Wálter Maierovitch
Carta Capital
A imprópria presença de membros do Ministério Público na política partidária não passou despercebida pelo constituinte brasileiro. Era fundamental, na nova carta-cidadã, dar à instituição do MP independência e autonomia. Bem como conceder aos seus membros, selecionados em concursos públicos, garantias funcionais iguais às conferidas aos juízes, pois é da tradição brasileira separar em carreiras diferentes a Magistratura judicante da postulatória, ou seja, daquela destinada a representar a sociedade civil e a deter, com exclusividade, a titularidade da ação penal pública. A meta era criar outro necessário poder.
Pelo Congresso, ministérios, tribunais de contas, governos estaduais e secretarias de Estado passaram, até então, inúmeros integrantes do MP que se licenciavam dos seus cargos. E no Poder Judiciário, membros do MP concorriam com advogados, num sistema existente apenas no Brasil, às indicações para um limitado número de cadeiras em tribunais. Em outras palavras, membros do MP estavam por toda a parte.
Pela Constituição de 1988, os membros do MP não podem mais sair da instituição, tendo sido mantido o chamado “quinto constitucional” nos tribunais superiores. Por infeliz interpretação do Supremo Tribunal Federal, essa proibição só alcançou os que ingressaram nos MPs estaduais e federal depois da vigência da nossa nova Constituição. Isso explica, por exemplo, a presença no senado de Demóstenes Torres. Por evidente, em nada fortalece o MP a presença de seus membros fora da instituição e pendurados em cargos ou funções subalternas.
Outra falha fundamental, em 1988, decorreu da falta de uma calibragem, à luz do interesse público e da modernidade, do sistema de freios e contrapesos. Assim, para as chefias dos MPs, entregaram-se, respectivamente, as escolhas ao presidente da República e aos governadores, tirados os nomes de listas tríplices formadas com os mais votados pelos membros das corporações. Muitos governadores, com visão de Estado e compromisso com a democracia e o aperfeiçoamento institucional, escolhem para o cargo de procurador-geral o mais votado pelos seus pares.
Como ainda temos muitos licenciados dos MPs em funções nos poderes Executivo e Legislativo, muitas vezes eles atuam disfarçadamente como lobistas e, dessa maneira, acabam por comprometer o ideal de independência. Não raro, e por não terem tirado os pés do Ministério Público e das associações, eles aconselham os governadores e trabalham para “emplacar” os novos procuradores-gerais, que ficam seus devedores. Fora isso, abrem-se para governadores influenciarem nos MPs.
Em São Paulo, o governador Geraldo Alckmin, com apoio declarado do candidato a prefeito do seu partido, contribuiu para uma quebra de salutar tradição democrática, qual seja, a de nomeação do mais votado pela classe para o cargo de procurador- geral. Eleito pela chapa de oposição interna ao antigo procurador- geral e sem vínculos com o governador ou com partidos políticos, Felipe Locke foi preterido por Alckmin. O governador escolheu Marcio Rosa, preferido pelos seus secretários, incluído o licenciado Saulo de Castro. O governador Alckmin acabou por dar, com apoio em dispositivo constitucional que claramente não atende ao interesse público, um tapa na cara dos promotores e procuradores de Justiça do estado de São Paulo.
No âmbito federal, e há pouco, não foi animadora a recondução, cuidada pelo ex-ministro Antonio Palocci, do procurador Roberto Gurgel. Aquilo que deveria funcionar num azeitado sistema de contrapesos pelo interesse público, não mais se mostra salutar, como, num exemplo bem claro, ficou no caso do sempre poupado Palocci. Procurador da República e procuradores-gerais estaduais deveriam ser escolhidos por voto dos pares. Merece ser lembrado que, no governo FHC, o reconduzido procurador ganhou o apelido de “engavetador-geral da República”.
O sistema brasileiro centralizado por força do foro privilegiado confere aos procuradores-gerais um papel relevantíssimo, a exigir total independência funcional. Ora, eles não podem ficar submetidos ao presidente ou aos governadores. Também não deveriam poder concorrer à recondução, que, quase sempre, implica, como se diz popularmente, exercitar durante o mandato um “jogo de cintura” que nada mais é do que a perda de independência.
Alckmin errou num momento em que o mundo celebra os 20 anos da célebre Operação Mãos Limpas, nascida em Milão e de sucesso na repressão à corrupção. Lá, cada membro da Magistratura do MP tem independência para investigar e processar qualquer cidadão, e até o chefe de governo. No momento, procuradores de Milão, da Calábria e de Nápoles apuram o desvio de verbas públicas destinadas ao partido da Liga Norte para uso privado da vice-presidente do Senado, Rosy Mauro, e da família do senador Umberto Bossi, secretário demissionário do partido.
Walter Maierovitch é jurista e professor, foi desembargador no TJ-SP
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