segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Que tipo de Igreja tem salvação?

Jornal do Brasil
Leonardo Boff


O centro da pregação de Jesus não foi a Igreja, mas o Reino de Deus: uma utopia de total revolução/reconciliação de toda a criação. Tanto é verdade que os evangelhos, à exceção de São Mateus, nunca falam de Igreja mas sempre de Reino. Com  a rejeição da mensagem e da pessoa de Jesus, o Reino não veio, e em seu lugar surgiu a Igreja como comunidade dos que testemunham a ressurreição de Jesus e  guardam seu legado tentando vivê-lo na história. 
Desde o início se estabeleceu uma bifurcação: o grosso dos fiéis assumiu o cristianismo como caminho espiritual, em diálogo com a cultura-ambiente. E outro grupo, bem menor, aceitou assumir, sob o controle do imperador, a condução moral do império romano em franca decadência. Copiou as estruturasjurídico-políticas imperiais para a organização da comunidade de fé. Esse grupo, a hierarquia, se estruturou ao redor da categoria “poder sagrado”(sacra potestas). Foi um caminho de altíssimo risco, porque se há uma coisa que Cristo sempre rejeitou foi o poder. Para ele, o poder em suas três expressões como aparece nas tentações no deserto - o profético, o religioso e o político – quando não é serviço, mas dominação,   pertence à esfera do diabólico. Mas foi o caminho trilhado pela Igreja-instituição hierárquica sob a forma de uma monarquia absolutista que recusa a participação desse poder aos leigos, a grande maioria dos fiéis. Ela  nos chega até os dias de hoje num contexto de gravíssima crise de confiabilidade. 
Ocorre que, quando predomina o poder, se afungenta o amor. Efetivamente, o estilo de organização da Igreja hierárquica é burocrático, formal e não raro inflexível. Nela tudo se cobra, nada se esquece e nunca se perdoa. Praticamente não há espaço para a misericórdia e para uma verdadeira compreensão dos divorciados e  dos homoafetivos. A imposição do celibato aos padres, o enraizado antifeminismo, a desconfiança sobre tudo que tem a ver com sexualidade e prazer, o culto à personalidade do papa e sua pretensão de ser a única Igreja verdadeira e a “única guardiã estabelecida por Deus da eterna, universal e imutável lei natural” e assim, nas palavras de Bento XVI, “assume uma função diretiva sobre toda a humanidade”. O então cardeal Ratzinger, ainda em 2000, repetiu no documento Dominus Jesus a doutrina medieval de que “fora da Igreja não há salvação” e os de fora “correm grave risco de perdição”. 
Este tipo de Igreja, seguramente, não tem salvação. Lentamente, perde sustentabilidade em todo o mundo. Qual seria a Igreja, digna de salvação? É aquela que humildemente volta à figura do Jesus histórico, operário simples e profético, Filho encarnado, imbuído de uma missão divina de anunciar que Deus está aí com sua graça e misericórdia para todos; uma Igreja que reconhece as demais igrejas como expressões diferentes da herança sagrada de Jesus; que se abre ao diálogo com todas as demais religiões e caminhos espirituais vendo aí a ação do Espírito que chega sempre antes do missionário; que está disposta a aprender de toda sabedoria acumulada da humanidade; que renuncia a todo o poder e espetacularização da fé para que não seja mera fachada de uma vitalidade inexistente; que se apresenta como “advogada e defensora” dos oprimidos de qualquer espécie, disposta a sofrer perseguições e martírios à semelhança de seu fundador; que o papa tivesse a coragem de renunciar à pretensão de poder jurídico sobre todos e fosse sinal de referência e de unidade da proposta cristã com a missão pastoral de fortalecer a todos na fé, na esperança e no amor. 
Esta Igreja está no âmbito de nossas possibilidades. Basta imbuirmo-nos do espírito do Nazareno. Então seria, verdadeiramente, a Igreja dos humanos, de Jesus, de Deus, uma comprovação de que a utopia de Jesus,  do Reino, é verdadeira. Ela seria um espaço de realização  do Reino dos libertos para o qual todos são convocados. 
*Leonardo Boff é autor de 'Cristianismo: O mínimo do mínimo' (Vozes, 2012).

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