segunda-feira, 18 de junho de 2012

Xuxa e o abuso sexual

RAYMUNDO DE LIMA*
Revista Espaço Acadêmico


O desabafo da Xuxa no programa Fantástico/TV Globo causou polêmica até nas escolas e universidades. Não pretendo aqui discutir o passado da loura apresentadora, nem desqualificar o seu desabafo com a suspeita que ter sido um ato de espetacularização da sua intimidade, ou jogada de marketing para aumentar a audiência a TV, etc.
Sem dúvida, seu desabafo abriu caminho para muita gente sofrida com abuso sexual, que, agora, se autoriza denunciar o crime, conversar sobre o assunto, buscar tratamento.  Haja vista que as denúncias cresceram 30% após seu depoimento, divulgou a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. (O Disque100 é para denunciar violações aos direitos de crianças, adolescentes, idosos, deficientes, grupos em situação de vulnerabilidade, ou para obter informações. A pessoa não precisa se identificar).
Abusos sexuais praticados por adultos contra crianças sempre existiram, infelizmente. Mas hoje o estado de direito garante segurança a pessoa que denuncia o crime. Enfim, a sociedade atual parece sensibilizada pelo sofrimento das vítimas, geralmente menor de idade e indefesas. Mesmo assegurado este direito, é um momento delicado para ela denunciar o agente do abuso sexual (incesto e pedofilia), porque indiretamente termina denunciando outro adulto que se omitiu ao socorro.  Convenhamos: é muito pesado para uma criança, adolescente ou na idade da Xuxa, tomar a decisão de denunciar abuso sexual cometido por um membro da família ou conhecido. Se a denúncia é dirigida para um membro da família, como poderia esta sobreviver? Também pesará no íntimo da vítima dúvidas do tipo: Por que isso aconteceu comigo? Tomei a decisão certa de denunciar agora ou deveria ter feito logo no início? Como será meu futuro daqui pra frente? Devo perdoar?
Ouso fazer um alerta: por um lado, a denúncia de abusos sexuais de adultos contra crianças, especialmente de pais contra filhos/as, contribui tanto para encorajar mais denúncias ‘reais’. Grifo ‘reais’ porque muitas denúncias são falsas. Não raro, denúncias alardeadas pela mídia criam um clima ‘denuncista’, que é a reação histérica daqueles que jamais sofreram abuso contra inocentes. Ou seja, o denuncismo e a denuncia ‘vazia’ pode destruir a vida social e moral de pessoas inocentes, como aconteceu na Escola Base,em São Paulo, fechada em 1994, quando seus proprietários foram injustamente acusados de abuso sexual contra uma aluna.
Lembro-me do filme “Acusação” que relata um caso nos Estados Unidos que destruiu a vida psíquica, social e moral dos donos de uma escola acusados de abuso sexual contra alunos. Induzidas por uma profissional da escola as crianças imaginaram “coisas feias” que nunca ocorreram Esse fenômeno psíquico é denominado de “falsa memória”.
Por definição, falsas memórias são informações armazenadas na memória sem um estímulo real objetivo, mas que são recordadas como se tivessem sido efetivamente vivenciadas pelo sujeito. A memória falsificada pode ter sido induzida por sugestão intencional ou não intencional, ou mesmo por acontecimentos do cotidiano que impressionam a pessoa fragilizada. As crianças são mais propensas a falsificação de memória, porque são mais sugestionáveis do que os adultos.
A falsa memória também ocorre em adultos em estado de estresse e em momentos psicóides. A atmosfera coletiva também influencia muito para falsificar acontecimentos. Por exemplo, nos Estados Unidos, nas regiões onde predomina o fundamentalismo cristão é frequente crianças se lembrarem de sua participação em cultos satânicos. Costumam ser declarações ricas em detalhes[1], por exemplo, afirmam ter visto no culto satânico as pessoas comendo bebês, fazendo sexo com animais, e assassinatos horríveis. Este fenômeno é denominado “inflação da imaginação”, foi descrito pela psicóloga norte-americana Elizabeth Loftus: “depois de fazer a mente imaginar os detalhes do ‘evento’, a certeza de que ele de fato ocorreu tende a aumentar (fonte: http://www.cemp.com.br/artigos.asp?id=58).
Em2011, apsicóloga Elizabeth Loftus foi agraciada com o Prêmio Liberdade e Responsabilidade Científica da Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS). Suas pesquisas científicas evitaram a condenação de um sem-número de inocentes, portanto o sistema judiciário dos Estados Unidos hoje está mais prudente com as provas testemunhais.
É no processo de investigação de crimes que a falsa memória pode causar danos irreversíveis. Por isso mesmo que a “a falsa memória deve sempre ser vista com cautela durante as investigações”, alerta a psicóloga forense e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Lilian Milnitsky Stein, autora do livro Falsas Memórias: Fundamentos científicos, aplicações clínicas e jurídicas (Ed. Artmed).
O leitor pode ver no Youtube o documentário “Falsas lembranças” ou “Falsas Memórias de Abusos Sexuais” (do canal People & Arts – Discovery), que analisa vários casos de jovens e adultos terem sido vítimas de abusos sexuais. Desse modo, famílias inocentes foram destruídas pela onda denuncista, filhos se afastaram definitivamente dos pais porque estavam convictos de terem sido abusados por eles. Mesmo depois comprovada inocência dos genitores persistiu a dúvida e o constrangimento familiar e na sociedade até o final de suas vidas.
O caso da Escola Base passou a ser referência obrigatória de análise e discussão nos cursos sobre Ética do Jornalismo e de Direito, especialmente quanto tratam dos temas “calúnia”, “difamação”, “injúria”, “danos morais”, “denúncia premiada” etc. Seminários e congressos discutem esse caso alertando para a necessária prudência, serenidade e responsabilidade dos profissionais envolvidos em ondas de denúncia ou delação. O fenômeno psíquico “histeria coletiva”, “transe coletivo”, “falsa lembrança” ou “falsa memória” ainda são assuntos pouco pesquisados nos cursos de Psicologia, Psicopatologia, Psiquiatria, Sociologia, Filosofia-Ética. Obs.: Vale a pena consultar o livro “Falsas Memórias: Fundamentos científicos, aplicações clínicas e jurídicas” de Lilian Milnitsky Stein (Ed. Artmed), e “O Caso Escola Base – Os Abusos da Imprensa”, livro de Alex Ribeiro (Ed. Ática, 1995).

* RAYMUNDO DE LIMA é Professor do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE/UEM) e Doutor em Educação (USP)
[1] “A ensaísta americana Susan Sontag escreveu que “pelo menos o passado é seguro”, referindo-se a suas memórias. Não é mais o caso. O artista espanhol Salvador Dali (1904-1989) foi mais presciente quando disse que ‘a diferença entre falsas memórias e as verdadeiras é a mesma entre as jóias: são sempre as falsas que parecem mais reais, mais brilhantes’” (Folha de São Paulo, 23/08/98).

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