segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Quarenta anos de Teologia da Libertação e de "Jesus Cristo Libertador”

Jornal do Brasil
Leonardo Boff


Entre os dias 7-10 de outubro estará acontecendo em São Leopoldo, RS, junto ao Instituto Humanitas, da Unisinos dos Jesuitas, a celebração dos 40 anos do surgimento da Teologia da Libertação. Lá estarão os principais representantes da América Latina, especialmente seu primeiro formulador, o peruano Gustavo Gutiérrez. Curiosamente, no mesmo ano, 1971, sem que um soubesse do outro, tanto Gutiérrez (Peru) quanto Hugo Assman (Bolívia), Juan Luiz Segundo (Uruguai) e eu (Brasil), lançávamos nossos escritos, tidos como fundadores deste tipo de teologia. Não seria a irrupção do Espírito que soprava em nosso continente marcado por tantas opressões? 
Eu, para burlar os órgãos de controle e repressão dos militares, publicava todo mês, no ano de 1971, um artigo numa revista para religiosas Sponsa Christi (Esposa de Cristo) com o título Jesus Cristo Libertador. Em março de 1972 reuni os artigos e arrisquei sua publicação em forma de livro. Tive que me esconder por duas semanas, pois a polícia política me procurava.  As palavras “libertação” e “libertador” haviam sido banidas e não podiam ser usada publicamente. Custou muito ao advogado da Editora Vozes, que fora pracinha na Itália, para convencer os agentes da vigilância de que se tratava de um livro de teologia, com muitos rodapés de literatura alemã e que não ameaçava o Estado de Segurança Nacional. 
Qual a singularidade do livro (hoje na 21ª.edição)? Ele apresentava, fundada numa exegese rigorosa dos evangelhos, uma figura do Jesus como libertador das várias opressões humanas. Com duas delas ele se confrontou diretamente: a religiosa, sob a forma do farisaísmo da estrita observância das leis religiosas. A outra, política, a ocupação romana que implicava reconhecer o imperador como “deus” e  assistir à penetração da cultura helenística pagã em Israel. 
À opressão religiosa a Jesus contrapôs uma “lei” maior, a do amor incondicional a Deus e ao próximo. Este para ele é toda pessoa da qual eu me aproximo, especialmente os pobres e invisíveis, aqueles que socialmente não contam.
À política, ao invés de submeter-se ao Império dos Césares, ele anunciou o Reino de Deus, um delito de lesa-majestade. Este Reino comportava uma revolução absoluta do cosmos, da sociedade, de cada pessoa e uma redefinição do sentido da vida à luz do Deus, chamado de Abba, quer dizer,  paizinho bondoso e cheio de misericórdia fazendo com que todos se sentissem seus filhos e filhas e irmãos e irmãs uns dos outros.
Jesus agia com a autoridade e a convicção de alguém enviado do Pai para libertar a criação ferida pelas injustiças. Mostrava um poder que aplacava tempestades, curava doentes, ressuscitava mortos e enchia de esperança todo o povo. Algo realmente revolucionário iria acontecer: a irrupção do Reino que é de Deus mas também dos humanos por seu engajamento.
Nas duas frente criou um conflito que o levou à cruz. Portanto, não morreu na cama cercado de discípulos.  Mas executado na cruz, em consequência de sua mensagem e de sua prática. Tudo indicava que sua utopia fora frustrada. Mas eis que aconteceu um evento inaudito: a grama não cresceu sobre sua sepultura. Mulheres anunciaram aos apóstolos que ele havia ressuscitado. A ressurreição não deve ser identificada com a reanimação de seu cadáver, como o de Lázaro. Mas como a irrupção do ser novo, não mais sujeito ao espaço-tempo e à entropia natural da vida. Por isso atravessava paredes, aparecia e desaparecia. Sua utopia do Reino, como transfiguração de todas as coisas, não podendo realizar-se globalmente, se concretizou em sua pessoa mediante a ressurreição. É o Reino de Deus concretizado nele.
A ressurreição é o dado maior do cristianismo, sem o qual ele não se sustenta. Sem esse evento bem-aventurado, Jesus seria como tantos profetas sacrificados pelos sistemas de opressão. A ressurreição significa a grande libertação e também uma insurreição contra este tipo de mundo. Quem ressuscita não é um César ou um Sumo Sacerdote, mas um crucificado. A ressurreição dá razão aos crucificados da história da justiça e do amor. Ela nos assegura que o algoz não triunfa sobre a vítima. Significa a realização das potencialidades escondidas em cada um de nós: a irrupção do homem novo.
Como entender essa pessoa? Os discípulos lhe atribuíram todos os títulos, Filho do Homem, Profeta, Messias e outros. Por fim, concluíram: humano assim como Jesus só pode ser Deus mesmo. E começaram a chamá-lo de Filho de Deus.
Anunciar um Jesus libertador no contexto de opressão que existia  ainda persiste no Brasil e na América Latina era perigoso e subversivo. Não só para a sociedade dominante mas também para aquele tipo de Igreja que discrimina mulheres e leigos. Por isso, seu sonho sempre será retomado por aqueles que se recusam aceitar o mundo assim como existe. Talvez seja este o sentido de um livro escrito há 40 anos.
*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é escritor. - lboff@leonardoboff.com


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