Rio - 'Oi, pato!’ Todo vestido de vermelho, encapuzado — chuviscava naquela manhã de domingo —, o menino de uns dois anos de idade acenava para a ave preta com faixa encarnada na testa que nadava na Lagoa Rodrigo de Freitas. Seu pai ainda tentou corrigi-lo: “É um marreco, meu filho”, mas o menino continuou a chamar de pato aquilo que ele considerava ser um pato.
Indiferente, o bicho parecia envolvido com questões mais urgentes, como arrumar o que comer. Até porque a discussão daqueles dois humanos não fazia o menor sentido para ele. Ambas as denominações lhe eram externas; a ave era o que era, não tinha a menor ideia do que os outros diziam sobre o que deveria ser. O menino também não se importava com a soberba do bichinho, que não dava a menor bola para seus gritos e acenos. Seu pai é que parecia preocupado em tentar viabilizar uma comunicação entre o filho e a ave — talvez acreditasse que o animal reagiria aos estímulos se chamado pela supostamente correta classificação de marreco.
Palavras são fundamentais para que possamos entender o mundo. Ao dar um nome ou apelido a uma coisa, a um bicho ou a uma pessoa, nos tornamos como seus proprietários. Quando, num gesto autoritário e necessário, batizamos um filho, conferimos àquele nenenzinho uma identidade pela qual será conhecido pela vida inteira — e ele, coitado, não tem como recusá-la (com o passar dos anos, João pode virar Joana ou Bernadete, mas esta é outra história). Quando apelidamos a mulher amada estamos, no fundo, trazendo-a mais para perto, nos apropriando um pouco mais dela, conferindo-lhe uma identificação própria, única, particular. Para o resto da humanidade ela continuará a ser Maria, Hermengarda, Juliana, Rosyanne — mas para nós será Mozinho, Neguinha, Fofura: o amor tem uma capacidade ilimitada de perdoar o ridículo.
Imperdoável é o uso de palavras para se mudar uma realidade evidente. É quando o governo norte-americano chama tortura de “técnicas aprimoradas de interrogatório”. Ou quando um senador se agarra a minúcias legais e tenta convencer a Justiça a desconsiderar o que ele mesmo falou ao telefone. É como se dissesse que nenhuma daquelas gravações é válida porque ele não é pato, mas marreco: desculpa que, se vingar, fará com que todos nós sejamos os grandes patos dessa história.
Fernando Molica é jornalista e escritor | E-mail: fernando.molica@odianet.com.br
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