Juíza do trabalho
Justificando
A ilegítima Lei 13.467/17 da reforma trabalhista, que tramitou a portas fechadas, em velocidade recorde e sem o cumprimento da promessa de Temer, de que faria vetos ao texto aprovado, está gerando inúmeros efeitos deletérios. Despedidas coletivas, alterações contratuais lesivas e ameaças no ambiente de trabalho tem sido relatadas. Um desses efeitos devastadores da “reforma” é o ambiente hostil em que se tem transformado algumas salas de audiências trabalhistas.
Mesmo sendo exceção, o número de relatos de situações de assédio, em que reclamantes são insistentemente “convidados” a desistir de suas pretensões, assusta. Mesmo antes do dia 11 de novembro, e portanto quando a Lei 13.467/17 sequer estava vigendo, já havia relatos nesse sentido. O uso do argumento perverso de que o trabalhador ou a trabalhadora terão de pagar o perito, caso não reste configurada insalubridade ou doença laboral, como motivo para que desistam do pedido antes mesmo da inspeção, é um dos exemplos mais citados.
Em nosso ordenamento jurídico, apenas o perito pode examinar o local de trabalho ou a pessoa que se crê atingida por uma doença profissional. Sequer o juiz pode declarar a existência da situação lesiva, sem o parecer técnico. O art. 195 da CLT exige a realização de prova pericial. Sua produção, portanto, sequer decorre de escolha ou requerimento da parte; é dever do juiz determiná-la. A perícia é o único meio de prova capaz de demonstrar se há ou não situação de risco ou dano no ambiente de trabalho.
Como então atribuir ao trabalhador ou trabalhadora cuja impossibilidade de suportar os custos da demanda é reconhecida pelo Estado, o ônus de pagar honorários ao perito? É importante ressaltar esse detalhe: a “reforma” atribui ao trabalhador beneficiário da gratuidade da justiça esse encargo.
Com a reforma trabalhista, a Justiça do Trabalho passa a ser o único ramo do Poder Judiciário em que a parte precisa ter a certeza do direito, antes mesmo de propor a ação, sob pena de ser punida, como se litigasse de má-fé. Tivesse o trabalhador, a certeza da condição perigosa ou insalubre, teria que dispor de meios para exigir seu cumprimento independentemente da intervenção estatal. Se ajuíza demanda, é exatamente porque não possui tal certeza.
Atribuir ao beneficiário da gratuidade da justiça o ônus de pagar honorários de perito é punição. Para quem duvida, basta ler o relatório do Deputado Rogério Marinho. Ele diz textualmente que “na medida em que a parte tenha conhecimento de que terá que arcar com os custos da perícia, é de se esperar que a utilização sem critério desse instituto diminua sensivelmente”.
O pressuposto aqui é claro: ou o trabalhador sabe que há insalubridade ou não deve pleiteá-la. Ele ainda afirma em seu relatório que “o objetivo dessa alteração é o de restringir os pedidos de perícia”, a fim de“contribuir para a diminuição no número de ações trabalhistas”.
Houvesse tal certeza, teria o empregador de ser compelido a respeitar imediatamente o direito, sem a necessidade do ajuizamento de demanda trabalhista e de todo o custo e o desperdício de tempo que isso implica. Portanto, seria mais lógico supor que o reconhecimento de uma situação insalubre ou perigosa de trabalho, através de perícia judicial, gerasse de imediato a imposição de condenação por dano social ao empregador, já que é ele que está tornando necessário o uso da máquina judiciária, por se negar a reconhecer um direito evidente.
Entretanto, sequer se cogita tal possibilidade. Mesmo quando, na chamada audiência inicial, a empresa “reconhece” a situação insalubre a fim de evitar perícia, não se defende a possibilidade de penalizar o empregador que, afinal de contas, sabia estar lesando direitos fundamentais e negou-se a cumprir suas obrigações, esperando passivamente o uso do Poder Judiciário Trabalhista.
Impor aos trabalhadores todo o peso que os aplicadores do Direito do Trabalho suportam pelo excesso de demandas é negar o óbvio: se existem muitas demandas trabalhistas, não é porque o direito fundamental à gratuidade da justiça vinha sendo respeitado. Ao contrário, é exatamente porque sonegar direitos trabalhistas no Brasil é um ótimo negócio.
O caso da situação nociva de trabalho é emblemático: muitos empregadores fazem o cálculo do custo e descobrem que melhor do que tornar salubre o ambiente de trabalho é aguardar pelas demandas trabalhistas, que serão ajuizadas apenas depois da perda do emprego (em face do medo razoável da inconstitucional despedida imotivada), precisarão de averiguação pericial e contarão com os “bons ofícios” dos juízes para promover conciliações que certamente não implicarão o ressarcimento integral do dano imposto.
Caso nada disso funcione, o valor devido será calculado sobre o salário mínimo e pago, após vários anos de tramitação processual, com juros de 1% ao mês. Basta aplicar os valores sonegados no mercado financeiro, contar com o fato de que vários trabalhadores não ajuizarão demandas trabalhistas e utilizar todos os recursos que a Justiça do Trabalho generosamente oferece, para que o lucro obtido sobre a saúde humana seja certo. Quem, portanto, movimenta indevidamente a máquina judiciária?
A previsão de sucumbência recíproca, uma lógica avessa à prática de cúmulo objetivo de demandas que ocorre na Justiça do Trabalho, também tem sido argumento de assédio em audiência. Interessante é que sequer a literalidade do texto “reformado” autoriza a ameaça aos trabalhadores e trabalhadoras. Note-se que o art. 791-A da CLT refere que serão devidos honorários de sucumbência “sobre o valor que resultar da liquidação da sentença, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa”.
Ou seja, existem apenas duas hipóteses legais que autorizam fixação de honorários de sucumbência no processo do trabalho, para aqueles que entenderem aplicável o texto da Lei 13.467/17. A primeira é a fixação sobre o valor da liquidação, mais uma prova, aliás, de que as sentenças seguirão sendo liquidadas e as iniciais, portanto, tal como diz o § 1° do art. 840 da CLT com a redação que lhe foi dada pela “reforma”, devem apenas fazer constar indicação do valor do pedido – e não liquidá-lo. A segunda é a fixação sobre o proveito econômico. A parte final do dispositivo refere-se à circunstância em que não é possível mensurar o proveito econômico.
Portanto, é preciso que ele exista. Um proveito econômico só não poderá ser mensurado quando existir. Se não há proveito, nada há que possa ser ou não mensurado. A hipótese mais recorrente é aquela da condenação em obrigação de fazer, como a determinação judicial de reinserção em plano de saúde.
Há proveito econômico que não pode ser mensurado e, em tal caso, a sucumbência, pela literalidade do art. 791-A, deverá ser fixada sobre o valor da causa. Por consequência, não há autorização legal para fixação de honorários de sucumbência quando houver improcedência. É que na improcedência não há proveito econômico nem valor a ser liquidado.
De tudo isso se conclui que a aplicação dessas regras exigirá dos juízes e juízas um grande esforço hermenêutico. Isso porque a Constituição estabelece o direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5°, LXXIV). E integral, segundo o dicionário, é aquilo que não sofre diminuição ou restrição; é total, completo. Logo, a assistência judiciária gratuita só será integral quando for total, completa. É até estranho ter que dizer o óbvio, mas é assim.
É evidente que nada disso altera a principal discussão deste texto: ainda que houvesse previsão legal para a fixação de honorários de sucumbência a serem suportados pelo trabalhador ou trabalhadora, nos casos de improcedência (o que não há), ou que fosse possível exigir pagamento de honorários de perito do beneficiário da justiça gratuita sem ferir de morte a Constituição, não se sustentaria o discurso ameaçador que busca forçar a parte a desistir da causa, sob o argumento de que haverá a tal condenação. Portanto, mesmo reconhecendo a possibilidade de aplicação desses dispositivos, nada justifica sejam eles utilizados como argumento de terror durante audiências trabalhistas.
O clima de ameaça compromete a possibilidade de convívio saudável entre os atores do processo. Juízes, juízas, advogados e advogadas exercem funções que se complementam. Profissões que não existiriam, uma sem a outra. E a audiência é talvez o momento mais importante do processo, em que não apenas esses atores estabelecem o diálogo direto, mas também as partes, pela primeira vez, tomam contato com o Poder Judiciário e ficam frente a frente uma da outra, em situação de paridade.
Se para os juízes e advogados as audiências se multiplicam no dia ou na semana, para as partes muitas vezes ela é única. Via de regra, os trabalhadores e trabalhadoras apostam muito alto em suas demandas, pois ali deduzem pretensões econômicas, mas também afetos, mágoas, diálogos interrompidos. Evidentemente, não sabem se convencerão o Estado de que tem razão em suas pretensões, mas ainda assim querem produzir a prova necessária, querem ser ouvidos e respeitados. E o ordenamento jurídico lhes garante isso, afinal de contas existe um direito fundamental à tutela jurisdicional.
Não há dúvida de que atualmente a Justiça do Trabalho, como o Poder Judiciário em geral, sente o peso que o excesso de demandas e a pressão pelo cumprimento de metas impõe à estrutura judiciária. E, em nosso caso, há um ingrediente especial: somos a Justiça dos ex-empregados. Grande parte das trabalhadoras e dos trabalhadores que propõem demandas trabalhistas já perderam o posto de trabalho.
A urgência no provimento de suas pretensões é evidente e promove um constante conflito interno em quem advoga ou julga. Estamos sempre correndo contra o tempo, porque sabemos que é a parte autora que o suporta e, tratando-se como regra de direitos alimentares, esse ônus por vezes compromete a possibilidade de existência digna.
Todos nós, portanto, perseguimos o mesmo ideal de reduzir a necessidade de recurso à Justiça do Trabalho para garantir pagamento de saldo de salário, adicional de insalubridade ou indenização por doença laboral e, assim, permitir que as demandas sejam julgadas em tempo razoável. Promover assédio contra trabalhadores e trabalhadoras, impondo a renúncia prévia do direito à discussão judicial de determinada pretensão não contribui, porém, para diminuir o número de litígios, exatamente porque não enfrenta a causa desse problema.
Se realmente quisermos diminuir o número de demandas trabalhistas, precisamos reconhecer ao processo toda a gravidade que ele possui: cada pretensão reconhecida pelo Poder Judiciário representa uma agressão à ordem jurídica, um desrespeito que compromete o convívio saudável e que, portanto, precisa ser exemplarmente coibido, a fim de que não se repita. O raciocínio, portanto, deveria ser contrário àquele estimulado pela “reforma”.
Promover constrangimentos ou ameaças a quem busca a tutela jurisdicional não contribui para fortalecer o respeito à ordem jurídica, objetivo final de todos aqueles que lidam com o processo. Pelo contrário, assim agindo, negamos nossa razão de existência. É quem descumpre direitos fundamentais que deveria ser constrangido a não mais fazê-lo, através de punições exemplares, como condenação pela prática de dumping social, fixação de valores significativos para indenizações extrapatrimoniais ou cumprimento imediato das decisões de primeiro grau.
A lógica de assediar trabalhadores serve apenas para esvaziar – por dentro – a funcionalidade da Justiça do Trabalho. Os relatos insistentes de ameaças a trabalhadores e testemunhas, durante as audiências, é um péssimo indicativo de que estamos perdendo o parâmetro de convívio saudável durante a prática processual. E o resultado disso é o aumento do estresse, da litigiosidade e do conflito entre advogados e juízes. Mesmo constituindo exceção, em relação as audiências realizadas todos os dias Brasil afora, é preciso atenção e, sobretudo, uma reflexão: a quem serve a disseminação desse embate?
Os advogados e as advogadas são essenciais à administração da justiça, como afirma a Constituição de 1988. São os profissionais responsáveis por propor discussões judiciais, em defesa de direitos que permitam um convívio minimamente saudável em uma sociedade que é já tão desigual e perversa, em vários aspectos. É deles a função de construir teses jurídicas, narrar fatos e produzir provas que nos instigarão a refletir, repensar e fortalecer ou abandonar as primeiras impressões provocadas pela “reforma” trabalhista.
Os advogados e advogadas trabalhistas darão a tônica da resistência contra o desmanche e, sobretudo, contra o discurso de extinção da Justiça do Trabalho, que vem se fortalecendo nos bastidores de um poder ilegítimo que não dá sinais de arrefecimento.
Juízes, juízas, advogadas e advogados somos, portanto, partes de um mesmo enredo que, na atual estrutura de Estado, muitas vezes se constitui concretamente como o único caminho para alterar a realidade da vida de tantas pessoas. Nosso cansaço e nossa angústia com a invencível demanda de trabalho não devem legitimar a criação de ambiente assediador exatamente ali onde o assédio precisa ser combatido.
A “reforma” e todo o discurso de extinção da Justiça do Trabalho nos convoca à união, à soma de esforços para que sigamos sendo o ramo do Poder Judiciário já reconhecido como o mais eficiente e eficaz.
Mais do que nunca é preciso reconhecer os limites e desafios de nossas diferentes funções, sua complementariedade, e a necessidade de respeito às prerrogativas de todos aqueles que atuam no processo. Demandas improcedentes são parte do sistema e, inclusive, justificam a necessidade de instrução e julgamento das lides trabalhistas. Como regra, não são resultado de má-fé, mas apenas do exercício regular do direito fundamental à tutela jurisdicional. Gratuidade da justiça é integral ou é nada. E os atores do processo são, todos eles – sem nenhuma exceção – dignos de respeito.
Valdete Souto Severo é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP; Diretora e Professora da FEMARGS Fundação Escola da Magistratura do Trabalho RS; Juíza do Trabalho; Membro da Associação Juízes para a Democracia AJD.
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