Carta Capital
Aziz Ab’Saber desvendou não só detalhes das leis da natureza, mas também observou a organização da sociedade e suas contradições
Herdeiro de uma filosofia nos moldes das antigas escolas de formação humanística, o professor Aziz Nacib Ab’Saber é dono de uma importante trajetória intelectual associada à geografia, às ciências humanas e à sociedade em geral. Emborageógrafo especializado em geomorfologia, Aziz fazia parte de uma geração de cientistas rara, com formação escolar holística, característica da educação pública brasileira até os anos 1960. Nela, valorizavam-se a transmissão do conhecimento, a preparação do aluno para compreender o mundo na sua totalidade e o saber como algo constituinte da soma interdisciplinar das diferentes ciências. Essa herança resulta dos ensinamentos das escolas da Grécia Antiga, em que os filósofos também possuíam conhecimento de Matemática, Medicina e Economia, entre tantos outros campos do saber. Enfim, dedicavam-se a resolver os mistérios da vida em todos os seus aspectos, do natural ao social, do universal ao particular.
Sua produção acadêmica tem grande relevância para vários campos do saber e vem carregada de inovações no uso do método para analisar as questões associadas à dinâmica da natureza e da relação do homem com seu espaço geográfico. Conhecedor como poucos do território brasileiro em suas múltiplas escalas, Ab’Saber foi um dos precursores da Teoria dos Redutos, importante para explicar a evolução e a dinâmica de determinados ambientes naturais do território nacional. Esse estudo pioneiro (complementar à Teoria dos Refúgios) foi acompanhado de muitos outros tratando de temas que possuem interface entre as ciências naturais e as humanas.
Pesquisou de maneira detalhada o relevo brasileiro, sua gênese e evolução desenvolvendo classificações que se tornaram referência tanto para os estudos geográficos quanto para os de outras ciências. Entre os muitos trabalhos, destaca-se a proposta de análise da estrutura e compartimentação do relevo brasileiro, estabelecendo associação da geomorfológica com os processos geológicos, edáficos, climáticos e botânicos. É a partir dessa concepção que o professor propôs uma classificação para o que ele chamou de os grandes domínios morfoclimáticos e fitogeográficos do País. Essa proposta de classificação do relevo brasileiro, juntamente com o material cartográfico e os desenhos esquemáticos elaborados é um rico acervo didático, amplamente utilizado no ensino da Geografia nos níveis da Educação Básica e Superior.
No campo da geografia humana, dedicou-se em parte à compreensão da interferência do homem no ambiente natural. Nesse sentido, uma de suas preocupações incidia sobre o papel da urbanização como fator de alteração da natureza e seus reflexos no conjunto da sociedade, especialmente de que maneira o crescimento urbano desordenado produzia exclusão e perigos para as pessoas que habitavam as vertentes íngremes e as várzeas inundáveis. Com o enfoque na geografia urbana, Ab’Saber desenvolveu vários trabalhos versando, entre outras, sobre as cidades de Salvador, Porto Alegre, Manaus e São Paulo. No que se refere à última, fez relevantes reflexões sobre o sítio urbano, descrevendo e analisando as diferentes regiões da cidade. Em sua tese de doutorado A Geomorfologia do Sítio Urbano de São Paulo, defendida em 1957, observou a ocupação da -planície do Rio Tietê com suas colinas no entorno, quando o rio ainda era meandrante e a planície uma várzea coberta de pastos onde os animais de serviço pastavam, frequentemente muares que transportavam em suas carroças mercadorias para o centro da cidade. Nessas áreas, havia também, além dos clubes de regata e natação, os campos de futebol de várzea, chamados “campos de várzea”, onde surgiram tradicionais clubes e importantes jogadores do futebol paulista.
Os grandes romances e o ambiente
A formação acadêmica e humanista de Aziz Ab’Saber foi também inspirada na produção literária, especialmente a de caráter regional. Ele fazia questão de lembrar que a leitura de importantes romancistas representava o passaporte para o resgate de uma gama de elementos presentes na paisagem e que as narrativas dos romances permitiam explicar a geografia no seu sentido mais amplo, incluindo tanto a natureza quanto o homem. Foi um leitor atento dos seguintes romances: Os Sertões, de Euclides da Cunha; Vidas Secas, de Graciliano Ramos; Capitães da Areia e Jubiabá, de Jorge Amado, entre muitos outros. Em algumas dessas obras aparecem características associadas à dinâmica da natureza, mas também as mazelas humanas, como as grandes desigualdades sociais, em lugares marcados pela concentração da propriedade da terra e pela exploração da população mais pobre. Contrastes semelhantes ao que o professor verificou em seus trabalhos de campo tanto no sítio urbano da cidade de São Paulo e em seus arredores quanto nos distintos lugares do Brasil por onde ele passou.
Ab’Saber obteve reconhecimento também por seus estudos e atuações em favor da causa ambiental. No Brasil, foi um dos primeiros a ser reconhecido como ambientalista por sua obstinação pela preservação das áreas naturais, já prevendo que esse seria um dos grandes problemas que a humanidade enfrentaria no fim do século XX e início deste novo milênio. Quando foi presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), de1993 a1995, conclamava os pesquisadores brasileiros a realizar estudos que tivessem caráter interdisciplinar e lhes chamava a atenção para nossas riquezas naturais. Foi, nesse sentido, um defensor da Amazônia e do uso racional dos seus recursos naturais e da preservação dos modos de vida das populações dessa região. Com essa mesma ênfase defendeu, nos anos1990, anão privatização da Companhia Vale do Rio Doce, um patrimônio da sociedade brasileira que estava sendo usurpado pelos representantes do neoliberalismo, sem que esses esboçassem qualquer compromisso pelo bem-estar da nossa população.
O professor Ab’Saber pertencia a um grupo de expoentes intelectuais que não via a academia apenas como um lugar de produção de conhecimento destinada a uma parcela privilegiada da população ou de poucas empresas hegemônicas. Antes, acreditava que a universidade deveria cumprir o seu papel social, de produzir conhecimento também para os excluídos, exatamente os que mais necessitam dos avanços conquistados pela academia. Por isso, pregava uma democratização desse espaço de produção do conhecimento, rompendo os seus muros e irradiando o conhecimento gerado para os diversos cantos do País. Essa democratização, entretanto, passa também, segundo avaliava, pelo acesso dos pobres à universidade e, nesse sentido, foi um incansável defensor de melhorias nas escolas públicas do Ensino Básico, por achar que essa seria a melhor alternativa para que o Brasil verdadeiramente se transformasse numa nação. Foi com esse espírito humanista que ele também se juntou aos movimentos sociais, buscando apoiá-los em suas manifestações, especialmente naquelas que lhes davam mais possibilidades de exercer a sua cidadania.
O acesso das pessoas ao livro, por exemplo, foi uma das suas buscas obstinadas. Para ele, a leitura permitia ao ser humano alcançar novas descobertas e se emancipar das amarras das classes dominantes. Por isso, empreendeu uma luta para ampliar os canais de leitura nas periferias das grandes cidades, especialmente do estado de São Paulo.
A Geografia em sala
A mesma dedicação que possuía em relação à pesquisa, ao trabalho de difundir as atividades de leitura ou de defender a nossa biodiversidade, também demonstrava em relação ao ensino de Geografia. Preocupou-se sempre em fazer mais acessível às pessoas os seus estudos, produzindo material didático que pudesse ser utilizado no ensino da disciplina. Como professor, não fazia distinção se o local era uma universidade renomada ou um pequeno salão coberto por lona, se era para alunos de pós-graduação ou pré-vestibulandos da periferia, a postura sempre foi a mesma e com o mesmo entusiasmo discutia seus apontamentos.
A erudição era ponto de destaque em suas aulas, entretanto, sem que a análise de uma teoria se transformasse em algo que pudesse caminhar para a incompreensão de seus alunos e/ou ouvintes. Ab’Saber possuía uma didática invejável. Nas suas exposições eram transmitidos os conceitos de determinados fenômenos físicos ou humanos com todo o rigor acadêmico, mas também para ensiná-los recorria a situações do cotidiano, contadas frequentemente com muito humor.
Essa maneira de ensinar do professor Ab’Saber, combinada com o seu amplo conhecimento teórico e empírico das dinâmicas geográficas, especialmente do território brasileiro, fazia com que as salas de aula, os anfiteatros ou qualquer outro recinto estivessem sempre lotados por distintos tipos de público, especialmente por jovens estudantes que viam no discurso do velho professor a proposição de questões muito atuais sobre os problemas do mundo contemporâneo.
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