farsa”, nesse momento o que a gente tem é o enredo de um filme de terror. E o terror é funcional, coloca medo nas pessoas. Podemos lembrar também de (Baruch) Spinoza no seu tratado de política falando sobre isso – aliás, (Nicolau) Maquiavel antes já fa­lava disso, da estratégia de se causar medo naque­las pessoas, no povo, nas quais você não conseguiu causar amor e admiração. Então, se você não pode ser amado, que você seja temido, isso é a frase do Maquiavel. Mas diz o Spinoza “se você causar medo na população, você entristece a população, e se você entristece a população você faz com que ninguém mais lute”. Então, eu vejo assim, é um projeto muito bem desenhado, o design dessa política é a do terror em todos os seus sentidos, e se a gente pensar que o terror já foi usado no Brasil na época da ditadu­ra com a tortura, é isso de novo que se anuncia, só que agora, nesse momento pelo menos, não é uma tortura física daquele que é capturado por ter uma ideologia à esquerda, ou comunista, ou socialista, ou crítica – podemos chegar nisso, não está descartado. Mas é um terror mais psicológico, de sustinho em sustinho a gente fica esperando qual é a próxima. É o SUS, é o décimo terceiro, é o Enem, basta você pensar quantas pequenas medidas, quantos peque­nos choques, como num filme de terror, vão sendo produzidos para capturar absolutamente as pessoas nos seus corpos. As pessoas estão todas morrendo de medo, e quem morre de medo se despreocupa da democracia, fica a mercê do seu inimigo.
Aray Nabuco – Você enxerga isso afetando a própria esquerda? Me parece que a esquerda está apática ou sem condições de reagir, não só pelo aspecto jurídico institucional que está sendo muito bem manipulado, mas talvez um pouco por essa sensação de terror.
Claro. Agora, a questão é de método para fazer po­lítica. A característica básica do que a gente chama de esquerda ao longo da vida, o que sempre se cha­mou de esquerda, é uma certa, vamos colocar assim, ingenuidade, inocência... Essas pessoas que pensam sempre no outro, têm uma abertura democrática para com a vida, são pessoas com afetos mais aber­tos, e, portanto, com menos capacidade de causar o mal – não quer dizer que não tenham. Mas a di­reita tem essa característica. A esquerda é menos manipuladora do que a direita, eu acho que a gente  pode dizer isso. Quer dizer, usa a manipulação com menos violência. Tanto que nós não somos muito bons de propaganda. E as promessas da esquerda são sempre promessas muito libertárias, e a própria palavra liberdade, aliás, foi capturada, sequestrada pelo mundo da direita, virou uma questão liberal e depois neoliberal. A questão da liberdade foi dege­nerada na direita, e a esquerda não sabe fazer mui­to uso disso e das suas estratégias. Então, acho que nós ainda funcionamos de um jeito muito aberto, muito ingênuo, muito despreparado para a guerra que faz parte da política. Quando a gente luta por hegemonia dentro da política a gente luta de peito aberto. Aquilo que a gente chama de direita na sua forma neoliberal hoje, não luta de peito aberto. Eles não lutam de peito aberto, eles não estão lutando de um ponto de vista ideológico, eles estão lutando do ponto de vista da violência mesmo, da imposi­ção. Então, é desmedida a luta por hegemonia entre direita e esquerda, porque nós não usamos as mes­mas armas. A direita chega e simplesmente decreta, implanta, e faz o jogo da política da terra arrasada. É uma guerra nesse nível de destruição mesmo. Isso em nível cultural, econômico, político, social. O go­verno vigente neste momento o que faz? Destrói o que o governo anterior plantou. Então, ele não mede consequências, ele quer destruir. Destruir, claro, evi­dentemente não apenas a esquerda, mas o povo. E nós, os críticos de esquerda, alguns que estão nos movimentos, que olham para a sociedade de uma maneira mais ampla, e digamos, olham para a so­ciedade pensando que ela é uma sociedade e não o lugar do plantio dos seus próprios interesses priva­dos, somos pouco estratégicos porque nós não usa­mos as mesmas armas. Para mim é uma questão de termos armas muito diferentes para usar.
Nina Fideles – Em sua opinião, a esquerda, em termos genéricos, consegue decifrar esta iconografia? Entender estes sinais?
Eu acho que nós podemos também colocar a ques­tão do que é a esquerda hoje, nesse sentido, para responder a sua pergunta. Qual esquerda? Que es­querda está em crise? Porque a esquerda de 2016 surgiu a partir de 2013. Por mais que em 2013 teve muitos problemas, não é a mesma esquerda dos anos 1970, que não é a mesma esquerda de 1917, que não é a mesma esquerda do século 19. A esquerda de hoje é muito mais, vamos dizer, ampla. Então, eu colocaria sob o nome, sob o termo “esquerda” todos os movimentos que lutam hoje por democracia. E aí nós podemos ir dos anarquistas até os comunis­tas, passando por feministas, pelos sem partido, por aqueles que vivem certa alienação, mas ao mesmo tempo não concordam com o status quo. Tanto que a gente vê na esquerda pessoas que são a favor do golpe e contra o golpe. E, às vezes, você analisa os motivos e eles são todos muito parecidos. Quer di­zer, tem uma parte do que a gente chama desse ci­dadão que não está muito bem resolvido, que não tem pra si mesmo muito rigor categorial, mas ele está situado ali, e faz parte desse amplo espectro, porque a gente não conseguiria colocar essa pessoa dentro de um pensamento de direita clássico. Isso vale também para a direita? Vale, existem também pessoas que são inespecíficas nesse território no
campo da direita. Pessoas que vivem um pensa­mento preconceituoso, mas fica difícil você dizer “esse é um sujeito de direita”, porque não tem tanta certeza nem tanto rigor nas categorias que ele usa. Mas o que acho interessante, que pode também contar dentro desse contexto, é a gente imaginar ou colocar a questão da autocrítica da esquerda. E pensar que hoje nós temos que renovar a esquerda talvez a partir de uma política de escuta da própria esquerda, e talvez essa falta de escuta seja um pro­cedimento mais à direita que acontece dentro da esquerda. Se a gente conseguisse ser uma esquerda tão ampla como a gente deseja e se a gente pudesse vislumbrar as potências da esquerda nesse campo muito amplo, e se a gente conseguisse colocar como método de reconstrução da esquerda essa política da escuta, acho que nós iríamos muito longe. Mas, talvez muito da esquerda tenha se perdido nesses procedimentos que são repetitivos, que são sempre os mesmos. Aquela cara que já está pronta. Aquela cara, por exemplo, dos homens barbudos antigos, que são tão antigos, palavras de ordem, aquele jei­to antigo de fazer e que já não contempla mais os movimentos jovens, os movimentos de mulheres... Olha o feminismo. Se a gente usar a questão do fe­minismo e fizer uma analogia, o feminismo que é bacana hoje é o feminismo que a gente chama de dialógico, não sei se tem gente que chama disso, mas eu chamo. O feminismo dialógico faz dialogar o passado com o presente e as potências que estão aí pra surgir. Então, por que o feminismo está tão impressionante? Porque as mulheres resolveram se juntar. O que acontece com a esquerda? A esquerda se separa. Perdemos muitas eleições, vamos perder demais porque nós nos separamos enquanto es­querda. Falta diálogo para a própria esquerda.
Laís Modelli – Será que a gente não está vivendo um momento de crises de identidades? O Bolsonaro, por exemplo, tem um discurso intelectual extremamente vazio, mas é um discurso de identidade muito forte. Um homem branco, classe média alta, a favor do militarismo. É uma reivindicação de identidade. As mulheres, quando se separam da esquerda, e tem muito movimento feminista fazendo isso, sobrepondo o gênero à classe, por exemplo, também é uma reivindicação de identidade. Então, é um confronto de identidades?
Você tem razão, eu concordo com você. Eu acho que há confronto de identidade, e se a gente pensar no campo da esquerda é um confronto que não nos aju­da. Então, juntar homens, mulheres, movimentos trans e todo campo LGBT. Juntar gênero com raça e com classe, eu acho que essa é uma questão boa para a esquerda, mas quem levantou isso foram, sobretudo, as feministas interseccionais. Então, a grande discussão da esquerda, a meu ver, é colocada pelas feministas que usam a questão da identidade como método de luta política – a luta antirracial é uma luta na questão da identidade, a luta de gêne­ro é na identidade, e a luta de classes sempre foi na identidade. Nós precisamos juntar essas três lutas, essas três identidades, para recriar também o ter­ritório da luta e as potências da luta. E sem dúvida, continua sendo esse o embate, em termos de polí­tica. É claro que a gente poderia propor, e muitos propõem, uma política que vá além da questão da identidade, mesmo no feminismo a gente vê isso. Estamos para além das identidades, queremos ou­tras coisas, queremos as singularidades, e acho que dá para fazer uma política inserindo a questão das singularidades, mas, enquanto movimento a gente não funciona fora das identidades. Então, é preciso colocar as singularidades para renovar os movimen­tos, para renovar o sentido das próprias identidades. Eu, enquanto feminista, penso muito no feminismo negro. As feministas negras têm um posicionamen­to que modifica completamente a questão do femi­nismo. Então, quando você entra em contato com as feministas negras, se é branca, você se torna uma feminista branca, você é marcada por esse lugar, e esse lugar precisa ser assumido até para você poder desconstruí-lo.
Aray – É o lugar de fala...
Sim. E essa é uma das grandes contribuições em ter­mos de ativismo, em termos muito concretos, mas também uma grande contribuição em nível teóri­co. A construção dos textos e das teorias feministas do século 20 todo, aliás, se a gente buscar antes na história do feminismo a gente vai encontrar sempre isso, a construção da teoria a partir de um lugar de fala. Isso é genial, e é totalmente diferente do poder patriarcal, do poder tradicional, de tudo aquilo que a gente conheceu até hoje em termos de política
Aray Nabuco – Esse novo feminismo traz outra questão para a esquerda, não é Marcia? O esquerdo-macho. Como você define  o esquerdo-macho?
(risos) Um dia eu estava falando para um grupo de sindicalistas e disse pra eles “vocês têm que fa­zer um workshop para esquerdo-machos”. Eu saí lá fora e um desses sindicalistas bem antigos me dis­se assim: “o que é um esquerdo-macho?” Eu disse: “Eu acho que você é um esquerdo-macho”, brinquei com ele, porque ele nem fazia ideia. Claro, é uma terminologia que surgiu hoje em dia, no contexto do feminismo jovem, desconstrutivo, toda essa coi­sa... Brinquei com ele, mas estava falando sério. Eu acho que é um tremendo de um problema. Por que é um problema tão sério? O povo da esquerda, vamos colocar assim, a esquerda que não leu certos textos, que não se ambientou com certas questões, pode pa­decer também de ignorância. Então a esquerda que leu Marx, a esquerda que leu Lênin, não corre o risco de virar esquerdo-macho, porque Marx falou coisas importantes sobre as mulheres; Lênin falou muito sobre as mulheres; Engels também falou muito so­bre as mulheres. E as feministas de esquerda, as mu­lheres de esquerda, falaram muito sobre as mulhe­res também. Rosa Luxemburgo falou coisas muito importantes. Agora, a meu ver, eles não praticavam com a consciência que a gente tem hoje, isso que nós chamamos de feminismo interseccional, que é juntar raça, classe e gênero e sexualidade. Juntar estes aspectos todos e pensar em como eles se atra­vessam, como eles se constroem juntos. Os homens vão ter que rever isso, porque a esquerda contempo­rânea é feita também dessas feministas. Eu até co­locaria nisso, e eu tenho até certa divergência com várias companheiras, porque eu prefiro colocar a es­querda debaixo do guarda-chuva do feminismo, do que colocar o feminismo dentro da esquerda. Quer dizer, pra mim o feminismo engloba a esquerda. E o feminismo é muito antigo, a primeira reivindicação por direitos não veio da parte dos homens, e não veio da parte dos escravos, veio das mulheres, se a gente pensar em termos históricos. E todas as fe­ministas, cujos textos chegaram pra nós, mesmo antes de se chamarem feministas – porque isso é uma hétero-denominação dada na história –, essas mulheres que reivindicavam direitos, rei­vindicavam o direito de reconhecimento, o direito à educação, o direito a ter um lugar de respeito na sociedade, todas elas eram muito desconstrutivas. Qualquer texto que você vá buscar na história, você vê análises desconstrutivas desses lugares de iden­tidade, elas perguntando “por que eu, sendo mulher, não posso isso que um homem pode?”. E não apenas os textos das mulheres que na história escreveram, mas os homens também percebiam isso. Se a gen­te vai buscar nas tragédias gregas a gente vê Eurí­pedes colocando na boca de Medeia reivindicações que são nossas ainda hoje. Então essa percepção de que existia um problema, de que alguma coisa esta­va errada no reino do patriarcado. E isso que estava errado era algo concernente à posição das mulheres, em relação justamente aos direitos das mulheres. Acho realmente que uma revisão da esquerda hoje implicaria necessariamente em repensar o lugar das mulheres.
Nina Fideles – O próprio feminismo tem outras linhas, digamos assim, que não fazem o recorte de classe. Concorda?
Existem feministas que não vão trabalhar com isso, assim como na luta de classes tem gente que es­quece a questão de gênero, então essa falta de in­terseccionalidade é um problema. Mas eu não vejo nenhuma feminista que reivindique raça e que não reivindique classe. Por isso que eu creio nas teorias e na criação dessas mulheres, eu acho que elas têm uma coisa importante para nos ensinar. E claro, no movimento, na ação, as individualidades e as sin­gularidades vêm à tona. Existem pessoas que estão mais preparadas porque viveram mais, estudaram mais, ou tem insights melhores. Por isso que eu gos­to de trabalhar com essa ideia de feminismo dialó­gico, porque onde eu tenho limites a minha compa­nheira feminista pode me ajudar a superá-los; onde ela tenha, eu talvez tenha alguma experiência que possa melhorar o lugar dela. E o termo que a gente usa para designar essa co-criação feminista é a pro­tagonização da outra. Para que serve o feminismo? Para a gente colocar a luta das mulheres em cena, mas a luta de todas as mulheres, que é uma luta concreta, não é uma luta teórica, é uma luta em que se eu sou feminista eu olho pra outra mulher, eu olho pra outra feminista, e antes de pensar no meu brilho, na minha condição de líder, ou qualquer coisa desse tipo, como os homens fazem, eu penso como eu faço para inseri-la num processo de poli­tização, de expansão do nosso diálogo, que implica necessariamente numa expansão do campo.
Laís Modelli – Lembrando que o movimento feminista no Brasil se organiza enquanto movimento na pauta do direito ao voto na década de 1920, depois ele ganha uma força tremenda no processo de anistia e redemocratização do Brasil, e agora, desde 2013, ele vive um momento mais forte, aproximando então o feminismo com a pauta política no Brasil, a gente pode dizer que ele é o termômetro da democracia?
É muito interessante a sua hipótese. Acho que sim. O feminismo como nós temos experimentado nes­se momento é um feminismo que surge dentro de condições políticas, midiáticas e sociais. A gente pode até dizer que existe uma irrupção nova do feminismo, sendo que o feminismo se mantinha numa certa latência na sociedade, porque esse fe­minismo não vem do nada, tem um lastro que per­mite que ele rompa com essa força. E ele é um pouco diferente sim dos feminismos de outros momentos. Você citou dois momentos, na primeira metade do século, e um momento mais próximo, nesse período da segunda metade do século 20. E qual é a gran­de diferença? A diferença é a questão dos direitos que se renovam. Então as sufragistas se envolviam com o direito ao voto, elas queriam poder votar. Al­gumas mulheres descobriram naquela época que elas tinham o direito também de ser votadas. Isso é muito fundamental na história do Brasil e temos al­guns exemplos históricos, sobretudo no Rio Grande do Norte. A primeira prefeita da América Latina era uma mulher (Luísa Alzira Teixeira Soriano) que, em 1928, antes mesmo da permissão ao voto, da lei do voto que é de 1932, entrou na Justiça para poder ser eleita prefeita de Lajes no Rio Grande do Norte. Olha que coisa mais interessante. Então, hoje nós esta­mos num movimento bem profundo em relação a essa questão que surgiu lá nos anos 20, o direito de sermos votadas porque somos mais de 50% da população, mas só 10% de parlamentares. Então há uma irrepresentabilidade muito pesada, e não é só de quantidade, é uma questão também da qualidade do voto, da qualidade da política que se faz, que não permite que as mulheres encontrem esse espaço aberto para lutarem no campo político, no campo da política institucional. Se isso não está acontecen­do também no campo político, precisamos investi­gar a correspondência disso no campo da política no sentido mais amplo. Será que as mulheres estão vivendo a política no seu sentido amplo, com toda a sua força? Aqui eu estou separando evidentemente a política institucional da política como um todo, da política como relações diárias, cotidianas em diver­sos campos do poder, aliás, essa é uma separação que se usa teoricamente, mas que nós temos tam­bém que superar.
 E concordo, se a gente olha qual o lugar das mu­lheres dentro da sociedade, a gente entende de maneira termométrica o que está acontecendo. Só para finalizar, em relação a esse feminismo atual, acho que é um feminismo também que nasce nas condições da reprodução e da transmissão da infor­mação. Parece tudo muito rápido porque nós nos co­municamos muito rapidamente, e emitimos essas informações sobre o feminismo; as mulheres que estavam lá todas quietas, no silêncio, sem perceber o que estava acontecendo, se dão conta, quase num insight, e percebem: É disso que eu preciso, eu estou sendo vítima dessas violências físicas e simbólicas, eu posso ultrapassar isso dentro de um movimen­to, me reunindo com companheiras, entrando num partido, num movimento, ou simplesmente fazen­do parte desse feminismo transcendental que é o feminismo da internet, que funciona muito como uma máquina de protagonização. Muitas vezes você nem sabe direito qual é a linha do feminismo que está defendendo, mas chega e diz “eu sou femi­nista”. Faz mal nenhum também.
Laís Modelli – Em muitos dos seus textos, você associava Dilma a politicamente estuprada. Você pode dizer mais sobre isso?
É, eu falei isso algumas vezes. Eu falei que aqui­lo que tinha acontecido, que estava acontecendo, o processo que levou ao golpe era comparável, e a gente poderia usar essa metáfora do estupro, era estupro político. Eu fui até criticada por algumas pessoas que disseram que eu não deveria usar essa expressão, porque uma pessoa que é estuprada fi­sicamente sofre uma violência incomparável. Eu pensei um pouco e cheguei à mesma conclusão: de que todo estupro é político, inclusive o estupro físico vivido por uma pessoa. Óbvio que há uma diferença de caso e uma diferença de sofrimento, e é claro que nós não podemos comparar com a física, mas a me­táfora nos serve, infelizmente. E nesse caso também dá pra ver, na existência dos estupros físicos, o cará­ter político dos estupros, porque o estupro é sempre um tipo de violência que é produzida, atravessada por uma questão que é política, que é o gênero e a sexualidade, essas duas questões.
Então, para analisar o estupro – a questão classe social talvez seja mais difícil de analisar, mas eu não tiraria fora – quais são as mulheres que são mais estupradas, quem é mais estuprada? Mulhe­res são mais estupradas, mulheres jovens são mais estupradas, mulheres e crianças são muito estupra­das, mais do que homens, ainda que haja também estupro de homens. Essa questão quantitativa se torna qualidade, nesse caso também. E no caso de Dilma Rousseff, a nossa presidenta, ela sofreu de fato uma violência que foi uma violência política, uma violência pessoal, e essa violência pessoal foi também uma violência de gênero. O caráter misógi­no do golpe é evidente. Eu até escrevi um texto que publiquei no blog da Cult, que foi um texto derivado desse tribunal internacional que eu fui testemunha, e nele eu falava da máquina misógina e o fator Dil­ma Rousseff na política brasileira. Que fator é esse? É o fator gênero. O que uma mulher, o que uma pes­soa na sua condição de mulher, e uma mulher que se autoexpressa dessa maneira tão acintosa, ela foi interpretada como uma demente, uma louca, uma pessoa inadequada porque ela se autoafirmou vá­rias vezes como presidenta. E o ódio que causou no machismo conhecido no Brasil e, sobretudo nessa perspectiva conservadora de direita bem machista... Os fascistas então ficaram tremendo de ódio. Eu co­mecei a perceber como tinham pessoas que ficavam querendo se atirar no abismo porque Dilma dizia “sou presidenta”. Ali você via que tinha um afeto muito machista em cena na simples percepção da pronúncia, essa pronúncia mexia com o jogo de lin­guagem machista.
Aray Nabuco – O estupro de Dilma se materializou iconicamente naquele selo que a direita distribuiu em que ela tinha perna aberta no tanque de gasolina. É a materialização da ideia do estupro político.
Eu citei esse exemplo, porque ficava claro, icono­graficamente, que ela tinha sido estuprada, e que as pessoas que odiavam Dilma a odiavam também nesse nível de pensar na questão de gênero. “Eu olho para uma mulher que eu odeio e penso que ela merece ser estuprada.” Como a gente viu parlamen­tares declarando... Tantas cenas que nós podería­mos enumerar.
Aray Nabuco – Algumas medidas do governo interino atingem a mulher diretamente. Por exemplo, o fim da Secretaria de Direitos Humanos e Igualdade, o fim do Minha Casa Minha Vida, em que, atualmente, as escrituras e o financiamento saem no nome da mulher...
Acho que para aqueles que eram críticos do gover­no Dilma, eu mesma, se a gente comparar o governo de Dilma e o governo atual, os retrocessos são tan­tos agora que a gente consegue visualizar melhor os avanços. Mas talvez o governo Dilma não tenha sido tão bom de publicizar os seus feitos. E a manu­tenção do poder hoje em dia, todos nós sabemos, depende também da publicização, verdadeira ou falsa. Essa publicização tem a ver também com uma certa esperteza de saber manter o poder. Eu tenho que mostrar que eu sou bom, mostrar que eu estou fazendo, que estou interessado... Essa é a dimensão publicitária da política que é típica da nossa época e nós não podemos esquecer. Por quê? Porque esta­mos no contexto democrático, ou pelo menos em que o povo ainda conta, não sei até quando que o povo ainda contará. Ainda conta pelo menos en­quanto voto, não sei até quando que o nosso voto vai ser sustentado. Estamos à espera de novos gol­pes, ninguém é ingênuo de pensar que não teremos novos desdobramentos pesadíssimos nos próximos tempos. Então, acho que essa é uma questão: com­parar o passado com o que tem agora e perceber que havia avanços e que esses avanços são ainda maiores, sobretudo quando os comparamos com os retrocessos desse momento.
Nina Fideles – Essa inconformação que você citou com o termo presidenta, se revelava também em outros sinais. Dilma tomou posse em carro aberto junto com a filha, sem nenhuma figura masculina ao lado... Sem crime algum, ela era odiada...
Na questão do golpe, o fator Dilma Rousseff é fun­damental. Ali a gente consegue avaliar, olhan­do para ela, e o que aconteceu com ela e como foi montado esse golpe, a gente vê a construção do ódio misógino. O que é o ódio contra as mulheres? É misoginia. Então Dilma, eu mesma me espanta­va, ela tinha mais de 80% de aprovação no seu pri­meiro mandato e, à medida que ela foi prometendo ser a nova candidata e foi reeleita – isso também é importante –, os meios de comunicação de massa, claro, já armaram um processo, uma logística, um processo que nos antecede, que antecede a nossa compreensão banal, comum de cidadãos. Ela foi sendo desconstruída como grande estadista, ou grande governante, porque Dilma tem um conheci­mento técnico de gestão espantoso, e ela demons­trou isso no dia da votação pelo impeachment, foi o golpe de misericórdia do golpe. Mas ficou eviden­te nesse caso que essa pessoa tinha conhecimento, mas cuja imagem devia ser desconstruída. Por onde eles podiam desconstruir? Ela não era corrupta, ela não era cocainômona, não tinha roubado nem 5 mi­lhões, nem 10 milhões, nem 23 milhões, não tinha nenhum tipo de enriquecimento ilícito, não tinha helicóptero, não tinha feito absolutamente nada que pudesse ser usado, e ninguém conseguiu, ela devia estar muito bem protegida, colocar nada na vida dela que pudesse sustentar um processo real. Então, o que você podia usar? Uma estratégia banal. Uma estratégia banal que não ia dar em nada para os outros que também fazem, as famosas pedala­das, criminalizar esse procedimento e, a partir daí, conseguir fazer alguma coisa contra ela. Mas nada disso conta, o que conta são os meios de comunica­ção de massa aliados ao Legislativo e ao Judiciário, e claro, dos empresários que estavam ali por trás dan­do força e pagando as contas desse grande arranjo, entre aspas, mafioso. O arranjo desses poderes, e po­deres que sabem muito bem, nós estamos na era do espetáculo, manipular a imagem. Essa é a função da televisão, sobretudo na nossa época. E a imagem da Dilma, para poder ser desconstruída, deveria pesar sobre o fato de ela ser mulher. E aí vinham os clichês, a mulher louca, como apareceu numa dessas revis­tas de bancas de esquina, a mulher doente, a mulher sem marido, a mulher amarga, essa mulher que não vale a pena. E quem não admirava Dilma Rousseff, mas tem um pingo de noção, e teve a oportunida­de de ver que tipo de personagem político que ela foi, sobretudo no dia do golpe de misericórdia, ficou muito admirado com ela, e talvez os brasileiros que tenham visto aquilo com cuidado tenham percebi­do que ela não fazia o jogo dos corruptos, não fazia o jogo para agradar ninguém, Dilma nunca fez esse esforço populista. E aí alguns críticos dizem que isso falta para a esquerda. Grandes teóricos da esquer­da comentam como falta o populismo à esquerda.
E Lula subiu, cresceu, é o grande líder e foi o grande líder durante todos esses anos e continua sendo, e é preciso, por isso, agora tentar destruir também a sua imagem, colocando-o como bandido, um ladrão, um corrupto, justamente nesse contexto. Desmon­tar pessoas, desmontar o personagem, investir na destruição da sua imagem, colocar essas pessoas como figuras que a elas só é permitido o ódio. É uma pena, porque as pessoas não analisam como elas es­tão tendo os seus afetos manipulados. E a televisão e os meios de comunicação de massa são especialis­tas em manipular afetos, assim como todo aquele que manipula discurso, o pastor, o padre... E a verda­de dos fatos foi deixada de lado.
Nina Fideles – Não por acaso que a bancada evangélica fez uma participação bem ativa no golpe...

Aray Nabuco –Tem gente inclusive chamanda de golpe gospel, porque a articulação dos templos evangélicos, dos Cunha, dos Malafaias da vida, dos batistas, foram muito intensas.

Essa camada da população precisa também ser ana­lisada. E tem mil questões e precisamos parar para pensar o que significa a laicidade do nosso Estado e a presença desses personagens que usam o seu capital religioso para angariar espaço na política. Eu achei ótima a afirmação do padre Marcelo Ros­si, que é um padre católico, que as pessoas não de­veriam jamais votar em religiosos. Foi muito bom que um padre católico tenha dito isso, consideran­do também que o catolicismo perde espaço, por ser uma religião com todos os seus defeitos, pelo menos é uma religião mais racional. Essas outras religiões neopentecostais têm usado o irracionalismo e a ig­norância como método de construção do seu espa­ço. Eu até escrevi há pouco tempo um artigo sobre a ignorância populista. Essa cena da ignorância, da irracionalidade que ganha terreno entre nós e que planta na cabeça dos fiéis e dos eleitores, que são os mesmos hoje em dia, uma perspectiva comple­tamente irracional, eu diria até delirante, em rela­ção ao que é política. E essa separação entre política e religião nós deveríamos discutir e levar muito a sério. É preciso promover essa separação, porque a junção dessas duas coisas tem sido muito perigosa para a democracia brasileira, que nesse momento está nas cinzas. Talvez ela tenha força para se recu­perar, como aquela ave elíptica, a Fênix, mas não sei se isso será possível...
Laís Modelli – Então é um mundo de Spinoza, não? Sentimentos que estão à flor da pele, e se os sentimentos estão à flor da pele, não existe mais livre-arbítrio. Como você vê esta questão num processo eleitoral?
Vamos chamar tudo isso de grande manipulação. E a grande manipulação faz parte de um sistema, de uma programação geral, e nós somos como in­divíduos inseridos nisso. O contexto não facilita, porque vivemos numa sociedade de espetáculo, era digital, paranoia, enfim... Há toda uma manipulação da razão, da emoção, da ação. E essa manipulação geral é promovida por todas as instituições. Em ou­tras palavras eu acho que nós não temos mais, isso que você chamou de livre-arbítrio, essa liberdade de escolha, porque nós fomos esvaziados de nós mesmos, nós fomos sugados. E aí voltamos àquele motivo inicial tétrico do terror que nós estávamos comentando no início da nossa conversa. É algo de terrível que nos acontece, de assustador, de irracio­nal – claro que se a gente for procurar as racionali­dades internas tem muita –, mas tem um jogo ao mesmo tempo, mais do que uma racionalidade, que é a destruição daquilo que está feito e a tentativa de enganar todas as pessoas. E como a gente faz para enganar as pessoas? Esse é uma questão muito inte­ressante. Porque nós não somos idiotas. O jogo que se usa para enganar as pessoas, por parte dos políti­cos, dos donos do poder de modo geral, empresários, políticos, juristas, enfim, ministros do STF, juízes que tem por aí, é o jogo fascista básico, que é o jogo do cinismo. Basta dizer, “Lula é bandido”, “Dilma cometeu um crime”, se eu disser que cometeu um crime de responsabilidade só fica mais sofisticado. O povo que ouviu essa informação pela TV, ou pelo jornal da esquina, fica feliz de poder dizer “crime de responsabilidade”. Parece que ele agora domina uma epistemologia. Um desses juízes que andou falando sobre as boas intenções nas práticas, na au­sência de provas temos convicções, não é?! “Nós po­demos proceder dessa maneira, porque nós temos boas intenções.” Então nós temos boa-fé, quer dizer, eu posso cometer crime se eu tenho boa-fé. As pes­soas não têm condições de analisar a epistemologia que está também em jogo nisso. Aí a gente vai falar para as pessoas, direitos humanos, lei, Constituição, as pessoas não têm condições, porque as pessoas no Brasil, em função da falta de escolarização, des­sa lavagem cerebral real que se vive pela televisão, as pessoas usam clichês, pensamentos prontos. E são os pensamentos que são dados a elas, elas vão usando o que tem. Qual é o cenário? O cenário é o do vazio do pensamento, ninguém se esforça para tentar entender. Quem se esforça por tentar enten­der fica estarrecido, fica ainda mais apavorado com o que está acontecendo. Mas as pessoas se protegem do pavor, elas tendem a tapar o sol com a peneira, a evitar as grandes questões, evitar as perguntas, se contentar com respostas, porque se nós come­çarmos a fazer perguntas demais não restará pedra sobre pedra. E nós ficaremos, claro, para a história, como aquele bando de malucos, aqueles intelectuais lá, aquela gente que estava preocupada com histó­ria, aquela gente doente, aquela gente louca (risos).
Aray Nabuco – Mas o capitalismo sabe bem como manipular todas as subjetividades.
O capitalismo se transformou num regime cultural que transforma tudo, inclusive o desejo, em mercadoria. O direito ao desejo, o desejo como uma coisa solta, já não existe. Se a gente pensar na Antiguidade, por exemplo, o desejo do herói, o desejo como luta de vida e morte como aparece nos textos de Hegel, não existe. Hoje existe o desejo pela mercadoria e o próprio desejo transformado numa mercadoria. É a sociedade toda, a vida toda, todas as dimensões da vida reduzidas, humilhadas na forma mercadoria. Acho que esse é o horror do capitalismo. E aí o capitalismo acaba sendo religião porque é ritual, acaba sendo estética porque é um jeito também das coisas serem colocadas, de elas aparecerem, o capitalismo é uma ética que é a ética do mercado, é uma política que acaba com a política, transforma tudo em pura economia, quer dizer, a vida não vale mais a pena fora daquilo que é econômico

domingo, 7 de janeiro de 2018

Pequena reflexão sobre os elementos de fascismo na linguagem midiática brasileira, por Carlos Coimbra

Carlos Coimbra
Fonte: GGN
Uma vez Bertold Brecht disse que “a cadela do fascismo está sempre no cio” e que “não há nada mais parecido a um fascista que um burguês assustado”.
Posso estar completamente errado, mas às vezes parece que a nossa mídia leva muito a sério a sua missão de manter o telespectador assustado. De “ateus sem coração” a “comunistas infanticidas”, da “arte degenerada” a “bandido bom é bandido morto”, os exemplos diários estão nas bocas e nas letras de colunistas, comentaristas ou convidados “especiais”.
Muitas vezes o fascismo parece distante, coisa do século passado. E muitos acham que deve ser item histórico a ser esquecido e enterrado.

Nada disso, ele deveria ser item presente e diariamente relembrado. Para que não se repita.
No Brasil temos essas dicotomias do povo simpático que é raivoso, de pequenos pensadores que apreciam o aroma do cio fascista como fina iguaria, dos pequenos burgueses que defendem o esmagamento dos direitos (sejam humanos, civis, trabalhistas) para se sentirem menos pequenos.
A banalização da força policial é vista diariamente, para defender um projeto golpista. O cheiro de cio é forte e tudo aparenta calma. Uma calma pregada pela TV nesta semana, que repete o mantra perigoso de que “tudo está bem” e que “o crescimento foi retomado”.
O cheiro do cio está realmente forte. Mas a glândula pituitária, quando se satura, não sente mais cheiro nenhum, apesar de ele estar lá

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Revolução e Democracia

Revista Caros Amigos
Por Boaventura de Sousa Santos
Tenho vindo a escrever que um dos desenvolvimentos políticos mais fatais dos últimos cem anos foi a separação e até contradição entre  revolução e democracia como dois paradigmas de transformação social. Tenho afirmado que esse facto é, em parte, responsável pela situação de impasse em que nos encontramos. Enquanto no início do século XX dispúnhamos de dois paradigmas de transformação social e os conflitos entre eles eram intensos, hoje, no início do século XXI, não dispomos de nenhum deles. A revolução não está na agenda política e a democracia perdeu todo o impulso reformista que tinha, estando transformada numa arma do imperialismo e tendo sido em muitos países sequestrada por antidemocratas.
Esta tensão entre revolução e democracia percorreu todo o século XIX europeu mas foi na Revolução Russa que a separação, ou mesmo incompatibilização, tomou forma política. É debatível a data precisa em que tal ocorreu, mas o mais provável é que tenha sido em Janeiro de 1918, quando Lenine ordenou a dissolução da Assembleia Constituinte onde o Partido Bolchevique não tinha maioria. A grande revolucionária Rosa Luxemburgo foi a primeira a alertar para o perigo da ruptura entre revolução e democracia. Estando na prisão, Rosa Luxemburgo escreveu em 1919 um panfleto sobre a revolução russa cujo destino foi turbulento, só muito mais tarde tendo sido publicado na íntegra. Nesse texto, Rosa Luxemburgo escreve de modo lapidar que a liberdade só para os apoiantes do governo ou só para os membros de um partido não é liberdade. A liberdade é sempre e exclusivamente a dos que pensam diferentemente, e acrescenta: “Com a repressão da vida política no país todo, a vida dos sovietes (o poder popular ou conselhos de operários, camponeses e soldados) definhará mais e mais. Sem eleições gerais, sem total liberdade de expressão e de reunião, sem a disputa livre entre as opiniões, a vida morre nas instituições públicas, torna-se uma mera aparência de vida em que a burocracia é o único elemento activo. A vida pública adormece aos poucos, e uns poucos líderes partidários, dotados de uma energia sem limites e com grande experiência, são quem governa. Entre eles, apenas um pequeno numero de notáveis dirige enquanto a elite da classe operária é convidada de tempos a tempos a participar em encontros para aplaudir os discursos dos líderes e aprovar por unanimidade as resoluções propostas—no fundo, o trabalho de uma clique, uma ditadura, não certamente do proletariado, mas de um pequeno grupo de políticos… Estas condições causarão inevitavelmente a brutalização da vida pública: tentativas de assassinato, liquidação de reféns.” Um texto premonitório de alguém que seria, ela própria, assassinada dois anos depois.
Vivemos um tempo de possibilidades desfiguradas. A revolução seguiu uma trajectória que foi dando cada vez mais razão às previsões de Rosa Luxemburgo e foi levando a cabo uma transição que, em vez transitar para o socialismo, acabou por transitar para o capitalismo, como bem ilustra hoje o caso da China. Por sua vez, a democracia (reduzida progressivamente à democracia liberal) perdeu o impulso reformista e provou não ser capaz de se defender dos fascistas, como mostrou a eleição democrática de Adolfo Hitler. Aliás, o “esquecimento” da injustiça socio-económica (para além de outras, como a injustiça histórica, racial, sexual, cultural e ambiental) faz com que a maioria da população viva hoje em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas.
Se o drama político do século XX foi separar revolução e democracia, atrevo-me a pensar que o século XXI só começará politicamente no momento em que unir revolução e democracia. A tarefa pode ser assim resumida: democratizar a revolução e revolucionar a democracia. Vejamos como. Dados os limites de espaço, as orientações são formuladas em termos de princípios com escassa explicação.
Democratizar a revolução. Primeiro, são por vezes necessárias rupturas que quebram a ordem política existente. Esta, quando se auto-designa democrática, é certamente uma democracia de minorias para as minorias, em suma, uma falsa democracia ou uma democracia de baixíssima intensidade. A ruptura só se justifica quando não há outro recurso para pôr fim a este estado de coisas e o seu objectivo principal é o de construir uma democracia digna do nome, uma democracia de alta intensidade para as maiorias, com respeito pela acomodação das minorias. A revolução não pode correr o risco de se perverter na substituição de uma minoria por outra. Segundo, a ruptura, como o nome indica, rompe com uma dada ordem, mas romper não significa fazê-lo com violência física. No dia da tomada do Palácio de Inverno morreram poucas pessoas e os teatros funcionaram normalmente. Tal como na Revolução de 25 de Abril de 1974, em que morreram quatro pessoas e houve um ferido grave. Terceiro, os fins nunca justificam os meios. A coerência entre uns e outros não é mecânica mas devem equivaler-se nos tipos de acção e de sociabilidade política que promovem. Neste sentido, não é admissível que se sacrifiquem gerações inteiras em nome de um futuro radioso que hipoteticamente virá. O futuro daqueles que mais precisam da revolução são as maiorias empobrecidas excluídas, discriminadas e lançadas pela sociedade injusta em zonas de sacrifício. O seu futuro é amanhã e é amanhã que devem começar a sentir os efeitos benéficos da revolução. Terceiro, historicamente muitas revoluções foram rápidas em despolarizar as suas diferenças com os inimigos e antigas classes dominantes, ao mesmo tempo que polarizaram, por vezes de forma brutal, as suas diferenças com grupos revolucionários, cuja linha política fora derrotada. Chamou-se a isso sectarismo e dogmatismo. Esta perversão dominou toda a esquerda política do século XX. Quarto, a luta de classes é uma luta importante mas não é a única. As lutas contra as injustiças e discriminações raciais (colonialismo) e sexuais (hétero-patriarcado) são igualmente importantes, e a luta de classes nunca terá êxito se as outras também não tiverem. Vivemos em sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais e as três formas de dominação actuam articuladamente. Ao contrário, os homens e as mulheres que lutam contra a injustiça concentram-se, em geral, numa das lutas, negligenciando as outras. Enquanto as lutas se mantiverem separadas, nunca terão êxito significativo. Quinto, não há uma única forma de emancipação social. Há múltiplas formas e, por isso, a libertação ou é intercultural ou nunca será
Revolucionar a democracia. Primeiro, não há democracia, há democratização progressiva da sociedade e do estado. Segundo, não há uma única forma legítima de democracia, há várias, e o conjunto delas forma o que designo por demodiversidade. Tal como não podemos viver sem a biodiversidade, também não podemos viver sem demodiversidade. Terceiro, nos diferentes espaços-tempos da nossa vida colectiva, as tarefas de democratização têm de ser levadas a cabo de modo diferente, e os tipos de democracia serão igualmente distintos. Não é possível a democratização do estado sem a democratização da sociedade. Distingo seis espaços-tempo principais: família, produção, comunidade, mercado, cidadania e mundo. Em cada um destes espaços a necessidade de democratização é a mesma, mas os tipos e os exercícios de democracia são diferentes. Quarto, seguindo o pensamento político do liberalismo, as sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais em que vivemos reduziram a democracia ao espaço-tempo da cidadania, o espaço que designamos por político, quando todos os outros são igualmente políticos. Por isso, a democracia liberal é uma ilha democrática num arquipélago de despotismos. Quinto, mesmo reduzida ao espaço da cidadania, a democracia liberal, também conhecida por representativa, é frágil, porque não pode defender-se facilmente dos anti-democratas e dos fascistas. Para ser sustentável, tem de ser complementada e articulada com a democracia participativa, ou seja, com a participação organizada e apartidária de cidadãos e cidadãs na vida política muito para além do exercício do direito de voto, que obviamente é precioso; apenas não é suficiente. Sexto, os próprios partidos têm de se reinventar como entidades que combinam dentro de si formas de democracia participativa entre os seus militantes e simpatizantes, sobretudo na formulação dos programas dos partidos e na escolha de candidatos a cargos electivos. Sétimo, a democracia de alta intensidade deve distinguir entre legalidade e legitimidade, entre o primado do direito (que inclui os direitos fundamentais e os direitos humanos) e o primado da lei (direito positivado), ou seja, entre rule of law e rule by law. O primado da lei (rule by law) pode ser respeitado por ditadores, não assim o primado do direito (rule of law). Oitavo, hoje em dia governar democraticamente significa governar contra a corrente, já que as sociedades nacionais estão sujeitas a um duplo constitucionalismo: o constitucionalismo nacional, que garante os direitos dos cidadãos e as instituições democráticas, e o constitucionalismo global das empresas multinacionais, dos tratados de livre-comércio e do capital financeiro. Entre os dois constitucionalismos há enormes contradições, já que o constitucionalismo global não reconhece a democracia como um valor civilizacional. E o mais grave é que, na maioria das situações, em caso de conflito entre eles, é o constitucionalismo global que prevalece. Quem controla o poder do governo não é necessariamente quem controla o poder social e económico. É o que sucede com os governos de esquerda. Para que estes sustentem, não podem confiar exclusivamente nas instituições. Devem saber articular-se com a sociedade civil organizada e com os movimentos sociais interessados em aprofundar a democracia e dispor de meios de comunicação próprios que rivalizem com os média corporativos em geral subordinados aos ditames do constitucionalismo global.


Democratizar a revolução e revolucionar a democracia não são tarefas fáceis, mas são a única via para travar o caminho ao crescimento das forças de extrema-direita e fascistas que vão ocupando o campo democrático, aproveitando-se das debilidades estruturais da democracia liberal. A miséria da liberdade será patente quando a grande maioria da população só tiver liberdade para ser miserável.