quinta-feira, 17 de maio de 2012

A história que a Comissão da Verdade precisa contar


José Antonio Lima

Carta Capital

Dilma e os ex-presidentes Lula, Fernando Collor, José Sarney e Fernando Henrique. Foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula
ilma e os ex-presidentes Lula, Fernando Collor, José Sarney e Fernando Henrique. Foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula

A presidenta Dilma Rousseff, ao lado dos quatro ex-presidentes da República vivos, instalou nesta quarta-feira 16 a Comissão da Verdade, cujo objetivo, exposto na lei 12.528, é “examinar e esclarecer graves violações de direitos humanos” praticadas entre 1946 e 1988. Antes mesmo de sua instalação, a comissão se viu envolta em uma celeuma: a comissão deve focar apenas as violações cometidas por agentes do estado ou também ofensas aos direitos humanos realizadas por determinados setores da luta armada? Esta discussão é torta, deslocada da realidade e encontra suas raízes numa interpretação falsa do que houve em 1964.
A polêmica deriva da falta de precisão do texto que cria a comissão e não estabelece claramente qual é seu “alvo”. Assim, cabe aos integrantes da comissão decidir a forma como ela deve atuar. O advogado José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso, disse inicialmente, à Folha de S.Paulo, que “tudo” seria analisado. No dia seguinte, ao Estado de S.Paulo, afirmou que o objetivo principal da comissão seria investigar as violações de direitos humanos cometidos por agentes de Estado. Companheiros de Dias discordam dele. Paulo Sergio Pinheiro, ministro de Direitos Humanos no governo FHC, afirmou que o “único lado” é o das vítimas de violações praticadas por agentes do Estado. A professora e advogada Rosa Cardoso, defensora de Dilma quando a presidenta foi presa e torturada nos 1970, concordou com Pinheiro.
A discussão fez dois ex-ministros trocarem acusações. Nelson Jobim, ministro da Defesa nos governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma, alardeou um acordo supostamente firmado na época da redação do texto. Segundo Jobim, o acordo previa que ações da esquerda armada também seriam investigadas. Paulo Vannuchi, ex-ministro da secretaria de Direitos Humanos da Presidência, acusou Jobim de mentir.
A postura de Jobim ecoa as posições de alguns setores militares. O general da reserva Marco Antônio Felício da Silva, afirmou ao Estado de S.Paulo que o objetivo da comissão é colocar os grupos armados “como democratas e defensores da liberdade e dos direitos humanos quando, no passado, desejavam a derrubada do governo e a instalação de uma ditadura do proletariado por meio da luta armada, usando do terrorismo”. O que está por trás deste tipo de pensamento? Não é preciso ter dúvidas. Para muitos brasileiros, incluindo diversos militares, o que ocorreu em 31 de março de 1964 foi correto. Foi, para eles, não um golpe, mas sim uma revolução para impedir a suposta tomada de poder por comunistas. Essa versão serve para esconder o fato de que o golpe foi um levante, militar e civil, apoiado inclusive por empresários e veículos de comunicação, contra um governo frágil e de pouca habilidade política cuja atuação indicava a redução de privilégios de algumas das elites nacionais.
Essa argumentação desconsidera dois aspectos fundamentais. O primeiro confunde o que houve no Brasil entre 1964 e 1985 com uma guerra civil. Os crimes da esquerda, entre eles atentados terroristas, já foram investigados e julgados. Os militantes anti-regime eram, do ponto de vista da lei, criminosos comuns. Alguns dos processos contra eles se deram em tribunais que consistiam clamorosas farsas. Houve até condenações à pena de morte, como a do ex-militante Ottoni Fernandes Júnior. Foi justamente na busca a esses setores da esquerda que o regime de exceção da época, ilegítimo por não ter sido eleito, cometeu graves violações de direitos humanos até hoje jamais investigadas.
O segundo aspecto deixado de lado por quem advoga peso igual para as violações cometidas pelo estado e por civis é que os dois tipos de violência não podem, de forma alguma, ser igualados. O Estatuto de Roma, base do Tribunal Penal Internacional, estabelece que crimes contra a humanidade são “ofensas à dignidade humana, graves humilhações e degradação” contra “um ou mais seres humanos” que sejam “parte de uma política de governo ou toleradas por um governo ou autoridade”. No Brasil, foi exatamente isso o que houve. Agentes do estado, cuja missão era zelar pelos direitos daqueles sob sua custódia, violaram sistematicamente, sob ordens superiores e cadeia de comando, esses direitos e também as constituições vigentes na época. Entre os crimes citados no Estatuto de Roma estão três que foram amplamente cometidos pelo estado brasileiro: assassinato, tortura e perseguição política. E por que há pesos diferentes para a violência estatal e para a cometida por civis? Porque um mundo civilizado simplesmente não pode conviver com estados que cometam crimes contra sua própria população.
A Comissão da Verdade tem um objetivo específico e muito claro. Ela não foi criada para esconder que muitos setores da esquerda nos anos 1960 e 1970 eram também pouco ou nada democráticos, para esquecer atentados e suas vítimas ou para dizer que o sistema de indenização aos prejudicados pela ditadura é perfeito. A comissão é uma tentativa de contar a verdadeira história das violações de direitos humanos que o estado brasileiro cometeu contra brasileiros e imortalizar este drama para que ele nunca mais se repita.

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