sábado, 31 de março de 2012

Indignação em estado bruto

Matheus Pichonelli, Carta Capital


      Meu pai tinha pedido para acompanhá-lo até a chácara num sábado de manhã. Birrento, queria ficar em casa, na tevê ou coisa assim. Todo sábado era a mesma via crucis: pegava a caminhonetezinha, passava por algumas lojas, comprava ração e alguns utensílios e seguia mato adentro numa estradinha de terra, até um descampado onde só havia duas casas, uma trave de madeira e uns pés de carambola azeda.
      Não devia ter mais de seis anos e era a única companhia de meu pai naquele dia. Disse que não queria ir, e meu pai me prometeu que, se eu fosse com ele, me levaria para conhecer o Raul Seixas. Me troquei num pulo e disse: “Vamos!”
      Raul passava naquele tempo pela cidade para fazer um dos seus últimos shows, na famosa turnê com Marcelo Nova (e meu tio se orgulharia até hoje por ter aberto uma latinha de cerveja gelada para ele antes do show, que não conseguiu terminar).
      No caminho para a chácara, ele estacionou na frente de uma casa, onde tinha de buscar alguns papéis, e me deixou sozinho na caminhonete, ansioso por conhecer famoso cantor. Meu pai então veio com toda a cara de pau do mundo e disse: “Não vai dar. Ele está dormindo e não quer ser incomodado”. Obviamente Raul não estava naquela casa. Era um golpe do meu pai, que conseguiu o que queria e me levou para a chácara.
      A infância tem seus cheiros e sensações, e a minha tinha também uma trilha sonora. Raul Seixas foi o primeiro som “adulto” que me pegou, e me fazia cantar sem nem bem entender as letras.
      Um dia, em agosto de 1989, chegávamos com a mesma caminhonete na garagem de casa quando ouvimos pelo rádio que Raul estava morto, em decorrência do alcoolismo. Não lembro o que senti, mas lembro de ver meu pai se trancar no quarto com uma “garrafa de bebida enrustida” – porque minha mãe não podia ver. Só saiu de lá na década seguinte. Do lado de fora, ninguém mais aguentava aquela choradeira que vinha de dentro enquanto ele ouvia, repetidamente, “Canto para Minha Morte”.
      Desde então, deixei de gostar de Raul. Achava tudo aquilo lúgubre demais. Para mim Raul tinha perdido a batalha para ele mesmo, e eu não queria ouvir o som de um sujeito que me mandava tentar outra vez mas falhava ao tentar se salvar.
      Muito tempo depois, numa dessas esquinas entre a infância e a adolescência em que tudo parece truncado, recorri a uma velha fita em K7 e revi os sons da minha infância – que só então fariam sentido. Era como se aquelas músicas tivessem uma frágil proteção de vidro pedindo para ser quebrado em casos de emergência. Como a vida é feita de emergências, muitas, o vidro foi quebrado e consertado muitas e muitas vezes.
      Lembrando de tudo hoje, depois de assistir ao documentário “O Início, o Fim e o Meio” (e tudo o que podia ser dito sobre o filme está NESTE TEXTO, de Cynara Menezes), listei muitos dos sons (e filmes e livros) que me viraram a cabeça até meus quase 30. Das bandas de rock dos 80 à poesia de Caetano, passando pela rebeldia elegante de Chico Buarque, conheci artistas de obras mais elaboradas e completas, que se reinventaram com o tempo e sobreviveram.
      Mesmo assim, nada ainda se compara à pancada certeira de Raul. Sua música é a indignação em estado bruto. Não que lhe falte poesia, mas para ele isso é só um acessório: seu grito é mais agudo, rudimentar, e está em primeiro plano. Por isso, quando bate, derruba. Porque ninguém como ele pegou as regras para se vencer na vida (“uma grande piada”) e virou tudo de ponta-cabeça.
      E colocou em xeque, junto com parceiros notáveis (como Paulo Coelho, destaque no filme), valores sacrossantos como a fidelidade (“o amor a dois profana o amor de todos os mortais”), a lealdade (“porque quando eu jurei meu amor eu traí a mim mesmo”), o sucesso (“eu devia estar contente porque tenho um emprego, sou o dito cidadão respeitado e ganho 4 mil cruzeiros por mês”), a amizade (“hoje eu te chamo de careta e você me chama vagabundo”), a família (“eu calço é 37, meu pai me dá 36. Dói, mas, no dia seguinte, aperto meu pé outra vez”), a sabedoria (“antes de ler o livro que o guru te deu você tem que escrever o seu”), a divisão entre o bem e o mal (“o mais puro gosto do mel é apenas defeito do fel”), o Estado (“e sempre que você dorme de toca ele fatura em cima do inimigo”), a religião (“a madre da escola te ensina a reconhecer o pecado e o que você sente é ruim: mas, baby, Deus não é tão mau assim”), a carreira (“é você olhar no espelho e se sentir um grandessíssimo idiota, saber que é humano, ridículo e limitado e que só usa 10% de sua cabeça animal”), a coerência (“eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”), a obediência (“por que você não para um pouco de fingir e rasga esse uniforme que você não quer? Mas você não quer: prefere dormir e não vê”), a escola (“e o professor não saiu pra lecionar pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar no dia em que a Terra parou”).
      O pano de fundo era um só: a derrota cantada num mundo feito para pretensos vencedores. Ele admitia, sem firulas, o tédio, o cansaço, o desencanto. E, em quase todas essas músicas, guardava um questionamento em comum: o que há depois disso tudo? O que realmente importa nessa vida?
      Daí a sua predileção pelas coisas do além, os discos voadores, a magia e a morte (“eu te detesto e amo”), em vez das tolices que nos fazem menos gente a cada dia.
      O fardo, para ele, foi viver tudo o que cantou – e talvez seja isso o que o torne único na “linha evolutiva da música popular brasileira”.
      No filme de Walter Carvalho, essa ideia fica clara quando ele aparece, numa reportagem antiga da tevê, comentando os efeitos de uma ressaca, na orla do Rio, que arremessou seu carro (um Corcel 73?) para longe e provocou estragos na lataria. “A natureza está certa, a onda tá certa: quem não tinha que estar aqui era o homem, é esse aterro, esses prédios aí. Tomara que a onda derrube tudo”. Isso num tempo em que “sustentabilidade” era apenas palavrão.
      Em outra cena, o amigo Sylvio Passos, fundador do Raul Rock Club, conta como conheceu o ídolo: ao receber o jovem, Raul pegou o macarrão na mão e jogou no prato do novo amigo, pedindo que ficasse à vontade.
      Os relatos sobre esse desapego e a noção exata da finitude humana são uma constante em todo o filme.
      Mas nesse encontro entre vida e obra, bebedeiras e abandonos (de sonhos, da família, dos amigos), ainda havia tempo para esperança. Raul se queixava do pessimismo encarnado pelos jornais tomados de “sangue” e garantia: “a gente ainda nem começou”. E, em Ave Maria da Rua, para mim a mais intensa de todas as suas composições, pede: “Segure a minha mão quando ela fraquejar e não deixe a solidão me assustar”.
      Raul morreu às portas do Fim da História, decretado após a queda do muro de Berlim, dos anos Collor, do boom da lambada e do axé. Sorte dele, que já não suportava o que via – e vivia em bebedeira eterna para poder ver tudo claramente, sem dor. Sabia dos tempos que estavam por vir.
      Morreu em pé, como lembrou Marcelo Nova no documentário, aplaudido e adorado, perto de seu público – apesar do esforço para não desabar, ainda restou o último fôlego para fazer seu último, e brilhante, disco “A Panela do Diabo”.
      Raul foi, de longe, o maior nome do rock brasileiro. Mesmo cantando a dúvida num mundo que pedia (e pede) certezas. Um mundo que manda obedecer e não contestar, limpar a bota de quem está em cima e chutar quem está embaixo para um dia se tornar os novos bilionários da Forbes. Para ele, tudo isso era passageiro, inútil. “Um saco”, como passear no jardim zoológico para dar pipoca aos macacos.
      Se alguém perguntar quem era o doido, é bom pegar o espelho: não foi Raul que se deslocou do próprio mundo. O mundo é que não estava (nem está) pronto para entender Raul.




sexta-feira, 30 de março de 2012

Quem É Doutor???

      Eu tive oportunidade de ter aulas com excelentes professores de direito que faziam questão de frisar que não eram doutores, e que não gostariam de serem tratados assim. Pois lembrei-me desta clareza de pensamento dos meus nobres mestres ao receber este email, que aqui reproduzo.

      LEMBRAM DO JUIZ QUE ENTROU NA JUSTIÇA CONTRA O CONDOMÍNIO EM QUE MORA, POR CAUSA DO TRATAMENTO DE "'VOCÊ" DADO PELO PORTEIRO? POIS É, SAIU A SENTENÇA. LEIAM ABAIXO. OBSERVEM A BELA REDAÇÃO, SUCINTA, BEM ARGUMENTADA, ATÉ SOLIDÁRIA DO JUIZ ALEXANDRE EDUARDO SCISINIO PARA COM O JUIZ QUE SE QUEIXA, MAS.... UMA VERDADEIRA AULA DE DIREITO E DE PORTUGUÊS!

      Processo distribuido em 17/02/2005, na 9ª vara cível de Niterói - RJ
      PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - COMARCA DE NITERÓI - NONA VARA CÍVEL
      Processo n° 2005.002.003424- 4

      S E N T E N Ç A

      Cuidam-se os autos de ação de obrigação de fazer manejada por ANTONIO MARREIROS DA SILVA MELO NETO contra o CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO LUÍZA VILLAGE e JEANETTE GRANATO, alegando o autor fatos precedentes ocorridos no interior do prédio que o levaram a pedir que fosse tratado formalmente de "senhor".

      Disse o requerente que sofreu danos, e que esperava a procedência do pedido inicial para dar a ele autor e suas visitas o tratamento de ' Doutor, senhor" "Doutora, senhora", sob pena de multa diária a ser fixada judicialmente, bem como requereu a condenação dos réus em dano moral não inferior a 100 salários mínimos. (...)

      DECIDO: "O problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter." (Noberto Bobbio, in "A Era dos Direitos", Editora Campus, pg. 15).

      Trata-se o autor de Juiz digno, merecendo todo o respeito deste sentenciante e de todas as demais pessoas da sociedade, não se justificando tamanha publicidade que tomou este processo. Agiu o requerente como jurisdicionado, na crença de seu direito. Plausível sua conduta, na medida em que atribuiu ao Estado a solução do conflito.

      Não deseja o ilustre Juiz tola bajulice, nem esta ação pode ter conotação de incompreensível futilidade. O cerne do inconformismo é de cunho eminentemente subjetivo, e ninguém, a não ser o próprio autor, sente tal dor, e este sentenciante bem compreende o que tanto incomoda o probo Requerente.

      Está claro que não quer, nem nunca quis o autor, impor medo de autoridade, ou que lhe dediquem cumprimento laudatório, posto que é homem de notada grandeza e virtude. Entretanto, entendo que não lhe assiste razão jurídica na pretensão deduzida.

      "Doutor" não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau, e mesmo assim no meio universitário. Constitui-se mera tradição referir-se a outras pessoas de 'doutor', sem o ser, e fora do meio acadêmico. Daí a expressão doutor honoris causa - para a honra -, que se trata de título conferido por uma universidade à guisa e homenagem a determinada pessoa, sem submetê-la a exame.

      Por outro lado, vale lembrar que "professor" e "mestre" são títulos exclusivos dos que se dedicam ao magistério, após concluído o curso de mestrado. Embora a expressão "senhor" confira a desejada formalidade às comunicações - não é pronome -, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir.

      O empregado que se refere ao autor por "você", pode estar sendo cortês, posto que "você" não é pronome depreciativo. Isso é formalidade, decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência de insubordinação. Fala-se segundo sua classe social. O brasileiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em especial a classe"semi-culta" , que sequer se importa com isso.

      Na verdade "você" é variante - contração da alocução - do tratamento respeitoso "Vossa Mercê". A professora de linguística Eliana Pitombo Teixeira ensina que os textos literários que apresentam altas freqüências do pronome "você", devem ser classificados como formais. Em qualquer lugar desse país, é usual as pessoas serem chamadas de "seu" ou "dona", e isso é tratamento formal.

      Em recente pesquisa universitária, constatou-se que o simples uso do nome da pessoa substitui o senhor/a senhora e você quando usados como prenome, isso porque soa como pejorativo tratamento diferente. Na edição promovida por Jorge Amado "Crônica de Viver Baiano Seiscentista", nos poemas de Gregório de Matos, destacou o escritor que Miércio Táti anotara que "você" é tratamento cerimonioso. (Rio de Janeiro, São Paulo, Record, 1999).

      Urge ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadêmico, como já se disse. A própria Presidência da República fez publicar Manual de Redação instituindo o protocolo interno entre os demais Poderes. Mas na relação social não há ritual litúrgico a ser obedecido. Por isso que se diz que a alternância de "você" e "senhor" traduz-se numa questão sociolingüística, de difícil equação num país como o Brasil de várias influências regionais.

      Ao Judiciário não compete decidir sobre a relação de educação, etiqueta, cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o empregado do condomínio e o condômino, posto que isso é tema interna corpore daquela própria comunidade.

      Isto posto, por estar convicto de que inexiste direito a ser agasalhado, mesmo que lamentando o incômodo pessoal experimentado pelo ilustre autor, julgo improcedente o pedido inicial, condenando o postulante no pagamento de custas e honorários de 10% sobre o valor da causa. P.R.I.

      Niterói, 2 de maio de 2005.
ALEXANDRE EDUARDO SCISINIO
/Juiz de Direito/



quinta-feira, 29 de março de 2012

Só Não Pode Ser Otário

Carta Capital

Matheus Pichonelli

      Não falta muito para chegar o tempo em que você correrá o risco de receber multa se abrir uma latinha de cerveja e andar a pé na rua. Se acender um cigarro debaixo de um toldo, vai tomar tapa de amigos e do dono do bar. Melhor se esconder no banco de trás do carro: lá, poderá encher a lata à vontade, fumar o que quiser, e sair por aí rodopiando, confundido as luzes das ruas com as imagens psicodélicas que a bebedeira produz.


Campanha de prevenção contra a bebida em Brasília. Em vão.? Foto: Agência Brasil

      Em nenhum ponto da legislação brasileira o automóvel é citado como “área sem lei”, mas é nisso que foi transformado após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerar inúteis os relatos de testemunhas e autoridades do trânsito sobre crimes cometidos a quatro rodas.
      A Lei Seca funcionava desde 2008 e era clara em relação aos limites para se dirigir. Quem bebesse além de seis decigramas de álcool por litro de sangue (o equivalente a dois chopes) seria multado, perderia pontos na carteira, e poderia responder a processo criminal. Ficou determinado, pelo decreto do governo, que os excessos seriam medidos por coleta de sangue ou dos chamados bafômetros, nome popular do etilômetro.
      Faltou pensar no resto. A primeira grande questão era: como municiar policiais e guardas do trânsito se faltavam equipamentos em todo canto? Até então, a única fábrica brasileira autorizada a fabricar os equipamentos ficava em Tremembé, no interior de São Paulo. Faltava bafômetro em praticamente todas as praças do País.
      Não demorou muito e o motorista percebeu que as blitzes também não eram tão comuns. E as que tinham podiam ser comunicadas em alertas distribuídos por uma rede de solidariedade no Twitter. “Não pega a Rebouças que lá os ‘homi’ estão fechando o cerco”. Com um iPhone na mão e uma cachaça na cabeça, estava livre da eventual punição. Numa cidade como São Paulo, em que a corrida de táxi é mais cara que a conta do restaurante, as linhas de metrô são limitadas e a circulação de ônibus públicos à noite é mais rara do que unicórnios, parecia um risco interessante de se correr.
      A cada efeméride da edição da norma um mundo de especialistas dizia: a Lei Seca não pegou. Não pegou sobretudo porque, além de ser fácil driblá-la, o Brasil gosta de colecionar leis. E umas anulam as outras. Neste caso, como provar cientificamente, por meio de aparelhos certificados, que o motorista dirigia embriagado, se no mesmo País a lei diz que o mesmo motorista não é obrigado a produzir prova contra ele mesmo?


O Departamento de Trânsito do Distrito Federal e a Secretaria de Segurança Pública divulgam dados de dois anos de vigência da Lei Seca. Foto: Agência Brasil

      Até então, valiam, a depender das instâncias responsáveis por julgar cada caso, o relato de testemunhas. Com base nas evidências, e no recurso chamado de culpa presumida, o motorista podia, sim, ser incriminado. De uma lei mal formulada, que não previa a própria anulação em outras regras, valia o fundamento do relato e o bom senso do juiz – até onde cabe recurso, o acusado tem o direito de se defender.
      Agora, ao desconsiderar os relatos como provas válidas, a lei se enfraqueceu de vez – e, nas palavras do promotor Evandro Gomes, representante do Ministério Público no caso analisado pelo tribunal, só será punido quem for “otário” a ponto de fazer o teste do bafômetro, produzindo, assim, provas contra si mesmo.
      Algo diferente do que acontece em outros países. Na Inglaterra, um amigo foi parado numa blitz policial às 23h50 do dia 31 de dezembro de 1999 – a dez minutos, portanto, para o ano 2000. O teste do bafômetro, obrigatório, acusou que ele havia tomado metade de uma garrafa de champanhe antes de seguir para a festa em sua própria casa, a duas quadras de onde foi parado. Tentou negociar, pediu para estacionar o carro e terminar o roteiro a pé; diante da negativa, se exaltou e teve de comemorar o Revéillon na prisão. Mais tarde, respondeu a um processo, levou um belo carimbo na carteira e foi proibido de dirigir durante um ano. Foi tratado, segundo conta, como ladrão de carteira.
      No Brasil, onde Executivo, Legislativo e Judiciário batem cabeça sobre normas aparentemente simples (que não deveriam se anular), não importa o potencial de destruição que o álcool somado à direção poderá causar em espaços públicos. O desfecho já estará sacramentado: “Doutor, eu vi com meus próprios olhos: o sujeito bateu aqui, saiu arrastando meio mundo, só parou no poste e desceu do carro rindo, trançando as pernas. Está tudo filmado, postado no YouTube, a tevê mostrou. Só um milagre evitou a tragédia”; “Mas ele fez o teste?”; “Fez não, senhor”; “Então não posso fazer nada: é a lei”.
      Em outras palavras, o STJ, ao julgar um caso (e uniformizar os demais), decidiu que no Brasil o sujeito pode e deve ser perdoado quando coloca a vida de meio mundo em perigo. A leitura que se tira é: ser imprudente por aqui vale a pena e é até compreensível. O que não pode é ser otário. Portanto, se um dia te proibirem de beber ao ar livre, entre e beba no carro e saia dirigindo. Lá você estará protegido da lei.




Cientistas apontam bilhões de planetas potencialmente habitáveis na galáxia

Jornal do Brasil

      PARIS - Bilhões de planetas potencialmente "habitáveis" existem na Via Láctea, dos quais provavelmente uma centena nas imediações do Sol, anunciou o Observatório Austral Europeu (ESO).
      Um grupo internacional do instrumento HARPS, um espectrógrafo do telescópio do ESO no Chile, descobriu nove ''super Terras'' em um simples conjunto de 102 estrelas do tipo "anãs vermelhas".
      Estas ''super Terras'' são planetas rochosos com massa entre uma e 10 vezes a da Terra. Caso estejam em uma zona onde a temperatura é propícia à existência de água líquida, em tese poderiam ter alguma forma de vida.
      As "anãs vermelhas", estrelas relativamente frágeis e frias comparadas com o Sol, são muito comuns nas galáxias e representam 80% de todas as estrelas na Via Láctea.
      A partir deste grupo de anãs vermelhas, os astrônomos do ESO conseguiram estimar a frequência das ''super Terras'' em nossa galáxia.
      "Nossas novas observações com o HARPS significam que mais ou menos 40% de todas as anãs vermelhas têm uma ''super Terra'' em sua zona habitável, onde a água líquida pode existir na superfície do planeta", explicou Xavier Bonfils, do Observatório de Ciências do Universo de Grenoble, coordenador da equipe.
      "O fato de as anãs vermelhas serem tão comuns - há 160 bilhões na Via Láctea - nos levou ao assombroso resultado de que há bilhões de planetas deste tipo em nossa galáxia", explica um comunicado do ESO.
      Como muitas anãs vermelhas estão próximas do Sol, esta nova estimativa significa que provavelmente há uma centena de ''super Terras'' na zona habitável de estrelas situadas nas imediações do astro, a uma distância inferior a 30 anos-luz, destacou o ESO.
      O HARPS descobriu em particular "a irmã mais próxima da Terra localizada até agora". Batizada de "Gliese 667Cc" e com uma massa quatro vezes maior do que a da nossa Terra, este planeta pertence a um sistema que possui três estrelas e parece estar nas imediações do centro da zona habitável.
      "A zona habitável em meio às anãs vermelhas, onde o nível de temperatura permite a existência de água líquida na superfície, é muito mais próxima à estrela do que a Terra do sol", revelou Stéphane Udry, do Observatório de Genebra.
      "Mas as anãs vermelhas são conhecidas por estarem sujeitas a erupções estelares que podem submergir o planeta em uma onda de raios X ou de radiações ultravioletas, tornando a vida menos provável na região".
      Portanto resta muito caminho a percorrer para detectar uma hipotética forma de vida extraterrestre.



quarta-feira, 28 de março de 2012

Morre Millôr Fernandes

      Veja postagem completa em http://costruzionedime.blogspot.com.br/

A fome e a contradição

Jornal do Brasil
Sergio Sebold

      A Cáritas, instituição católica de ajuda aos mais necessitados, sem distinção de raça ou credo, sem qualquer exigência em troca, alerta que milhões de pessoas mais uma vez enfrentam uma grave crise alimentar em toda a região africana do Sahel, onde o regime irregular e escasso de chuvas nos últimos meses vem assolando com grandes perdas a produção agrícola. Sahel é uma faixa de terra intermediária entre o grande deserto do Saara e as áreas úmidas da linha equatorial da África. Uma faixa ligando o Atlântico ao Mar Vermelho. É uma região de transição, que por inconstância do clima da terra, apresenta variações climáticas de secas severas e outros períodos de boas chuvas.
      Por ser uma região muito pobre, sem grandes recursos, o regime econômico é essencialmente agrícola. A colheita de cereais é a sua alimentação básica. A seca dos anos recentes levou a uma produção (2011) muito aquém das necessidades da população. Alguns países como o Chade e a Mauritânia, menos castigados, estão com estoques apenas para os três próximos meses, enquanto os demais da região no máximo para dois meses. A partir daí, se não houver uma ajuda internacional de grande escala, haverá fome generalizada.
      A situação se torna crítica, quando muitas famílias se obrigam a vender ou comer o pouco gado que ainda possuem, e muitos a própria semente armazenada para o próximo plantio. Vislumbra-se, se não ocorrerem novas chuvas, uma catástrofe humana sem paralelo começando pela desnutrição infantil e a morte dramática pela fome. Homem com barriga vazia não consegue produzir nada para si mesmo.
      Enquanto tudo isto está acontecendo, a mídia internacional só mostra a “tragédia” que os europeus estão sofrendo pela queda das bolsas, com perdas de rios de dinheiro na bolha especulativa. Uma tragédia para o mundo capitalista. Mas lá não está acontecendo pessoas morrendo de fome e os que morrem de frio do atual inverno, — com respeito ao sofrimento humano — estatisticamente não tem qualquer significado, mas é mostrado em letras garrafais para mostrar o “desastre”. Em outros termos, gozam de um padrão de vida tal que até para morrer de frio estão bem protegidos. Enquanto os europeus que pilharam e espoliaram nossos irmãos na África durante séculos estão preocupados apenas com seu umbigo, não estão nem aí pelos acontecimentos na África. Alguns até dizem “não é da nossa conta”. Mas foram a conta dos seus ancestrais, sim. Estes não foram para lá ensinar técnicas agrícolas ou outras tecnologias que viessem tirar a região do atraso milenar. Foram pilhar suas riquezas naturais para enfeitar com ostentação o luxo de seus palácios, que hoje hipocritamente nos maravilham através dos planos turísticos. Pior de tudo ainda, são todos países cristãos. Ainda não assimilaram as verdades do Evangelho. Quanta contradição!



Sergio Sebold é economista e professor



terça-feira, 27 de março de 2012

Movimentos protestam na frente da casa de acusados de tortura

Por Bruno Bocchini*
Carta Capital


Movimentos sociais fazem manifestações para expor publicamente ex-militares e policiais acusados de tortura, abusos sexuais e homicídios durante a ditadura. Foto: Bruno Bocchini/ABr


      São Paulo – Movimentos sociais, coordenados pelo Levante Popular da Juventude, fizeram na manhã desta segunda-feira 26 manifestações para expor publicamente ex-militares e policiais acusados de tortura, abusos sexuais e homicídios durante a ditadura (1964-1985). Os atos ocorreram em frente à casa ou no local de trabalho dos acusados. As ações estão programadas para ocorrer em seis estados: São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Santa Catarina, Pará e Ceará.
      Em São Paulo, a sede da empresa de segurança privada Dacala, do delegado aposentado do antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), David dos Santos Araujo, foi o alvo da manifestação. Cerca de 200 pessoas – com cartazes que traziam estampados os rostos de presos políticos mortos durante a ditadura – denunciaram a participação do ex-delegado em assassinatos e tortura durante a ditadura.
      O ex-delegado Santos Araujo é acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de participar da tortura e do assassinato, em abril de 1971, do ativista político Joaquim Alencar de Seixas. De acordo com o MPF, o ex-delegado foi reconhecido por parentes da vítima.
      Em 30 de agosto de 2010, o MPF moveu ação pública para que Araujo fosse pessoalmente responsabilizado pelas práticas criminosas. Segundo o relato do atual presidente do Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana de São Paulo, Ivan Seixas, preso aos 16 anos, junto com o pai, Joaquim Alencar de Seixas, David dos Santos Araujo, o “capitão Lisboa”, estava entre os torturadores.
      “[Ele] era o que mais batia”, disse no depoimento ao MPF. Seixas também contou que, como forma de pressão, os policiais o torturaram e o levaram para uma área deserta e simularam seu fuzilamento. Uma das irmãs de Seixas afirmou ao MPF que foi abusada sexualmente por Araujo.
      “O ato é para pressionar, para que a Comissão da Verdade ocorra de fato. A gente veio para dialogar com quem trabalha com o acusado de tortura. [É para] expor, constranger e denunciar o torturador para quem convive com ele”, disse um dos porta-vozes do movimento, o estudante da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Caio Santiago.
      Segundo os organizadores, a manifestação foi inspirada em ações similares feitas na Argentina e no Chile, chamadas de Escracho. “Saímos à rua hoje para resgatar a história do nosso povo e a história do nosso país. Lembramos talvez da parte mais sombria da história do Brasil e que parece ser propositadamente esquecida: a ditadura militar”, diz o texto do manifesto lido em frente à empresa de Araujo, na zona sul de São Paulo.
      A reportagem entrou em contato com a empresa Dacala para tentar ouvir o ex-delegado, mas ainda não obteve retorno.
      O Levante Popular da Juventude surgiu em 2006 no Rio Grande do Sul, com jovens de universidades, das periferias das cidades e do campo. Hoje conta com aproximadamente 200 militantes no país. Também particiaparam do ato em São Paulo membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da Consulta Popular e do Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça.

*Matéria originalmente publicada em Agência Brasil.




Abriram mais uma nova religião: “Mc Jesus Feliz”

RAYMUNDO DE LIMA*


      Tornou-se comum ouvirmos notícias que não raro envolvem fé e bens, religião e dinheiro, aproximando estas duas categorias estranhas ao verdadeiro cristianismo. Em que pese que as igrejas estejam inseridas no sistema capitalista, a tendência recente parece levar algumas a mudar sua linguagem e objetivos. Alguns homens de igreja sintonizados com a globalização da economia, já falam da igreja como “empresa rentável”, de “marketing da fé”, “investimento em Deus”, etc. Este artigo toma como ponto de partida outro publicado tempo atrás no Jornal do Brasil, “Os novos vendilhões dos templos”, cujos autores e data não me recordo. A Seguir, algumas observações em aberto às críticas.
      Primeira, os escândalos e suspeitas de falta de ética envolvendo dinheiro, mais aparecem nas chamadas igrejas neopentencostais do que nas tradicionais denominadas litúrgicas e congregacionais.
     Segunda, nas neopentencostais, ficamos sabendo que qualquer pessoa sem uma sólida formação teológica, ou mesmo de passado imoral ou até mesmo gente que veio do mundo do crime, basta que esta diga que foi tocada pelo Altíssimo onde se supõe que o Espírito Santo se manifestou em seu corpo e logo é promovida a “pastor” e os mais ousados fundam de uma nova igreja cujo nome nem sempre é original ou de inspiração elevada. Ou seja, deveria existir enorme distância entre a conversão de um criminoso e a sua ordenação a pastor, mas o que se sabe é a recente inauguração de um caminho de promoção pessoal e funcional quase divino, que, queima etapas em prol de mais um agente do sistema capitalista de montagem de “franquias” de um novo templo.
      Por tradição e bom senso, a formação de religiosos sempre foi longa, difícil, ritualística, e com certas provas de sacrifícios. Hoje, não. Em tempos em que a sociedade pós-industrial acena para nos sofisticarmos cada vez mais em novas formações e reciclagens para acompanharmos o acelerado dinamismo do mercado global, há igrejas fundamentalistas caminhando na contramão, promovendo a ignorância e fanatismo, e também inescrupulosamente explorando almas ingênuas nos seus propósitos inconfessos. Tradicionalmente, o campo da fé sempre foi cenário de erros, errancias ou ilusões de pessoas cientificamente ingênuas, mas nos tempos atuais, não devemos confundir esses com os erros imorais praticados por tanto por pessoas inescrupulosas como por uma ou outra estrutura religiosa (na maioria, seitas) que por vezes “deforma” ou autoriza seus pastores a lucros exorbitantes pessoais em nome da fé. Nesse último sentido, ainda há aqueles que distinguem-se pela “moral cínica”, segundo S. Sikek, são pessoas imorais que sabem que estão roubando, mas mesmo assim, ainda vem a público tentar argumentar que frases de efeito hipnotizador ao seu público fanático, que na maioria das vezes, parece acreditar na sua mentira cínica.
      Terceira, a sociedade ao responsabilizar o médico, o dentista, o psicólogo, o advogado, quando estes erram, sabe a quem se dirigir para denunciá-los (os Conselhos Regionais das Profissões, a Faculdade que o formou, o MEC que autorizou, o Hospital a que pertence, etc.), mas no caso do pastor que erra ou da igreja que age de modo imoral, a quem as pessoas lesadas vão denunciar? Será que os pastores tendem a pensar que só tem contas a prestar a Deus e nenhuma aos homens? Ora, os policiais têm uma corregedoria para investigar desvios e excessos de autoridade, será que os responsáveis pelas igrejas, sob pena de um dia cair no descrédito social, não deveria também ter uma “Corregedoria Moral de Igrejas e Profissionais da Fé” para investigar, julgar e punir os que pervertem a moral cristã?
      Quarta, nas igrejas cristãs tradicionais, predominam a discrição e o comedimento nas campanhas do dízimo e, se pensarmos para além da relação dinheiro X igreja, na relação fé X métodos morais, também, nas tradicionais parece existir certa racionalidade nas interpretações dos textos sagrados, há um esforço em fazer ligação dos textos com os problemas do povo, ou seja, vão além da repetição vazia de conteúdo e cheia de emocionalismos que expulsa uma certa razão da práxis teológica. Nos cultos neopentencostais, a voz dos pastores chega a ser estridente, com gestos teatrais em abundância, com insinuações, às vezes de mau gosto, que curiosamente parece agradar uma parcela inculta da população propensa ao êxtase (a ficar fora de si), e, também, elevar o narcisismo do pastor a showman da fé,(como foi caricaturado no filme “Fé demais não cheira bem”). Pois bem, o poder de persuasão do pastor faz uso abusivo dos testemunhos, das profecias, dos exorcismos e também há venda de bugigangas supostamente “santificadas”. Num determinado momento do culto, na maioria das novas igrejas, o discurso do pastor é construído para exercer uma pressão psicológica para os presentes pagarem o dízimo, não de acordo com o que cada um pode dar, mas de acordo com o que a igreja (que são eles próprios) precisa ou exige. Pode-se até mesmo levantar a hipótese de que essa pressão psicológica, em várias situações, trata-se de “assédio moral” (Hirigoyen, M.-F. Ed., Bertrand Brasil, 2000), na medida em que muitas pessoas silenciosamente sentem-se mais que exploradas, sentem-se indefesas, vitimadas e, se não entregaram suas economias aqueles que pressionam, sentem culpa ou remorso. Tudo é programado segundo o princípio do “vale tudo”, desde que se consiga a encenação de uma pseudo-cura, uma fala que agrade quem está ouvindo. O “vale tudo” neopentencostal vive a dimensão terrena, se interessa pela expansão da igreja não importa se transformada em empresas e franquias; mais importante de tudo é a prosperidade, sinal que Deus está gratificado também quem é esperto em função de uma causa divina.
      Quinta observação, apesar delas negarem, estudos apontam que há pontos em comum entre as igrejas cristãs neopentencostais e as religiões afro-brasileiras. Há, em ambas, a crença em “superstições”, “arrebatamentos”, “incorporações” de entidades e de demônios. “A pregação de boa parte do neopentencostalismo está baseada no diabo; de vez em quando Deus aparece” (CF).Ambas, há superstições presentes na venda de óleos santificados, de sal, água para combater doenças, expulsar demônios, a concessão de bênçãos por meio de imposição das mãos sobre dores, carteiras de trabalho, retratos, nomes de pessoas em pedaços de papel, etc. Não é de se estranhar que, os pastores mais capazes de “curas” e “expulsão dos demônios”, antes de se converterem na nova fé passaram pelas igrejas afro-brasileiras.
      Até mesmo a Bíblia tem sido usada não para leitura e exegese da palavra de Deus, mas como simples amuleto, um patuá contra mau olhado, encostos, presença de espíritos imundos, etc. Tal prática foi classificada por Pr. Caio Fábio como “mãe de todas as heresias”.
      É espantoso reconhecer que as igrejas “dinheiristas” conseguiram caminhar na contramão de Lutero, o “pai do protestantismo” que, nas 95 teses contra as indulgências, pregava contra o comércio de objetos sagrados, fetiches, etc. Novamente, é a “moral cínica” dirigindo o destino da instituição e de seus agentes: “eles sabem que exploram, mesmo assim continuam explorando e justificando o quanto seu gesto é moral!”. Na verdade, esse espírito da fé que poderíamos denominar de “pós-moderno”, está sintonizado com o capitalismo pós-moderno ou pós-industrial: tende a se espalhar rapidamente e a qualquer preço, a exemplo do Mc Donald’s, ora tem um discurso aparentemente sofisticado e moral, mas que esconde sua verdadeira moral cínica.
      Assim como vem caindo a credibilidade social dos políticos e governantes, receio que está em marcha no imaginário das pessoas o mesmo processo de queda da confiança nos homens de igreja que profanam o espaço do sagrado, invertendo valores e a moral. Em breve poderemos ter uma onda gigante de frustração coletiva diante das novas seitas. É possível imaginar um povo carente, sem esperança no poder político, nos serviços públicos, jovens sem perspectiva de emprego no futuro, e também esvaziados na fé e nos sonhos. Na Europa, no início do terceiro milênio, a maioria da população está descrente em “Jesus” e “Deus”, conforme reportagem da Veja (jun/2001). Não seria devido a essas contradições e desgastes dos nomes divinos que tantas vezes foram invocados e usados em vão?
      Não nos esqueçamos de São Lucas, sobre os vendilhões do templo. Precisamos ir para além de ouvir, escutar; para além de ver, enxergar. Para além de cegamente crer, refletir e melhorar nossas ações.


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* RAYMUNDO DE LIMA é Professor do DFE-UEM e membro da BFC-Centro de Psicanálise, de Curitiba. Publicado na REA, nº 02, julho de 2011, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/002/02ray.htm

terça-feira, 20 de março de 2012

Forte terremoto atinge Cidade do México

Folha de São Paulo
DAS AGÊNCIAS DE NOTÍCIAS

      Um terremoto de magnitude 7,4 atingiu uma área a 193 quilômetros ao leste da região mexicana de Acapulco, perto da Costa do Pacífico, segundo informações do USGS (Centro Geológico dos Estados Unidos).
      De acordo com as primeiras informações, o tremor -- que durou ao menos cinco minutos-- também afetou a Cidade do México.
Moradores reúnem-se na Praça Angel de la Independencia, na Cidade do México, após terremoto
Moradores reúnem-se na Praça Angel de la Independencia, na Cidade do México, após terremoto

      Milhares de pessoas correram às ruas, em pânico, e linhas telefônicas entraram em colapso. "Tenho problema de pressão, achei que fosse desmaiar", disse Rosa Maria Lopez Velazquez, 62, do lado de fora de uma loja na capital.

      Prédios e moradias foram esvaziados, e algumas construções antigas sofreram danos nos bairros mais antigos da capital.
      No Twitter, o prefeito da Cidade do México, Marcelo Ebrard, disse que o abastecimento de água e outros "serviços estratégicos" funcionam normalmente. As linhas telefônicas foram cortadas na cidade e em outras regiões afetadas pelo tremor. Não há relato imediato de vítimas na Cidade do México.
      O presidente mexicano, Felipe Calderón, também se pronunciou pelo Twitter dizendo que não há relatos imediatos de danos graves.

Pessoas correm às ruas após forte tremor na Cidade do México
Pessoas correm às ruas após forte tremor na Cidade do México

      O USGS informou que o epicentro do tremor se localizou ao sudoeste de Ometepec, no Estado de Guerrero, a 17,5 quillômetros de profundidade, e foi bastante sentido em Oaxaca.
      Segundo a rede Telemundo, ao menos duas pessoas morreram após o desabamento de um telhado em Iguala, perto da região do epicentro. Um motorista e duas mulheres também teriam se ferido após o terremoto, quando trafegavam por uma rodovia entre Acapulco e Cidade do México.
      A agência Associated Press, que cita Humberto Calvo --subsecretário da Defesa Civil da cidade de Guerrero-- informou que uma terceira pessoa morreu na pequena cidade de Ixcateopan.


Pela Lei de Trânsito, Thor Batista não poderia dirigir

POR Mahomed Saigg, Jornal O Dia

      Rio - Envolvido em acidente na BR-040 sábado à noite, quando atropelou e matou o ajudante de caminhão Wanderson Pereira dos Santos, 30 anos, o filho mais velho do empresário Eike Batista, Thor Fuhrken Batista, 20, não deveria estar dirigindo. Com 44 pontos registrados em seu prontuário no Detran-RJ — acumulados entre 10 de dezembro de 2010 e 22 de outubro de 2011 —, ele já havia superado o limite de 20 pontos para perder a carteira estabelecido pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB), como O DIA antecipou nesta segunda-feira.
      Neste período, Thor foi flagrado cometendo nove infrações de trânsito, sete por excesso de velocidade. Outras duas, por avanço de sinal e por parar sobre a faixa de pedestres. Numa delas, o filho do homem mais rico do Brasil foi flagrado a mais de 105 km/h na Av. Borges de Medeiros, na Lagoa. A infração foi cometida na madrugada de 25 de setembro de 2011, na via cuja velocidade máxima permitida é de 70 km/h.

Foto: Uanderson Fernandes / Agência O Dia
Maria Vicentina Pereira, mãe de criação de Wanderson, volta ao local em que o filho foi atropelado

Foto: Uanderson Fernandes / Agência O Dia

      Em dezembro de 2010, Thor foi multado duas vezes no mesmo dia: punido às 3h13 de 10 de dezembro de 2010 por “transitar em velocidade superior à máxima permitida em 20%” no Aterro do Flamengo, ele voltou a ser multado pelo mesmo motivo às 12h25 na Rua Jardim Botânico. Especialista em legislação de trânsito, o advogado Flávio Horta explica que a punição prevista no Código de Trânsito considera só pontos acumulados no período de 12 meses. “O Detran tem cinco anos para instaurar processo de suspensão da habilitação”. No site do Detran não há informação sobre processo contra Thor: o órgão não explicou porque.
      A assessoria de Thor disse que o jovem não sabia dos pontos e que nada tem a ver com o acidente. Ontem, Thor criou perfil no Twitter, onde relatou o atropelamento. “Durante todo o trajeto, a velocidade do veiculo SLR Mclaren permaneceu dentro dos limites da lei (...). Estava consciente que frequentemente ciclistas atravessam a faixa dupla da autoestrada”. Ele afirmou que “vinha na faixa esquerda com muito cuidado” e voltou a dizer que Wanderson atravessou a rodovia. “Ele empurrava a bicicleta com o pé esquerdo no chão”.

Família nega que ciclista foi atingido ao cruzar a pista

      A dor pela perda do companheiro com quem vivia há mais de cinco anos fez com que Cristina dos Santos Gonçalves, 49, se emocionasse, ontem, ao retornar ao local onde Wanderson foi atropelado. Ela se revoltou com a hipótese de que ele pudesse estar embriagado. O advogado de Thor quer pedir exame no corpo da vítima. Até agora, ela não teve coragem de voltar para casa.
      “Estou com um vazio tão grande que só consigo pensar em Justiça”, disse Cristina. Segundo a auxiliar de cozinha, o ajudante de caminhão assistia à TV em casa quando, pouco depois das 18h, saiu para comprar ingredientes para fazer um pudim e um bolo para comemorar o aniversário da mulher, que havia sido na sexta-feira.
      A tia e mãe de criação da vítima, Maria Vicentina Pereira, não crê que ele cruzava a via quando foi atropelado. “Ele foi atingido de frente e não tentando a atravessar a pista. Tanto que o mercado ficava no mesmo lado onde o carro o atropelou”, completou. Os advogados dos familiares irão se reunir em breve com o de Thor para debater futuras indenizações.

Polícia busca testemunha e reconstitui trajeto da vítima

      Policiais da 61ª DP (Xerém) tentam localizar testemunhas do atropelamento, sábado à noite, na rodovia Washington Luis. Os investigadores esperam que algum morador ou motorista tenha presenciado o acidente, podendo apontar a velocidade do carro. Conforme as investigações iniciais, o corpo da vítima foi arrastado por 40 metros.
      A polícia vai também reconstituir o percurso do ciclista. Desta forma, seria possível saber se Wanderson precisaria atravessar a rodovia para chegar em casa. Estudante que mora na região será ouvido. Ele não presenciou o atropelamento, mas correu para o local após ouvir o barulho do impacto.

Multas de Thor

      Das nove multas, sete são por excesso de velocidade, e somam ao todo R$ 1.447,19. Em sete, já não cabe mais recurso. Confira as mais graves:
      Em 25/09/11, Thor ultrapassou em mais de 50% a velocidade permitida na Av. Borges de Medeiros, na Lagoa. Valor: R$ 574,62, 7 pontos, infração gravíssima. Em 12/12/2010, já fora multado no mesmo ponto por trafegar com velocidade 20% acima do limite
      Em 12/04/2011, ele avançou o sinal na Av. Rodrigo Otávio.
      Em 11/06/2011, na Av. das Américas, ele excedeu em mais de 20% o limite de velocidade. No dia 21 de maio, cometeu a mesma infração no mesmo local.

Respostas na Internet

      O filho de Eike Batista, Thor Batista, criou na noite desta segunda-feira um Twitter para, segundo ele, porque "a família da vítima merece esclarecimentos autênticos e votos de apoio". Na página, o rapaz afirma que "descia a BR-040 apos um almoço com amigos, coisa que faço uma vez por mês no restaurante Clube do Filet, em Itaipava. Durante todo o trajeto, a velocidade do veículo SLR Mclaren permaneceu dentro dos limites da lei", escreveu Thor. Leia os tuítes do  filho de Eike na íntegra.

O filho de Eike Batista, Thor, criou um perfil na rede social para falar com internautas | Foto: Reprodução Internet
O filho de Eike Batista, Thor, criou um perfil na rede social para falar com internautas

Foto: Reprodução Internet

      Eike Batista respondeu durante todo o dia a uma série de mensagens em seu Twitter sobre o caso. A maioria das postagens direcionadas ao bilionário é de apoio, no entanto, muitos manifestam seu medo de que a Justiça não seja feita por causa do - enorme - patrimônio da família. "Ele (Thor) foi exemplar! E graças a Deus não bebe! (...) Nessa hora, os invejosos espalham sua raiva! Como só tenho marchas para frente, os cães ladram e a caravana passa", afirmou, em resposta a usuários do microblog.
      Entre todas as críticas recebidas, a do usuário Roberto Silva (@rrbetosilva) parece ter afetado mais o humor de Eike. Roberto afirmou: "Você começou a vida bem, construindo coisas, seu filho começou a vida destruindo...". Ao responder esta afirmação, o empresário foi enfático: "Errado! A imprudência não foi dele! Pode acontecer com você!".
      Thor Batista se envolveu em um acidente no sábado à noite, por volta das 19h20, no km 101 da BR-040, que liga o Rio de Janeiro a Juiz de Fora (MG), nas proximidades do distrito de Xerém, Duque de Caxias, Baixada. O ciclista Wanderson, que cruzava a pista, foi atingido pelo veículo guiado pro Thor e morreu na hora.
      "A imprudência do ciclista podia ter causado três mortes", relatou Eike, em outra mensagem no Twitter. O bilionário ainda rebateu a acusação de uma internauta que afirmou que o veículo havia sido retirado do local do acidente antes da perícia. "Não é verdade, a perícia já foi feita! Só por isso que o carro foi liberado e está à disposicao da Justica".
      Eike Batista já havia usado a rede social para defender o filho neste domingo à noite. "Infelizmente aconteceu um acidente fatal. Porem a imprudencia nao foi do Thor”, afirmou o empresário através de sua página no microblog. "Minha solidariedade a familia e meu compromisso de que toda a assistência necessaria sera prestada", escreveu.

Carros de luxo e 40 pontos na carteira

      Primogênito de Eike Batista, sétimo homem mais rico do mundo, Thor Batista coleciona carros de luxo e 40 pontos na carteira, após ser multado nove vezes, segundo o site do Detran. Ele ainda responde por duas infrações, que podem lhe render ainda mais 11 pontos, caso perca o recurso. Uma da multas foi aplicada quando ele dirigia um carro do pai.
      Herdeiro de R$ 54 bilhões, ele tem também na garagem um Aston Martin DBS, comprado por R$ 1,3 milhão. Horas antes do acidente, Thor e mais 14 amigos estiveram no restaurante Clube do Filé, em Itaipava. De acordo com um funcionário, Thor chegou por volta das 17h e saiu às 18h30, acompanhado de um amigo. Enquanto esteve no bar, ele só bebeu suco de laranja e chá gelado. Foi Thor quem pagou a conta de aproximadamente R$ 700 para todos.
Carro ficou com o vidro quebrado após acidente | Foto: Reprodução Internet
Colisão destruiu o capô e o pára-brisa da Mercedes Benz McLaren: este modelo, zero km, é avaliado em cerca de R$ 1,5 milhão

Foto: Reprodução Internet

      Em nota, a EBX, empresa de Eike Batista, informou que Thor lamenta profundamente o ocorrido e prestará toda a assistência à família. A nota esclarece ainda que Thor estava na velocidade permitida.
Acidente

      Thor terá de prestar depoimento quarta-feira, às 15h, na 61ª DP (Xerém). O jovem vai responder por homicídio culposo (quando não há a intenção de matar) pelo atropelamento do ajudante de caminhão Wanderson. Thor dirigia um Mercedes Benz McLaren prata, placa EIK-0063, registrada em nome do pai. Segundo relatou à Polícia Rodoviária Federal, a vítima cruzou a pista no momento em que passava. Wanderson morreu na hora.
      Na versão de moradores do local que dizem ter testemunhado a tragédia, Thor teria tentado cortar um ônibus quando perdeu o controle do veículo e atingiu Wanderson, que trafegava de bicicleta pelo acostamento. Uma unidade médica da Concer, companhia que administra a via, foi chamada por Thor.
      Thor teria passado mal e largado o carro ao ver o rosto de Wanderson desfigurado. O filho de Eike seguiu de carona com seguranças, que faziam sua escolta, até o posto mais próximo da PRF, a cerca de três quilômetros do local. Lá, fez relato por escrito do acidente. Ele e o amigo passaram por teste de bafômetro, que constatou que os jovens não estavam alcoolizados.
      Entre os parentes da vítima, o clima era de consternação. Uma tia que era a mãe de criação dele, Maria Vicentina Pereira, 48, afirmou que aquele era o caminho que o rapaz fazia diariamente para casa. “Ele fazia esse caminho desde criança e sempre andava pelo acostamento. Não acredito que tenha cruzado a pista ali. O local é perigoso". Para ela, pelo estado do corpo, existe a possibilidade de que Thor estivesse dirigindo em alta velocidade.
      Peritos do Instituto de Criminalística Carlos Éboli examinaram o local. O McLaren de Thor chegou a ser recolhido para um pátio da PRF, mas foi levado pelo advogado do jovem, Flávio Godinho, sob condição de deixar o veículo sem modificações e à disposição da polícia.
      Advogado da família da vítima, Cleber Carvalho contestou o fato de Thor não ter sido levado para a delegacia. “Nunca vi o Estado funcionar tão bem. Em menos de duas horas, a perícia foi feita, e o corpo recolhido e liberado. Mas o Registro de Ocorrência (RO) está incompleto”, criticou Carvalho.

Vítima teve vida dramática, relata mãe de criação

      O enterro de Wanderson Pereira foi realizado, na tarde do último domingo, no Cemitério de Xerém. Cerca de 80 pessoas prestaram a última homenagem ao ajudante de caminhão. Um tio, de 70 anos, que tem problemas mentais e recebia cuidados de Bê, como a vítima era carinhosamente chamada pela família, passou mal e foi medicado.



Foto: Severino Silva / Agência O Dia
Parentes e amigos acompanham o cortejo, em Xerém: vítima foi abandonada pela mãe aos oito anos

Foto: Severino Silva / Agência O Dia

      O funeral custou R$ 8 mil, pago pela empresa EBX, de Eike Batista. Porém, segundo familiares da vítima, o valor teria sido contestado por representante do empresário no IML. “Escolhi uma urna de R$ 7 mil, e ele disse que era cara. Então, decidimos pagar nós mesmos, e ele mudou de ideia”, revelou Maria Vicentina Pereira, 48, tia de Wanderson, que foi quem o criou.
      Segundo ela, o valor restante (R$ 1 mil), foi para a reconstrução da face. Maria afirmou que o sobrinho era uma pessoa trabalhadora, alegre e que passou pro muitas dificuldades. “A mãe e o pai eram alcoólatras. Ela o abandonou com oito anos, e ele o batia com frequência. Eu que cuidava dele. Parte de mim morreu com ele”.
      Tia do ajudante de caminhão, Célia Pereira foi a última da família a encontrar com ele. “Na manhã de sábado, ele foi na minha casa, falou do trabalho e comemorou que ia na loteria pagar umas continhas. Depois falou: ‘Vou embora’. E realmente foi”, lembra. Ela garante que uma possível indenização paga pelo bilionário não a interessa: “Queria ele vivo, só isso”. Em nota, a empresa EBX, de Eike, nega polêmica na hora de arcar com custo do enterro.



domingo, 18 de março de 2012

Reflexão sobre a morte

Antonio Ozai
Fonte: http://antoniozai.wordpress.com/

Em memória do companheiro Virgilio de Almeida

      Vivemos como se fossemos eternos. Ilusão que alimentamos das mais diversas maneiras: desde a recusa, consciente ou inconsciente, de pensar na morte à crença religiosa na ressurreição, no arrebatamento, etc. O interessante é que mesmo os crentes mais fervorosos não querem morrer. Claro, há os suicidas que se imaginam mártires a serem recompensados no além. De qualquer forma, exceto os fanáticos que encontram autojustificava para se matarem e ceifarem a vida dos demais, e os suicidas em geral, o ser humano parece temer a morte. E, paradoxalmente, ele é o único animal que tem consciência da finitude.
      Vivemos o cotidiano e a vida parece em ordem, receamos o caos. No fundo, tudo o que queremos é que os dias se sucedam como sempre. Sentimo-nos seguros com o reproduzir do dia-a-dia. Agimos no presente, realizamos atividades, nos relacionamos com as pessoas com a certeza de que as veremos amanhã e que elas nos verão. Fazemos projetos, cultivamos utopias e até sonhamos que um outro mundo é possível. Os dias parecem reproduzir-se na ordem natural das coisas e do viver. Lemos, ouvimos e vemos notícias sobre mortes, mas tudo parece muito distante de nós. Se pararmos para pensar, perceberemos o quão frágil é a sensação de estarmos seguro, de que o amanhã naturalmente nos pertence. Então, nos recusamos a refletir e afastamos de nós qualquer pensamento que tumultue, nos apegamos ao agora como se fosse eterno.
      Há dias que parecem ser apenas mais um dia na vida. O viver não apresenta surpresas que desequilibrem e, apesar de tudo, nos imaginamos no controle. Mas eis que a morte se aproxima e nem a percebemos. Seu abraço mortal se propaga e a sentimos tão presente que desfalecemos. A sensação de impotência diante do destino manifesto toma conta do ser, torna-se cada vez mais nítido o quanto frágil somos. Eis que tudo parece sem sentido, pois de que adiantam preocupações, projetos e esperanças, se não escaparemos da sua sentença? Se partirmos, e partiremos, o que fica? Qual é o nosso legado? Mas por que se preocupar se estaremos mortos?
      A morte nos faz pensar sobre nós mesmos, os que conhecemos e o ser humano em geral. Ela nos ensina e mostra o quanto é risível a arrogância humana! Será que o arrogante percebe o ridículo da sua atitude? Talvez seja uma forma de mascarar os medos mais profundos que habitam a mente e a alma. Talvez a prepotência seja a expressão da insegurança psíquica e uma maneira do indivíduo sentir-se ou parecer seguro. A mente humana oculta mistérios indecifráveis! Não obstante, nem mesmo o humano mais poderoso está isento dos sofrimentos da alma. A face decrépita do poder não tarda a se mostrar e a morte espreita.
      O paradoxo do viver não é a morte, o morrer. Talvez seja mais sensato encará-la como natural e preparar-se da melhor forma para recebê-la. A sabedoria, como ensina Montaigne, está em aprender a não ter medo de morrer. Meditar sobre a morte, aprender a conviver e aceitá-la é parte do aprendizado de viver bem.[1] O que é paradoxal não é a morte em si – até porque ao morremos cessam todos os dilemas – mas o fato de que, quanto mais vivemos mais a morte se apresenta a nós na forma de sofrimento e pesar pela partida dos que amamos, temos laços de amizade e admiração. Sim, porque a longevidade é testemunha do viver e do morrer.
      A natureza nos prega peças trágicas. Imaginamos que os filhos devem enterrar os pais – assim deveria ser o ciclo da vida. Já testemunhei situação em que o pai velava o filho adolescente e nunca esqueci seu abraço trêmulo de emoção. Não há palavras que expressem tamanha dor. Há mortes que não compreendemos, que são inaceitáveis. Há situações em que os vivos gostariam de estar no lugar dos mortos.
      Há dias em que a morte nos surpreende e nos recusamos a acreditar na realidade. Fica a tristeza, a saudade e a certeza de que compartilhamos o mesmo destino. Talvez Montaigne esteja certo e o maior desafio da vida seja aprender a aceitar a morte! Contudo, se concluirmos pela razão, sabemos pelo sentir o quanto é difícil aceitá-la.

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[1] Ver “Que filosofar é aprender a morrer”, in MONTAIGNE. Os Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.59-83.

Os intelectuais e a cibercultura: além de apocalípticos e integrados

MARIA ALZIRA BRUM LEMOS*, JOÃO BAPTISTA WINCK** & HERNANI DIMANTAS****
Fonte: http://espacoacademico.wordpress.com/

      Nossos leitores não serão, em sua maioria, do tempo em que se discutia exaustivamente à luz dos escritos de Antonio Gramsci e, posteriormente, das contribuições dos intelectuais que participaram dos movimentos sociais e estudantis na década de 1960 “o papel do intelectual na sociedade”. O tema é espinhoso e não fugiremos a analisá-lo mais detalhada e profundamente em outro momento. Assumindo o risco da superficialidade e da generalidade, vamos refletir aqui sobre alguns dos problemas – sobretudo contradições – que permeiam, no contemporâneo, as relações entre os intelectuais e a cibercultura.
      Muito já foi dito sobre as mudanças que os meios digitais de comunicação e informação têm provocado na produção e circulação de mercadorias, idéias e conhecimento. Tampouco é novidade que tais mudanças implicaram o surgimento de um novo padrão comunicativo e de produção ou uma nova cultura, com abrangência mundial: a cibercultura. Mas ainda há muito por discutir sobre estes temas, que envolvem fenômenos recentes, sobretudo no que diz respeito à relação da cibercultura com as culturas tradicionais e com as culturas do mercado, de massas e das instituições – Estado nacional, democracia, burocracia, universidades etc. –, das quais dependem, em boa parte, as políticas de gestão e organização das sociedades.
      A Internet, ao possibilitar o acesso à troca e à divulgação de idéias, permitiu e/ou facilitou, mais que a expressão, a organização de diversos setores em torno de interesses, reivindicações e ações políticas. Entre muitos exemplos, podemos citar o caso das manifestações contra a Guerra no Iraque, divulgadas e motivadas por grupos e pessoas por meio da Internet. Diferentemente do que ocorreu em episódios similares – como, por exemplo, nos eventos de 1968 –, a direção do movimento não está centralizada em partidos, sindicatos e organizações tradicionais. Grupos de cidadãos se organizam livremente, ganham adeptos e difundem mensagens pela Rede. Este dado é importantíssimo. Pela primeira vez na história ocorre um processo de gestão descentralizada de um movimento político de caráter mundial.
      A Internet mudou, também, os modos produção e gestão política do conhecimento, descentralizando estes processos. Graças a ela, já não dependemos apenas da boa vontade do mercado, da burocracia, dos grandes meios de comunicação de massa, da indústria editorial, do marketing, das “modas” impostas pelos supostos “centros” de produção acadêmica – Europa e EUA – e dos grupos de poder intelectual para produzir e divulgar idéias, nem, mais do que isto, discuti-las e reelaborá-las junto a um grande número de pessoas em todo o mundo. Esta mudança tem conseqüências não apenas nos modos como se realiza o trabalho intelectual, como também no lugar ocupado pelos intelectuais na sociedade.
      Os chamados intelectuais – e aqui o termo abrange todos que se dedicam à pesquisa nas áreas de humanidades, à crítica e ao trabalho intelectual, sobretudo nas universidades e/ou centros de pesquisa, com participação no mercado de comunicação e cultura – incluem-se entre as parcelas privilegiadas de cidadãos que têm acesso à Internet não apenas como instrumento de trabalho, mas também como meio de comunicação e interação. Apesar disto, persiste ainda um imenso abismo entre estes e a cibercultura enquanto ambiente no qual as pessoas produzem, circulam, conversam e vivem. O abismo é maior se pensarmos na distância entre os intelectuais e os setores que controlam a tecnologia e as redes físicas – grandes corporações capitalistas – ou detêm os conhecimentos das técnicas e tecnologias – pesquisadores e profissionais cujos conhecimentos, em geral, não abrangem as humanidades.
      Se é fato que uma saudável conversação se estabelece na Internet entre blogueiros, gente que lida com a tecnologia, webjornalistas etc., gerando conhecimento multidisciplinar e colaborativo [1] e configurando grupos de intervenção política, também é fato que os intelectuais, em geral, não participam, ou participam pouco, desta conversação. Sua produção se concentra em outras instituições, que remontam às origens da Modernidade e cujas relações com a cibercultura – quando existem não são exatamente interativas e/ou colaborativas. Entre os principais motivos do distanciamento estão a diferença entre os modos de produção e circulação de conhecimento das instituições tradicionais e os da Internet.
      A origem desta separação entre os modos de fazer das instituições científicas e acadêmicas e a cultura da arte, das ruas, do povo remonta aos séculos XVI-XVII, que marcam o nascimento da Modernidade, espaço-tempo definido pelo modo científico de pensamento e conhecimento e pela expansão dos meios de translação e comunicação. A Modernidade gerou duas tradições intelectuais opostas, em princípio, no que diz respeito ao conhecimento das sociedades e das culturas.
      A primeira é a perspectiva filosófica e científica entendida como verdadeira e universal, que vê nas sociedades e nas culturas “objetos” de estudos. A aliança entre o saber e o poder consolidou um modelo em que o intelectual aparece como porta-voz de uma “verdade” inquestionável e universalmente válida e que colocou a Europa no “centro” do mundo. A expansão da modernidade não se deu apenas pela dominação econômica, militar e política das demais formas de pensamento e produção. Consolidou-se também graças a uma dominação cultural, que se deu, sobretudo, por meio das instituições científicas, culturais e educacionais. A ciência e a cultura européias difundiram-se enquanto signos de uma cultura supostamente mais elevada, superior e verdadeira, abarcando as demais e constituindo-se como padrão comunicativo.
      A segunda é a tradição intelectual que correu por muito tempo fora dos parâmetros da ciência. Tratar-se-ia, antes, de um padrão “literário” ou “artístico” de aproximação às realidades humanas. Shakespeare, o Lazarilho, o Barroco, os autores latino-americanos – para ficar no âmbito Europa-América, rota de origem da Modernidade – conformam um padrão de intelectual-narrrador imerso na cultura e em suas contradições.
      Por muito tempo estas duas tradições andaram separadas. Esta separação só foi quebrada, pioneiramente por autores como os brasileiros Euclides da Cunha e Gilberto Freyre, que trazem para o campo das Humanidades as formas de conhecer e descrever da ficção. Suas obras, de alguma forma, refletem um modelo de intelectual marcado pela contradição, pela narração poética e pela imersão apaixonada nas culturas e nos fenômenos que analisam. Mais recentemente, vários pensadores têm adotado perspectivas semelhantes na crítica aos princípios das Ciências Humanas formulados na segunda metade do século XIX.
      Os princípios das Ciências Humanas foram baseados num enfoque ao mesmo tempo progressista, moralista, normativo e elitista. Disciplinas como psicologia, antropologia e sociologia teriam entre suas atribuições o olhar científico e crítico sobre a mente, as culturas e as sociedades visando à elaboração de políticas institucionais que, em tese, permitiriam o progresso daquelas. O caráter “científico” – e supostamente universal – destes saberes coloca os que os detêm na situação de elite. Comprometido com idéias “progressistas” alicerçadas no saber “universal e superior” da cultura e da ciência européias, o intelectual se constitui, assim, como “vanguarda” da sociedade.
      Este enfoque, gerado no interior das teorias positivistas, não foi estranho aos grupos marxistas. Socialistas, como por exemplo o escritor H. G. Wells, o adotaram. Tampouco foi exclusividade dos intelectuais europeus. Nossos nacionalistas republicanos, com o aval dos intelectuais pioneiros das Ciências Humanas no Brasil, não apenas o adotaram como o utilizaram para justificar políticas repressivas. O caso célebre da Guerra dos Canudos, narrado por Euclides da Cunha em Os Sertões, é um dos muitos exemplos. [2] As culturas exteriores ao contexto europeu moderno e os saberes não institucionais foram considerados inferiores, “não racionais”: no máximo, objetos de estudo. Por isto tal enfoque é, também e sobretudo, elitista.
      Ao longo do século XX, a reformulação dos princípios das ciências da natureza e da vida – por exemplo, e notadamente, a partir da teoria da mecânica quântica, que insere a contingência como dado de “realidade” nos processos físicos, e das descobertas nos campos da biologia e da evolução, que consideram a informação como elemento fundamental da vida na Terra –, a expansão dos meios de comunicação de massa, a proliferação das forças destrutivas, a crítica aos princípios das Ciências Humanas, entre outros fenômenos e eventos, contribuíram para uma rediscussão ampla sobre os paradigmas da ciência e da cultura européias.
      Não vamos abordar aqui, obviamente, o conjunto destes fenômenos, eventos e teorias. Vamos nos deter nas relações entre os intelectuais e os meios de comunicação de massa, as quais, imaginamos, devem ser um ponto fundamental para entender a posição dos intelectuais com relação à cibercultura.
      O enfoque das Ciências Humanas – embutindo um pensamento eurocêntrico, moralista e normativo junto com o compromisso com um projeto progressista –, apesar de criticado, vai permanecer vigente na relação entre os intelectuais e o fenômeno dos meios de comunicação de massa ao longo do século XX, mesmo dentro do campo próprio de saberes, teorias e disciplinas da Comunicação. Para ficarmos em dois, e significativos, exemplos dos princípios destes saberes e disciplinas, citemos a Mass Communication Research e a Teoria da Indústria Cultural, que ainda ecoam fortemente na formação, na pesquisa e nas atividades dos comunicadores sociais, bem como nas análises teóricas sobre os meios e os processos de comunicação.
      Herdeira direta das teorias psicológicas em voga no início do século XX – Psicologia das Massas, Behaviorismo e as teorias de Pavlov sobre reflexo condicionado – e da estreita associação entre ciência, moral e a política que lhes servia de base, a Mass Communication Research buscou entender, durante os anos 1930 nos EUA, os mecanismos de convencimento das massas por meio da propaganda, das pesquisas de opinião e dos métodos de persuasão. O objetivo era político, e as técnicas pesquisadas de formação de opinião pública foram amplamente utilizadas, por exemplo, pelos governos dos EUA. Esta linha de estudos também serve diretamente à elaboração de ferramentas “eficientes” para a publicidade. Os meios de comunicação de massa, de fato, devem muito aos conceitos elaborados no âmbito desta teoria: por exemplo, a idéia de “massa” enquanto uma multidão moldável pelas mensagens e pela propaganda. Esta abordagem foi utilizada pelo nazismo – com o rádio e o cinema sendo adotados como instrumentos de propaganda política – e pela publicidade. Ainda hoje – e a propaganda política é um exemplo, infelizmente – esta perspectiva segue vigente.
      A segunda teoria à qual nos referimos remete ao termo cunhado por Adorno e Horkheimer nos anos 1940: Indústria Cultural. Trata-se da análise, pelo viés marxista, da produção industrial dos bens culturais como movimento global de produção da cultura como mercadoria. Esta situação não é considerada resultado da evolução da tecnologia enquanto tal, mas de sua função na sociedade atual. “Em nossos dias, a racionalidade técnica é a racionalidade da dominação propriamente dita. O terreno em que a técnica adquire seu poder sobre a sociedade é o terreno dos que a dominam economicamente”. [3]
      Antes de comentar o peso e as conseqüências destas teorias, sobretudo da segunda, entre os intelectuais contemporâneos, vamos abrir um parênteses. A linha inaugurada por Adorno e Horkheimer – Escola de Frankfurt – motivou importantes contribuições, entre as quais cabe citar a de Walter Benjamin, por sua originalidade e diferença com relação às idéias de Adorno-Horkheimer. Benjamin, muito mais próximo de um modo híbrido de conhecimento e explicação da realidade, avançou no sentido de considerar obsoleto o conceito de obra de arte “única” ou “aurática”, ao definir o cinema como uma arte cuja única razão de ser é a reprodução técnica.
      Fechemos parênteses e voltemos ao tema que motiva esta reflexão. O conceito de Indústria Cultural dá conta de explicar aspectos importantes da relação entre arte e cultura, economia e cultura, mas não apenas é insuficiente para explicar as conseqüências da expansão dos meios de comunicação de massa como adota um conceito segundo o qual arte e cultura “elevadas” seriam a arte e a cultura européias. Ao opor o que seria a arte e a cultura “verdadeiras” àquilo que é veiculado pela mídia, os teóricos da Indústria Cultural acabam por adotar uma posição eurocentrista e um conceito de arte e cultura, no mínimo, limitado. [4]
      Um dos motivos pelos quais o conceito de Indústria Cultural é insuficiente para explicar as complexidades envolvidas nas relações entre cultura e comunicação no último século é que, para além da noção restrita de que a economia capitalista determina a reprodução técnica de uma cultura “vulgar”, haveria que repensar os conceitos de economia e cultura. Tanto quanto a cultura científica, a chamada cultura de massas se constitui enquanto um padrão comunicativo. Ambas configuram culturas mundializadas, ambas abarcam contribuições das culturas populares e de outros saberes e práticas, os quais digerem e reprocessam. Mas, enquanto a cultura das mídias institui um padrão “democrático” – todos nós, em princípio, podemos acessar os códigos que nos incluem nesta cultura –, a cultura científica demarca o terreno da elite. O acordo tácito que mantém os intelectuais à margem das linguagens, dos meios e dos processos da comunicação – como narradores, críticos, divulgadores e jamais como operadores – permite, mais que a continuidade de um modelo centralizado de produção e controle do conhecimento, um modelo retórico e institucional que “autoriza” uma desigualdade baseada no tipo de cultura e/ou conhecimento e, portanto, a continuidade do lugar dos intelectuais enquanto elite.
      A emergência dos meios digitais de comunicação e informação agregou novidades no que diz respeito aos processos de produção e circulação de mercadorias materiais e simbólicas. Se o problema do modo de produção industrial e sua relação com as culturas já era complexo, entender o surgimento, desde dentro do capitalismo, do que será um novo modo de produção baseado no paradigma da comunicação-informação, e repensar, à luz deste novo modelo, as questões da cultura e do conhecimento requerem um esforço que vai além do conceitual. Falamos aqui de métodos, procedimentos, afetos, paixões e práticas culturais.
      Em que pese a tão falada exclusão digital – já a abordamos em outros artigos [5] e por isto deixamos este aspecto por ora em suspenso, lembrando apenas que não advogamos o conceito de superação (talvez devêssemos ler Marx com mais cuidado) –, a cultura que se cria com as práticas sociais nos meios digitais, a cibercultura, caracteriza-se pela descentralização da produção material e simbólica, bem como dos processos de comunicação e informação. Insistimos em dizer que a democratização, que significa acesso “da maioria” ao meio, é um conceito insuficiente quando falamos de meios digitais e cultura contemporânea. A democracia – como observou Robert Kurz [6] – é o projeto da cultura de massas, e muito de totalitário aí se oculta. Optamos pelo termo descentralização, por entender que é a descentralização da produção do conhecimento e dos focos “emissores”, por assim dizer, de mensagens que caracteriza as práticas da cibercultura – e, antes dela, as das culturas populares – o que pode permitir o rompimento das estruturas burocráticas e autoritárias vigentes nas nossas “melhores” democracias.
      A cibercultura, resultado da hibridização entre os avanços da ciência e os métodos, práticas e procedimentos das culturas populares, parece apontar para um reencontro – real e “prático” – entre as duas tradições da Modernidade que por longo tempo se mantiveram separadas, salvo em situações ou contextos considerados “periféricos” ou no âmbito do discurso e/ou da crítica.
      A interação e a produção descentralizada do conhecimento, características da cibercultura, fazem com que se embaralhem os centros e as periferias, uma vez que o conhecimento não está em nenhum lugar – instituição, pessoa –, mas numa Rede; não está pronto para ser consumido e/ou assimilado, mas em construção. Por fim, a autoridade na Rede não está dada pela condição intelectual ou de classe de cada um, nem por sua posição social enquanto pesquisador ou professor numa estrutura hierárquica determinada, como um centro de pesquisa ou uma universidade. Não há um rito de passagem ou de autorização para o “lado de lá”, o da verdade-autoridade, lugar fechado que Cristovam Buarque tão bem definiu no artigo “Os Círculos dos Intelectuais”. [7]
      Na cibercultura, poder, autoridade e verdade mudam de lugar; podem ser momentaneamente construídos e/ou conquistados por meio de métodos, estratégias e práticas experimentais. A inserção na cultura – e na cibercultura – obriga ao pensamento original, aquele do erro, da hibridização e da incerteza. Por fim, a configuração do conhecimento na interação exige não apenas um ethos, mas também um pathos, a recuperação dos paradigmas da colaboração, da afetividade e do mergulho na complexidade.
      Daí que também perde sentido a noção de vanguarda, tão arraigada quanto identificada ao elitismo. Embora ainda sobreviva – como, de resto, tudo o que é moderno, assim como os signos da cultura de massas –, esta noção, que dá a um grupo de pequeno-burgueses cultos ou supostamente cultos a certeza de verdade, autoridade e “superioridade” cultural e estética, dificilmente resistirá no caldo híbrido da cibercultura a partir do momento em que outros signos, poderes e grupos circularem em maior número pela Rede. Imaginamos que desta interação possam sair novas formas de definição de subjetividades, aquém e além do ego – e eurocêntrica noção de sujeito moderno.
      A cibercultura recupera e reaviva a tradição de Shakespeare, do Lazarilho, de Gilberto Freyre. Renova uma perspectiva que já se fazia presente, por exemplo, numa certa linha intelectual latino-americana que viu na circulação, nos trânsitos, nas passagens, nos cruzamentos, nos híbridos, formas válidas e vivas de conhecimento.
      Em vez da figura “científica”, “objetiva” e “crítica” do intelectual reproduzido em série no interior de instituições e círculos fechados, uma figura que raramente se mistura, a cibercultura poderá produzir – desde que os professores doutores abandonem tanto sua pretensão elitista à verdade quanto o ego colonizado, em prol de uma intelectualidade amorosamente inserida na cultura – intelectuais capazes de atuar na construção do projeto político de uma sociedade mais justa e colaborativa.
      Interatividade é exposição. Ao expor-se na cibercultura, os intelectuais perdem seu lugar no mercado e na ordem estabelecidos. E é exatamente isto, a mudança de lugar e as inversões, que os intelectuais temem. Medo semelhante os teria levado a abandonar, ao longo do século XX, os meios de comunicação de massa nas mãos dos “capitalistas”, dos “amadores” e da “gente do espetáculo e da imprensa”. Nem sequer houve, muitas vezes, um esforço para gerar políticas, métodos e práticas para os meios audiovisuais. Muitos intelectuais contentaram-se em criticar a “indústria cultural” quando seus próprios corações estavam sendo irremediavelmente invadidos. Sem nenhum pudor, no entanto, serviram-se da mesma indústria para manter sua condição de elite, divulgando sua alta cultura, seus artigos e suas belas fotos em pose de professores doutores.
      Se nos tempos do domínio da comunicação de massa, como apontou Umberto Eco [8], os intelectuais só podiam ser – apocalípticos – os críticos empedernidos da comunicação de massa – ou integrados – os dispostos a aderir às novidades e a colaborar. A cibercultura exige estar além destas posturas.
      Para usar a frase que se fez moda, é hora de vencer o medo dos meios de comunicação e, sobretudo, da interação. Hora de os intelectuais assumirem, para além do discurso e da crítica, um lugar na cibercultura, na Rede, na vida e na própria cultura contemporânea. “Interação ou barbárie”, se coloca no presente. Afinal, como disse Lezama Lima, sendo ambas, vida e cultura, uma só e mesma coisa, não há por que separá-las e falar de ridículas primazias.” [9] Melhor ouvir.











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* MARIA ALZIRA BRUM LEMOS é Doutora em Comunicação e Semiótica, pesquisadora e jornalista.



** JOÃO BAPTISTA WINCK é Doutor em Comunicação e Semiótica, Mestre em Educação e pesquisador na área de mídias audiovisuais.



**** HERNANI DIMANTAS é pesquisador participante da cibercultura, e criador do projeto MARKETING HACKER.



- Nota do Editor: Texto publicado na REA, nº 33, fevereiro de 2004, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/033/33clemos.htm. Dados biográficos referem-se à época da publicação.



[1] Hernani Dimantas, um dos pioneiros nos projetos e estudos sobre a Internet no Brasil, aborda este processo em Marketing Hacker: A revolução dos Mercados. Rio de Janeiro, Garamond, 2003.



[2] Maria Alzira Brum Lemos. O Doutor e o Jagunço: ciência, cultura e mestiçagem em Os Sertões. São Paulo, Arte&Ciência, 2000.



[3] Citado por Armand e Michèle Mattelart. História das Teorias da Comunicação. Loyola, São Paulo, 1999, p. 78.



[4] Seguimos aqui o comentário dos Mattelart na obra citada sobre o viés eurocêntrico da Teoria da Indústria Cultural.



[5] Maria Alzira Brum Lemos e João Baptista Winck. “Cultura digital e políticas das imagens e dos signos”, emDemocracia Viva, 13, março-junho de 2002, pp. 62-70.



[6] http://planeta.clix.pt/obeco/rkurz3.htm



[7] Publicado em O Desafio Ético. Rio de Janeiro, Garamond, 2000, pp. 93-117.



[8] Umberto Eco. Apocalípticos e integrados. São Paulo, Perspectiva, 1976.



[9] Jose Lezama Lima. Imagen y posibilidad. La Habana, Letras Cubanas, 1992, p. 192.