quarta-feira, 7 de março de 2012

Homem-Aranha Christus

ALEXANDER MARTINS VIANNA*
Fonte: http://espacoacademico.wordpress.com/

      Ao final do ensaio postado aqui em 14 de setembro de 2011, falei que gostaria de analisar filmes norte-americanos com temática sobrenatural ou de super-heróis que buscam captar, expressar ou propor a necessidade de crer. Escolhi, como recorte temporal, trabalhar com a virada, politicamente crítica, entre o segundo governo Bush e o governo Obama (2004-2010), quando os temas da esperança, do auto-sacrifício e da eleição, em chave cultural protestante, surgem na figuração e caracterização de protagonistas (extra)ordinários.
      Considerando este propósito, gostaria de começar esta sequência temática com o filme norte-americano Homem-Aranha 2 (2004). Não gostaria aqui de ficar tecendo longa narrativa analítica sobre a dimensão verbal do filme, mas simplesmente destacar algumas ideias-chave para, em seguida, demonstrar como se manifestam em plano imagético.
      No enredo do filme, Peter Parker está dividido entre a possibilidade de ter uma vida ordinária de homem apaixonado por sua amada, Mary Jane, e a vida/missão extraordinária de servir ao bem público com seus superpoderes. Até aqui, o cliché do super-herói protestante não tem nada de original: “doar seu dom” (“cumprir o seu destino heroico público”) ou ocultá-lo, em nome da paz de uma vida doméstica suburbana ou de vilarejo – lugares-emblema de virtudes morais postos em contraponto aos centros metropolitanos.

      Este tipo de indecisão geralmente se resolve com algum evento que atinge a vida doméstica do herói, demonstrando, através de seu próprio sofrimento particular, a relevância de emprestar para o bem público a sua persona extraordinária. Esta pessoa extraordinária é geralmente conformista, pois não questiona a ordem social, as estruturas de poder e, preferencialmente, atua para evitar dano à propriedade e à pessoa, independentemente de origem social. Por outro lado, por ter poderes extraordinários, o seu limite é geralmente um autolimite, uma autocontenção advinda do autoexame da consciência, desenvolvida ou despertada por meio da socialização num núcleo de “excelência moral” localizado na classe média branca.
      Se tudo o que disse até aqui serve apenas para evidenciar que a teleologia moral do herói auto-sacrificial em Homem-Aranha 2 não tem originalidade nenhuma e segue uma tradição temática já canônica, chama-me a atenção, por outro lado, o modo como o filme associa som, imagem, figurino, caracterização e performance para enfatizar em Peter Parker a figuração de um Cristo alternativo para jovens da pop culture norte-americana. Tal figuração está presente em toda a teleologia moral do filme, mas há cenas e enquadramentos em que o apelo à imagem-canônica de Cristo fica muito evidenciado. Entre as várias possibilidades cênicas a destacar, acho muito eloquente a sequência do resgate multirracial do metrô desgovernado.
      Em sua confrontação com o ciborguizado cientista – que é destituído de consciência (autocontenção) e do senso de bem-comum quando os braços serpentóides biônicos de I.A. (um emblema prometeico de vaidade intelectual) passam a dominar o seu cerebelo/alma –, Peter Parker é ferido no tórax de tal forma que fica com marcas que alegorizam as chagas de Cristo. Os enquadramentos cênicos várias vezes conduzem nosso olhar para estas feridas.
      Além disso, quando Peter tenta segurar o metrô, a ação e o enquadramento são feitos de modo que simulam visualmente a crucifixão. O êxito que ele tem em salvar as pessoas (entre elas, uma jovem mãe com criança no colo, várias vezes enfatizada pela câmera como vínculo de empatia) é seguido pelo seu (des)falecimento. Quando parece que vai “cair da cruz”, Peter é amparado por duas mãos colocadas sobre seu peito, cujo primeiro enquadramento provoca uma sinédoque que demonstra serem as mãos de um homem negro e um homem branco, na faixa dos trinta anos.
      A “descida da cruz” é feita com uma alteração da temporalidade cênica, possibilitada pela mudança da trilha sonora e da velocidade dos eventos, o que provoca um novo pathos emocional. Assim, justamente depois da salvação, o tempo transcorre mais lento, a música convida à empatia e reflexão, enquanto Peter é “descido da cruz” e erguido sobre as cabeças por várias mãos (de diversas cores, origens, idade e gênero). Antes de ser colocado no chão, os enquadramentos (lateral e aéreo) desta cena o fazem deslizar sobre as cabeças com os braços estendidos em cruz, tal como um Cristo/Cruz em procissão. A temporalidade desta sequencia cênica é tão eficaz para criar contraste com a cena de confrontação com o “mal prometeico” que até nos esquecemos da ameaça ciborgue. Esta temporalidade sacrificial cristológica é subitamente interrompida pela entrada no vagão do cientista-ciborgue (e sua trilha sonora).

      Tal como afirmaria tia May para Peter, a necessidade de crer no exemplo sacrificial do super-herói cristológico protestante como alguém que deve inspirar o “bem/caritas cristã”, ou “despertar a semente da graça”, confirma-se na atitude das pessoas eleitas para a salvação, no metrô, independentemente de seus méritos pessoais: quando a ameaça ciborgue irrompe para levar Peter, todas as pessoas do metrô colocam-se entre o mal prometeico e seu salvador, mostrando-se dispostas a sacrificarem-se por ele. Assim, toda a função moral do ciclo exemplar da paixão de Cristo é rememorada e condensada com grande eficácia emocional no complexo verbal-imagético-sonoro-performático do filme Homem-Aranha 2.
Ficha técnica




Título original: (Spider-Man 2)

Lançamento: 2004 (EUA)

Direção: Sam Raimi

Atores: Tobey Maguire, Kirsten Dunst, James Franco, Rosemary Harris.

Duração: 127 min

Gênero: Aventura







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* ALEXANDER MARTINS VIANNA é Professor Adjunto de História Moderna – DHIST/UFRRJ; é Mestre e Doutor em História Social pelo PPGHIS-UFRJ. Site: www.martinsvianna.net Email: alexvianna1974@hotmail.com




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