MARCOS DEL ROIO*
A Universidade pública viveu grande momento de expansão no
decorrer da ditadura militar e isso por dois motivos principais: havia uma forte
demanda reprimida de acesso a Universidade e havia também a necessidade de
formação da força de trabalho segundo as exigências do desenvolvimento do
capitalismo no Brasil, o qual precisava de intelectuais técnicos e cientistas em
condições de manejar o aparato produtivo implantado pelas grandes empresas
imperialistas e seus associados brasileiros. No caso particular do estado de São
Paulo, em meados dos anos 70, foram fundadas a UNICAMP e UNESP, que vieram a
compor com a USP o sistema universitário público estadual.
A USP fora fundada em 1934 com o fito de formar quadros
técnico-científicos e intelectuais em condições de reproduzir a ordem social,
como professores, juristas ou administradores da coisa pública. O vínculo de
origem com as classes dirigentes agro-industriais do estado de são Paulo sempre
foram patentes e aqui está a sua glória e o seu limite. A UNICAMP desde logo se
envolveu com pesquisa cuja demanda era apresentada pelas grandes empresas
estatais do capitalismo de Estado brasileiro, o que gerou um perfil que se
espraiou em todas as áreas científicas e culturais, fazendo dessa Universidade
um conjunto relativamente harmônico. Mais complicado era situação da UNESP,
entidade universitária que surgiu da congregação de diversos institutos e
faculdades espalhadas pelo estado, surgidas em momentos diferentes e em
conjunturas diferentes. De modo geral, os objetivos desses pólos dispersos era o
de formar quadros para as emergentes burguesias locais. As dificuldades de se
formar quadros próprios de professores e pesquisadores fez da UNESP espécie de
campo de estágio para outras Universidades, um ponto de passagem, um organismo
periférico.
Quando a luta contra a ditadura militar se difundiu por todas as
camadas sociais e profissionais, a Universidade pública, com seus professores,
servidores e estudantes, se envolveu de forma resoluta. A luta pela
democratização da vida social e política do País implicou a luta pela
democratização da organização do saber e da apropriação do conhecimento, ou
seja, pela democratização da Universidade Pública, tanto no seu processo
institucional, como na sua relação com a destinação do saber nela produzido e
com o acesso de novas levas de jovens estudantes e pesquisadores. A questão
estava posta na efetivação do caráter público e autônomo da Universidade, de
onde se desdobra a necessária democracia e alta qualidade cultural e científica
da sua produção. O objetivo da Universidade pública no sentido mais
estrito só pode ser o de desenvolver e promover um progresso intelectual de
massas, ou seja, para o público, e promover a cultura, a ciência e tecnologia
como bem comum da humanidade, como saber e conhecimento universais.
A fragilidade congênita da UNESP contribuiu para que fosse nela
onde mais avançou o processo democrático interno e para que se configurasse como
a menos burocrática do sistema. Apenas a democracia pode combater a burocracia e
o particularismo. A luta das universidades paulistas culminou na conquista da
autonomia de gestão em 1989. Os anos 90, no entanto, consignaram um crescente
refluxo nas lutas democráticas gerais no Brasil (e no mundo). As classes
dirigentes nacionais, que haviam atravessado a década de 80 tentando resistir à
ascensão democrática e encontrar uma nova forma política e social de exploração
do trabalho, finalmente, acabaram por acatar o globalismo neoliberal. Essencial
nessa variante política e social do capitalismo é a nova apropriação do espaço
publico pelo privado, pelo que tudo se transforma em mercadoria.
A prevalência do privatismo é tão generalizada que até a
administração pública / estatal se privatiza por meio de seus interesses
particularistas e por meio das práticas políticas, realizando assim um retorno à
pura economia, ao puro jogo de interesses materiais e particulares, gerando uma
crise enorme de representação democrática, submergida por manobras burocráticas
obscuras. A nova regulamentação do comércio internacional, a privatização /
internacionalização das empresas estatais, a retirada de direitos sociais e a
diminuição de investimentos estatais em educação, saúde, habitação, transporte e
outros serviços sociais fundamentais são instrumentos de uma engenharia social
que visa difundir o individualismo egoísta e o privatismo, com a ruptura dos
laços sociais de solidariedade horizontal. A reforma administrativa de 1997
incluiu no direito público brasileiro o preceito da “eficácia” em detrimento do
público e do solidário, dando a chancela constitucional ao privatismo.
Nessa operação há a necessidade de uma força de trabalho
correspondente: é preciso de intelectuais técnicos e científicos capazes de
incorporar e manejar ciência produzida alhures, intelectuais técnicos apenas com
capacidade de manipular máquinas complexas, mas é preciso também consumidores de
mercadorias que exigem certa formação. Tudo no contexto do globalismo
neoliberal, do mercado, do privatismo, da economia ela mesma. Nada de cultura,
de autonomia, de subjetividades coletivas.
Nesse cenário é que navega a Universidade pública e a UNESP.
Limitada na sua capacidade e decisão de aprofundar a democracia, ampliar a
autonomia e o seu caráter público, o refluxo que alcançou a vida social e
política do Brasil não poderia deixar de incidir sobre a vida universitária. O
congelamento nos investimentos implicou gigantesca privatização da Universidade
em termos de vagas oferecidas e formas de difusão do saber, com a abertura de
sem número de empresas de ensino de baixa qualidade. A Universidade assim
privatizada é instrumento decisivo de difusão ideológica do privatismo contra a
esfera pública. Assim pressionada, sem verbas, acusada de ineficácia e sob cerco
das empresas privadas de ensino, a Universidade Pública cede e se deixa
privatizar ela mesma assim como permite a corrosão da sua autonomia. Os próprios
profissionais que deveriam defender a Universidade como bem público e universal
traem a sua missão.
Os Programas de Pós-Graduação começam a se expandir de modo
exponencial a partir dos anos 90 e já sob uma lógica privatista e contraria a
autonomia da produção saber. As políticas estatais para a cultura, ciência e
tecnologia, por meio do financiamento público, endereçam a pesquisa científica
para um ou outro rumo, mas sempre de acordo com os interesses privados
representados no Estado. Por meio do Programas de Pós-Graduação penetra na
Universidade a lógica da eficácia, da rentabilidade do investimento, do
produtivismo. A fim de justificar o financiamento público é preciso produzir
muito e em pouco tempo, mas importando menos a qualidade, a autonomia, a
criatividade, a iniciativa. Por outro caminho, o pulular de cursos de
especialização, durante certo período, também foi meio de privatismo, com cursos
pagos e atendendo demanda de mercado. Outro elemento de contaminação privatista
na Universidade tem sido as Fundações. Essas Fundações, no geral, são
desnecessárias, seguem uma lógica privatista e passam por um controle muito
superficial de seus projetos e orçamentos.
Em 2003, as Universidades paulistas definiram uma pauta de
expansão de cursos e vagas. O caso da UNESP é o que mais chama atenção, menos
pelo que mostra e mais pelo que oculta. A UNESP, que já tem problemas de
multiplicação de cursos e de debilidades estruturais em algumas Unidades,
resolveu fazer uma grande ampliação, sem garantia de recursos e sem qualquer
planejamento razoável. Parece evidente que interesses privados se sobrepuseram
ao público e a Universidade traiu a sua destinação. A democracia e a autonomia
da Universidade foram colocadas em sacrifício em nome de acordos político com
poderes locais e ambições pessoais. Não se nega a necessidade de crescimento de
cursos, de vagas e de unidades da UNESP ou outra universidade, o problema está
na lógica privatista, no vírus que corrói o espaço público.
Certo que acontecimentos como esse são possíveis somente quando o
vírus do privatismo corroeu boa parte do organismo e que esse já não entende a
sua vocação pública e começa a se colocar “dilemas” inteiramente falsos. Quando
a Universidade começa a se gerenciar pela lógica privatista empresarial, começa
a apertar seus vínculos com empresas privadas que induzem o que deve ser
pesquisado ou produzido, cedendo a “pressões do mercado”, significa que a sua
dimensão pública e universal esta seriamente debilitada.
A facilidade com que a autonomia (muito relativa) da Universidade
foi comprimida com a criação da Secretaria estadual de Ensino Superior mostra
muito da regressividade privatista do nosso tempo. Quando se questiona se a
universidade pública deve produzir cultura, ciência, tecnologia para enriquecer
a humanidade, se deve produzir seres humanos ricos de saber capacitados para
disseminar esse saber pelo conjunto da vida social ou se deve produzir
conhecimento para ser apropriado de maneira privada, a porta esta aberta para
todo tipo de ataque contra a autonomia e contra a natureza pública da
Universidade.
A obsessão pelos “cursos de ensino a distância” é mais uma
manifestação do vírus privatista regressivo. Uma Universidade que deve ter por
meta a formação de pesquisadores educadores capazes de incidir virtuosamente na
riqueza socialmente produzida pelo trabalho humano tem que necessariamente
passar por experiência de formação humana, além de científica e técnica. Nada
substitui o convívio universitário.
Uma Universidade como a UNESP tão bem vocacionada para a formação
de pesquisadores educadores em seus muitos cursos de dupla modalidade,
bacharelado / licenciatura, não pode se render a pseudocursos à distância, com
carga horária diminuta e sem convívio universitário. Assim não se formam
pesquisadores educadores, mas apenas péssimos reprodutores de conhecimento
reproduzido, reprodutores acríticos de uma vida social regressiva e privatizada.
Esse tipo de curso não só rebaixa a qualificação dos estudantes com efetiva vida
acadêmica, como cria uma hierarquia de saberes que tendem a se reproduzir na
vida social.
Grave nesse e em muitos outros casos é que a tecnologia é usada
apenas para aumentar a exploração de professores e servidores, nunca para gerar
tempo livre criativo para a produção cultural e científica e para a vivência no
espaço público e na gestão dos bens comuns. A tecnologia não carrega em si mesma
algum valor. Pode ser útil na execução de mini-cursos ou conferências em nível
de Pós-Graduação, mas jamais poderá substituir ou complementar um curso de
Graduação e não pode servir de propagação de interesses privados na
Universidade. Ou a tecnologia serve ao público ou é regressiva e deletéria, como
mostra a monstruosa crise ambiental.
Embora a síndrome do privatismo tenha muito se propagado não é
aceitável desistir da defesa do caráter publico e universalizante da produção do
saber e de sua disseminação. Há que se compreender que a Universidade é apenas
um pequeno, mas crucial elemento na vida do País, pois é nessa instância que, em
grande medida, se produz conhecimento e se reproduz conhecimento, se qualifica
para o trabalho social e para a vida pública. Se não predomina no seio da
Universidade a visão de um espaço público e democrático dotado de normas, e
voltado pra os interesses gerais da humanidade, pouco pode ser feito. Mas se
essa for a concepção geral, a luta pela autonomia e por verbas públicas deve ser
um objetivo permanente, sem o que a universidade não cumpre o seu escopo de
produzir cultura, ciência, tecnologia e pesquisadores educadores.
Mas a defesa e a existência de uma universidade pública dependem,
e muito, das políticas educacionais do Estado, que implica investimento massivo
em educação e saúde desde a infância. Decorre sempre que uma boa universidade
pública exige uma escola pública de igual qualidade para todos, com professores
bem formados, sempre atualizados, bem remunerados. Sem isso a síndrome do
privatismo tomará conta de todo o organismo em beneficio do privado, do
“mercado”, e se estabelecerá uma nova hierarquia de saberes e poderes em
detrimento do público, do universal, da humanidade.
*
MARCOS DEL ROIO é Doutor em Ciência Política (USP),
especialização em Política Internacional na Universidade de Milão e
Pós-Doutorado na mesma universidade de Milão e na universidade de Roma; é
professor livre-docente em Ciências Políticas na UNESP – FFC (Campus de
Marília). Publicado na REA, nº 87, agosto de 2008, disponível
em http://www.espacoacademico.com.br/087/87roio.htm
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