quarta-feira, 25 de abril de 2012

País que esquece violações tende a repeti-las’


Gabriel Bonis

Carta Capital

      Em uma ampla sala do prédio do Ministério Público Federal em São Paulo reúnem-se procuradores de diversas regiões do Brasil. O clima é de expectativa em relação ao grupo que, formado no final de 2011 , se esforça para dar uma resposta à inédita condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo desaparecimento de membros da guerrilha do Araguaia na ditadura, na qual o órgão pede a investigação e punição dos crimes de lesa-humanidade cometidos no período. “Um país que esquece as graves violações de direitos humanos em seu passado está fadado a repeti-las”, enfatiza em tom quase discursivo Andrey Borges de Mendonça, procurador da República em São Paulo.   
      Seguindo a sentença do mecanismo internacional, os procuradores anunciaram na tarde de terça-feira 24 a denuncia por sequestro qualificado do bancário e líder sindical Aluízio Palhano Pedreira Ferreira em 1971 contra duas das mais tenebrosas figuras da ditadura brasileira: o comandante do Destacamento de Operações Interna de São Paulo (Doi-Codi-SP) entre 1970 e 1974, o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, e o delegado da Polícia Civil de São Paulo Dirceu Gravina.
MPF denuncia Ustra e busca agir criminalmente contra agentes do Estado por crimes de lesa-humanidade. Foto: Olga Vlahou

      Essa é a primeira ação criminal do MPF em São Paulo contra agentes do Estado por crimes na ditadura e a segunda no País e caso o juiz aceite o caso, os acusados podem ser condenados a penas entre 2 e 8 anos de prisão.
      Um dos principais sindicalistas do país à época, Palhano foi presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro e da Confederação Nacional dos Bancários, além de vice-presidente da Central Geral dos Trabalhadores (CGT). Era formado em Direito e casado com Leda Pimenta, com quem teve um casal de filhos. Um deles, Honésio Ferreira é atualmente secretário de Comunicação da Executiva Nacional do PTB.
      Quando preso, Palhado tinha 49 anos de idade e seu último contato com a família ocorreu há exatos 41 anos. De acordo com os promotores, que investigam outros 14 casos de desaparecimento forçado em São Paulo, além de apurações no Rio de Janeiro, Pará e Rio Grande do Sul, os fatos da prisão e do sequestro do líder sindical são comprovados, assim como os autores dos crimes. “Temos três testemunhas oculares e provas fortes”, diz confiante o procurador em São Paulo Sérgio Gardenghi Suiama.
      O grupo ao qual integra trabalha com base em dois precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) para buscar a condenação por sequestro qualificado. O órgão máximo da Justiça brasileira autorizou há poucos anos a extradição de um militar argentino e outro uruguaio à Argentina, onde ambos eram acusados de diversos desaparecimentos forçados durante a ditadura naquele país, por considerar que estes o caso não haviam prescrevido por serem crimes permanentes. Ou seja, até que se encontre o corpo da vítima ou comprove-se sua morte por outros meios legais, o crime está em execução.
      A tese jurídica dos procuradores defende que, por esta razão, o sequestro qualificado não se encaixaria na Lei da Anistia que abrange crimes cometidos entre 1961 e 1979.
      No Pará, o órgão utilizou a mesma tese para abrir denuncia em março deste ano contra o coronel da reserva do Exército Sebastião Curió Rodrigues de Moura, o major Curió, pelo mesmo crime contra ex-integrantes da Guerrilha do Araguaia em 1974.
      O pedido, no entanto, foi negado pela Justiça Federal do Pará sob a alegação de se enquadrar na Lei da Anistia. “Entramos com um recurso que possibilita o juízo de retração e o caso está em análise”, diz Ivan Claudio Marques, procurador no Rio Grande do Sul.
      “Existe uma resistência grande ao tema, que não é técnica ou jurídica. O texto da lei vai até 1979, mas o atentado a bomba do Rio Centro é posterior e foi arquivado pela anistia”, destaca Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, procuradora em São Paulo e responsável pela ação contra Ustra e Graviano.
      “Essa decisão isolada não é o suficiente para retirar do MPF a obrigação de entrar com ações em cada caso que houver provas e indicações da autoria suficientes. Se tivermos todas as decisões em sentido negativo, ainda assim não estamos liberados porque temos a notícia do crime e precisamos atuar. A decisão de Belém não vai se repetir indefinidamente porque assim como o MPF, o Poder Judiciário está sob a decisão da corte e não podemos acreditar que ela vá continuar ignorá-la”, desabafa.
   Marques é cauteloso e ressalta que a atuação do MPF não transgride a decisão de 2010 do STF pela constitucionalidade da Lei da Anistia e também não tenta dribá-la, apenas trabalha com o precedente da extradição dos militares estrangeiros.
      Torturas
      Segundo o MPF, em 1964 Palhano teve os direitos políticos cassados e perdeu o cargo que ocupava no Banco do Brasil. Por causa da perseguição política, se exilou em Cuba onde ficou até 1970 e passou a ser monitorado pelos órgãos de repressão. De volta ao Brasil, ligou-se ao movimento da Vanguarda Popular Revolucionária, liderado por Carlos Lamarca.
      O líder sindicalista manteve contato com familiares naquele ano devido ao casamento da sua filha, mas em maio de 1971 foi preso ilegalmente em São Paulo e levado para as dependências do Doi-Codi – que sob o comando de Ustra registrou 542 comunicações de tortura -, de onde não houve mais notícias sobre seu paradeiro.
      Testemunhas ouvidas pelo MPF corroboram que Palhano também foi levado à Casa de Petrópolis, centro clandestino de torturas no Rio de Janeiro, antes de voltar para São Paulo em “estado físico deplorável.” As mesmas fontes afirmam ainda terem ouvido a vítima ser barbaramente torturada nos dois locais pela equipe do delegado Graviano. “Elas contrariam o depoimento de Ustra, que nega a presença de Palhano no Doi-Codi”, ressalta Suiama.
      O processo destaca que Gravina, ainda atuante na Polícia Civil, participou de todas as sessões de tortura contra o advogado. “A Justiça deveria filtrar a entrada destas pessoas em órgãos públicos”, questiona Mendonça.
      Uma posição apoiada por Fávero, em entrevista à CartaCapital. “Entendemos que os fatos anteriores deveriam tê-lo impedido de ocupar essa função e esperamos uma postura cada vez mais firme do Estado e da Justiça em relação à tortura, um crime que precisa ser varrido.”
      A CartaCapital, a procuradora argumenta que a ação do MPF visa esclarecer os casos, mas que se um acusado confessar a morte de um desaparecido serão necessárias outras provas para se configurar o homicídio. “Tem que haver a possibilidade de verificar o corpo, as circunstâncias da morte ou outras medidas”, completa Suiama.
      Mas Fávero afirma que se houver essa configuração, os casos serão processados criminalmente mesmo que tenham prescrito. “Vamos defender que não há prescrição por causa do contesto de lesa-humanidade e ocultação de cadáver, que é um crime permanente.”
      Para a procuradora, a Justiça brasileira está amadurecendo e tem bons precedentes contra violações de direitos humanos na ditadura, como a inédita da Justiça de São Paulo em conceder a retificação da certidão de óbito do militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) João Batista Drumond, que teve reconhecida sua morte sob tortura no Doi-Codi, ante a “versão oficial” de atropelamento.
      Um aspecto corroborado por Marques ao ressaltar que o Brasil ainda não avançou em condenações criminais como Argentina e Uruguai devido a diferenças de amadurecimento democrático entre os países. “Porque apenas agora a sociedade civil se manifesta? Talvez porque depois de tantos anos sinta-se em um ambiente democrático o suficiente para reclamar seus direitos.”
      O clima mais favorável para a discussão do tema, no entanto não significa maior facilidade para que o MPF consiga estabelecer a autoria de violações de direitos humanos cometidas por agentes estatais na ditadura, pois os torturadores realizavam as ações encapuzados e tinham codinomes. “O Exército nega a ficha funcional das pessoas. Ainda existe um sigilo muito grande, uma falta de colaboração destes órgãos que já deveriam ter abertos seus arquivos e adotado essas medidas de dever de casa para que o órgão não seja tomado como algo que pactua com esse tipo de atuação”, ressalta Fávero, a CartaCapital.
       Por isso, ela acredita que a Comissão da Verdade terá papel fundamental para ajudar a identificar torturadores.
      Os processos, destaca Suiama a CartaCapital, foram montados com os dados das testemunhas e de arquivos públicos estadual e nacional. “É obvio que nem todos os documentos estão publicados ou contidos nestes arquivos. Daí o trabalhos dos colegas no âmbito civil para abertura dos arquivos da ditadura. Se houvesse mais informações, as nossas provas poderiam ser mais fortes em outros casos.”

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