Antonio Luiz M. C. Costa
Seria ingênuo imaginar que a corrupção e as conspirações brotaram de repente dos corredores do Vaticano: elas têm uma longuíssima tradição. A pergunta a ser feita é: por que tanta informação a esse respeito vem à luz ao mesmo tempo agora? Não se trata, decerto, de um esforço de transparência por parte do papado. Também não se trata de um deslize no uso da internet ou do trabalho de hackers, até porque as instituições eclesiásticas são conservadoras demais para fazer uso intensivo dessa ferramenta. Os vazamentos aconteceram à moda antiga, por meio de boatos e documentos em papel, ao velho estilo dos Pentagon Papers, de 1971, e do Caso Watergate, de 1973, que foram publicados em livro pelo jornalista Gianluigi Nuzzi.
Para desvendá-los, Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI, nomeou uma comissão de três cardeais presidida pelo espanhol Julian Herranz, que conviveu por 22 anos com Josemaría Escrivá, o fundador da Opus Dei, escreveu um livro a seu respeito e é hoje o integrante da organização com mais alto cargo na hierarquia eclesiástica. O responsável, segundo eles, foi o mordomo do papa, Paolo Gabriele. Apanhado com documentos confidenciais e material para reproduzi-los em casa, foi preso em 24 de maio e pode ser condenado a 30 anos de prisão por “atentado à segurança” do Vaticano.
O culpado é o mordomo? É uma solução tão insatisfatória que bastou ser usada duas vezes por autores menores de ficção policial (Henry Jenkins e Mary Roberts Rinehart, nos anos 1920 e 1930) para virar piada como um dos clichês mais desgastados da história da literatura. Por mais que o Vaticano negue suspeitar de algum cardeal, não há como levar a sério a hipótese de que Gabriele – que, segundo Nuzzi, nada recebeu em troca dos vazamentos – tenha sido mais do que um garoto de recados e um bode expiatório de forças que o Vaticano não quer desafiar, pelo menos por enquanto.
O teor dos vazamentos aponta para uma luta surda entre cardeais. Um artigo de Giuseppe Nardi na revista alemã Katholisches (simpática a Ratzinger) os associa à “velha-guarda” do cardeal Angelo Sodano, secretário de Estado de João Paulo II, que estaria empenhada em desacreditar a “nova”, do sucessor Tarcisio Bertone, que o substituiu em 2006. Gabriele, funcionário do Vaticano desde o papado anterior, poderia estar ligado a seus interesses.
Sodano fez uma carreira longa e em geral bem-sucedida como diplomata do Vaticano, mas se desacreditou ao aceitar presentes da Legião de Cristo e defender seus interesses. A organização e seu fundador, o padre Marcial Maciel, foram protegidos por ele e João Paulo II da primeira tentativa de investigação em 1998, mas Ratzinger a retomou ao chegar no papado e expôs corrupção, falcatruas financeiras, abuso de menores e amantes clandestinas.
A experiência de Bertone como teólogo, ex-arcebispo de Vercelli e Gênova e ex-dirigente da Congregação para a Doutrina da Fé, sucessora da Inquisição e do Tribunal do Santo Ofício, é a de um defensor da ortodoxia. Salesiano de Dom Bosco, nomeou confrades da ordem para cargos antes ocupados por diplomatas. Enquanto isso, o serviço pessoal do papa, antes prestado por freiras, passou a leigas consagradas à Memores Domini, braço do movimento Comunhão e Libertação (similar e rival da Opus Dei) que apoiou Silvio Berlusconi (Roberto Formigoni, governador berlusconiano da Lombardia, é um de seus integrantes) e milita contra a esquerda, o aborto e o casamento homossexual.
O lema de Bertone é “menos diplomacia e mais Evangelho”, em consonância com a orientação do papa de consolidar um catolicismo minoritário, mas rigoroso, devoto e militante e deixar de lado a ideia (ficção, de seu ponto de vista) de uma Igreja aberta e transigente que não pretende mais que uma influência cultural difusa numa sociedade cada vez mais secularizada.
Inexperiente, a “nova-guarda” tem lidado mal tanto com o mundo laico quanto com as questões internas. Orquestrou o perdão do papa aos ultraconservadores da Sociedade Pio X, fundada pelo arcebispo dissidente Marcel Lefebvre, para ver esses menosprezarem a aproximação e alguns deles embaraçarem o Vaticano reafirmando a negação do Holocausto e a acusação aos judeus de “assassinar Jesus Cristo”.
Mais uma dor de cabeça da “nova-guarda” é a demissão de Ettore Gotti Tedeschi, presidente do Banco do Vaticano (oficialmente IOR, “Instituto para Obras Religiosas”), no mesmo dia da prisão de Gabriele. Tedeschi, ex-presidente da filial italiana do Santander e integrante da Opus Dei, foi nomeado em 2009, com apoio de Bertone, para modernizar o banco e deixá-lo em condições de cumprir os requisitos de transparência da OCDE, mas desde 2010 a Itália o investiga por lavagem de dinheiro, a partir da transferência de 23 milhões de euros do Credito Artigianato para o JP Morgan e Banca del Fucino, com intermediação do IOR e sem a obrigatória declaração de origem.
Em algum momento, as relações entre Tedeschi e Bertone azedaram. Segundo jornalistas italianos, o secretário de Estado teria se oposto a tornar retroativas as normas de transparência. Além de revelar a mediação do banco em subornos de autoridades e desvio de doações à caridade para a especulação financeira, talvez desnudasse as conexões do Vaticano com fraudes mais graves e o crime organizado. Incluindo a “loja” P2, associada ao escândalo financeiro do Banco Ambrosiano nos anos 1980 e ao assassinato do banqueiro Roberto Calvi e a Banda della Magliana, que pode ter executado o jornalista Mino Pecorelli e a adolescente Emanuela Orlandi, cujo chefe, Enrico de Pedis, foi sepultado na histórica basílica de Santo Apolinário. Bertone e Tedeschi também teriam se desentendido sobre a intervenção no falido Hospital San Raffaele, que em 2011 opôs Bertone (e a Opus Dei) a Angelo Scola, arcebispo de Milão e papabile ligado à Comunhão e Libertação, que controlava o hospital e os interesses católicos na região.
A demissão ocorreu, porém, no contexto dos vazamentos, sendo apontados, entre outros motivos, a incapacidade de explicar a revelação de documentos do IOR e o “comportamento errático” de Tedeschi. Este, por sua vez, limitou-se a declarar: “Prefiro não falar, porque diria palavrões. Tenham paciência!”
Segundo Ferruccio Pinotti, autor de livros de jornalismo investigativo sobre o Vaticano, a tática de “dividir e governar” de Karol Wojtila e Ratzinger parece ter-se voltado contra o próprio papado. Ao perseguir os progressistas e incentivar a autonomia eclesial, doutrinária e financeira das correntes conservadoras, o Vaticano parece ter deflagrado uma luta pelo poder entre Opus Dei, Comunhão e Libertação, Caminho Neocatecumenal, Legionários de Cristo e outros grupos aliados a poderosos interesses empresariais e políticos.
A luta foi evidenciada ao público externo quando da demissão do arcebispo Carlo Maria Viganò. Homem de Sodano e secretário-geral do Vaticano, visto como bom administrador (converteu um déficit de 10,5 milhões de dólares em um superávit de 44 milhões em seu primeiro ano, 2009) soube que seria destituído por Bertone. Em protesto, escreveu em 2011 cartas a ele e ao papa nas quais se dizia perseguido por agir contra funcionários corruptos próximos do secretário de Estado. As cartas foram vazadas à mídia e administradores atuais e passados do Vaticano convocados a negar as alegações de Viganò.
O arcebispo foi destituído antes do fim de seu mandato e “exilado” como núncio (embaixador) em Washington. Mais um erro, neste momento em que a Igreja precisaria de um defensor ativo de sua imagem nos EUA. Além dos processos por pedofilia e do conflito com Barack Obama – atacado por bispos por defender que planos de saúde, mesmo de organizações católicas, tenham a obrigação de financiar despesas com anticoncepcionais de empregados –, entrou em choque com feministas e defensores da liberdade de pensamento devido à perseguição inquisitória da Leadership Conference of Women Religious (LCWR, Conferência de Liderança de Mulheres Religiosas), organização que representa 83% das 56 mil freiras do país.
Desde 1979, a LCWR pede que mulheres possam ser ordenadas sacerdotes. Na época de João Paulo II, foi simplesmente ignorada, mas em 2008 a Igreja ameaçou investigar a “vida e vocação” das freiras da organização e em 2009 o ex-Santo Ofício iniciou uma “avaliação doutrinária”, expressão moderna para uma inquisição, de suas assembleias e discussões, liderada pelo bispo estadunidense Leonard Paul Blair. Em abril de 2012, a inquisição concluiu que a LCWR contraria os ensinamentos católicos sobre sexualidade e discute “certos temas feministas radicais incompatíveis com a fé católica” e sofrerá intervenção. Seus estatutos, planos, programas e publicações serão submetidos a censura e (contra) reforma do arcebispo James Peter Sartain, líder da campanha católica contra o casamento homossexual nos EUA e administrador dos fundos da Igreja no país. Seus manuais serão reescritos e suas oradoras terão de ser previamente aprovadas por ele.
O bispo Blair também se fez notar por pedir aos católicos que negassem doações à fundação anticâncer Susan G. Komen por financiar pesquisas com células-tronco embrionárias e mamografias oferecidas pela Planned Parenthood, organização que também promove métodos anticoncepcionais e oferece abortos. A Susan G. Komen negou financiar tais pesquisas (embora não as rejeite em princípio) e chegou a suspender a parceria com a Planned Parenthood, mas voltou atrás depois de a reação negativa do público fazê-la perceber que isso lhe tiraria ainda mais doações e recursos.
Tais posturas divisivas conquistam uma minoria de entusiasmados militantes conservadores, mas aliena uma grande massa de católicos liberais ou progressistas que acreditavam na modernização da Igreja. Nos EUA, os estridentes católicos Rick Santorum e Newt Gingrich conquistaram o aplauso dos setores mais extremistas do Tea Party ao atacar os anticoncepcionais, o aborto e o casamento homossexual, mas ampliaram a rejeição de moderados e independentes ao Partido Republicano e talvez também à própria Igreja. Que, tão ciosa da moral sexual, não se incomoda quando os mesmos conservadores republicanos contrariam frontalmente ensinamentos do Vaticano contra a pena de morte e a favor do salário mínimo, da redistribuição de riqueza, do direito de associação dos trabalhadores e de serviços de saúde pública.
Essa postura rendeu ao Vaticano algumas pequenas vitórias, na forma de retrocessos legais. Quatro países latino-americanos – Chile (1989), El Salvador (1998), Nicarágua (2006) e República Dominicana (2009) – que admitiam o aborto em casos excepcionais passaram a proibi-lo totalmente, ao preço de pôr em risco a vida de mulheres e serem condenados por organizações internacionais de direitos humanos. Também pode retardar avanços em países mais relevantes, inclusive o Brasil, o México e os EUA. As derrotas têm sido, porém, mais comuns. No médio prazo, até as poucas vitórias podem se mostrar pírricas e intensificar a rejeição à Igreja, acelerar o fim dos privilégios com que ainda conta em muitos países e multiplicar suas divisões e lutas internas.
Exagero? Em 2009, a Bélgica censurou formalmente o Vaticano pela condenação do uso de preservativos e a alegação falsa de que agrava a epidemia de Aids. Em 2010, sua polícia buscou provas com uma incursão de surpresa numa reunião de bispos que discutia pedofilia e, em 2011, exigiu a punição de um bispo pedófilo e abriu processo por indenização a várias vítimas. Em novembro, a Irlanda acusou o Vaticano de obstruir as investigações de pedofilia em instituições católicas e fechou a embaixada no Vaticano, oficialmente para “cortar gastos”. Mais recentemente, em maio, um grupo que representa 25% dos padres desse país reuniu-se para pedir o fim do celibato obrigatório, a eleição dos bispos e a ordenação de mulheres. No domingo, 27 de maio, centenas de manifestantes com fotos da desaparecida Emanuela Orlandi entraram na Praça de São Pedro e – cena nunca antes vista – vaiaram o papa por silenciar sobre o caso. Podem ser as primeiras gotas de um dilúvio prestes a desabar sobre Bento XVI ou seu sucessor.
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