Felipe Milanez
Carta Capital
Ser filha de Malcolm X é fácil. Difícil foi ser filha de Betty Shabazz, com outras seis irmãs, pobres, no Harlem.” Todas as vezes que encontro Malak Shabazz ela sempre prefere falar da mãe quando pergunto sobre seu pai. Nessa família de ativistas afro-americanos, não há um sem o outro. Malak é a caçula, e não chegou a conhecer Malcolm, morto quando Betty estava grávida. E como os pais, ela segue na luta por direitos humanos e justiça social. Nos últimos tempos, seu foco tem sido o feminismo. “Igualdade”, ela diz. “Equal rights.”
Herdeira. "Ser filha de Malcom X é fácil. Difícil foi ser filha de Betty, pobre, com outras seis irmãs". Foto: Felipe Milanez
Na sede da National Action Network: House of Justice, o clima é triste, mas não como o do velório no dia anterior, de Gil Noble, um famoso âncora negro de tevê. Malak, metida em uma bata africana, toma o microfone: “Brother Gil era um amigo da família. Eu sei quem ia lá em casa. Muita gente diz que é amigo. Depois do filme Malcom X, de repente todo mundo era amigo. Mas no clima de ódio daquele tempo, ele sempre estava lá. E quando teve espaço na tevê, minha mãe cobrou dele para representar e defender o povo negro, o povo da diáspora africana. E ele fez. Gil também nos apoiou na luta para preservar o local onde meu pai foi assassinado, e hoje se chama The Malcolm X and Dra. Betty Shabazz Memorial and Educational Center.”
O centro fica a poucas quadras da House of Justice. No início do ano, uma bela exposição lembrava as “freedom sisters”, mulheres negras que lutaram pelos direitos civis. Agora em maio está em cartaz The Long Walk to Freedom, a longa marcha pela liberdade. Também com fotografias, gráficos e biografia de ícones do movimento pelos direitos civis.
O memorial ocupa o antigo Audubon Ballroom, local onde Malcolm X, aos 39 anos, foi assassinado na noite de 21 de fevereiro de 1965 por três integrantes da Nação do Islã. O edifício pertence à Columbia University e foi cedido em 2005 para uso da família por 99 anos, após intensa mobilização no fim dos anos 1980, quando a universidade quase derrubou o prédio.
A reforma foi bancada pela cidade de Nova York e pelo banco Chase e planejada pelo também conhecido arquiteto negro Max Bond, que estudou em Columbia. “Ainda faltam 97 anos, temos muita coisa para fazer aqui”, diz Malak, confiante. A exposição Freedom Sisters foi financiada pela Fundação Ford. Além do centro, a família dirige a Malcolm X Foundation, o X Legacy Inc., e uma série de planos de bolsas para estudantes negros, especialmente em medicina, em Columbia.
Há um belo salão de danças no segundo andar do memorial. Piso de madeira, telhado branco e um imponente mural. Malak emociona-se. Ela para no exato local do crime, próximo à janela, onde ficava o palco em que seu pai discursava. Na parede oposta, um grande mural resume a vida de Malcolm X. “Foi bem aqui que mataram ele. A minha mãe estava ali do lado, eu e minha irmã na barriga dela.” Qubilah Shabazz, segunda das irmãs, foi testemunha do crime (e acabaria presa em 1995 acusada- de encomendar a morte de Louis Farrakhan, que teria incentivado o assassinato de seu pai).
“As pessoas falam de meu pai, mas esquecem de Betty. Ela criou seis filhas sozinha. Estudou, fez doutorado. Organizou a luta pelos direitos, foi intensa ativista. E ela nos protegeu. Só nos demos conta do ódio que havia lá fora quando fomos à universidade.”
Malak é uma celebridade no Harlem. Nas ruas, apertos de mão, acenos. Descendente de italianos, pareço deslocado – o único não afrodescendente na reunião da House of Justice. Mas a identidade brasileira abre portas. “Eu tenho lido muito sobre os quilombos, que luta incrível os nossos irmãos travam no Brasil”, afirma Gary, um radialista de voz forte durante a cerimônia. “Meu pai queria unir os povos africanos. Na África, na América, todos os negros da diáspora imposta pela escravidão”, afirma a ativista. “Minha mãe adorava a Bahia. Foi muitas vezes para lá. Acho até que ela tinha algum namorado”, sorri.
A adoção do islamismo, talvez uma forma de protesto, é sustentada pelo que Malak diz ser sua fé. Cristãos e muçulmanos eram opostos na luta nos direitos civis, inclusive dentro do movimento negro. Ela lembra a histórica divergência entre seu pai e Martin Luther King. “Se batessem nele, Luther King iria oferecer a outra face. Meu pai partiria para a briga. Ele nunca aceitou a submissão.” Suas palavras, diz ela, fortaleciam a autoestima do afro-americano para lutar por seus direitos. “Hoje estamos vivendo um retrocesso.” A militante teme pelas eleições presidenciais deste ano. “Não é fácil (re)eleger um negro neste país racista.”
A conversa logo entra no tema das cotas raciais, as ações afirmativas. “Temos de ter acesso a direitos. Vivemos como exilados. Viemos embaixo de um navio, no porão. Contra a nossa vontade.” Ela fala em “direito para vivermos e justiça social”, o “direito de existir”. Contra os argumentos popularmente apresentados no Brasil, entre eles o de que as cotas pioram o nível da educação, é direta: “Isso é ridículo. Quem acredita nisso?”
A música está em cada canto do Harlem. Malak diz não gostar de rap (“É violência, degrada as mulheres”), mas mostra simpatia pelo hip-hop (“É um modo de vida. Como o jazz, usa a arte para abrir a mente e a alma”).
“A música é uma arma”, diz Gary, parceiro de Steve Wonder no famoso disco Songs In The Key of Life, enquanto conduz a cerimônia na House of Justice. “Com a música ninguém pode nos impedir de criar, de falar. E hoje, com a web, estamos livres das gravadoras. Ninguém pode nos impedir de distribuir”, incentiva ao microfone. “Uma revolução está sendo criada pela música. Temos de usar o poder da música, que é a mais poderosa forma de comunicação.” Malak aprova. A resistência e a esperança ela herdou, em igual medida, de Malcolm e Betty.
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