terça-feira, 4 de setembro de 2012

Milton Cunha: Evocação e futuro

O Dia


Rio -  Agora ele está procurando a gravação de ‘Moça’, de Wando, para possuir. Posse mesmo: ter, comprar, armazenar o arquivo, guardar preso para sempre dentro do coração, junto com as outras do ritual. Ele, na penumbra, com seu álcool preferido, ouve sem parar, para sempre, músicas que evocam um passado, que eu não sei se para ele era melhor que hoje — minha hipótese é que, naquele tempo, ele sonhava e tinha 20 anos, o futuro pela frente, e agora, aos 50, deve sonhar com o sonho que tinha e que poderia se transformar em real.
Não sei se o sonho sobrou. Só sei que 30 anos se passaram e ele os perdeu para a concretização de algum devaneio que ficou lá. Por isso, ele hoje volta perdido no túnel do tempo. São as pessoas que conhecemos e que ficam evocando coisas lá de trás. Umas, imobilizadas, cultuam o ido. Outras, curtem o breve passeiozinho e voltam. Me lembro de uma vizinha que sábado pegava a enceradeira e deixava a sala lustrando, ouvindo na vitrola sempre o mesmo LP de Martinho, da década passada. Trabalho feito, desligava a vitrola e voltava para curtir o resto do fim de semana. Sua evocação do sonho tinha dia e hora marcada.
Um outro, sempre que pode, volta aos desfiles antigos da Marques de Sapucaí: põe o fone no ouvido e fica cantando os sambas daqueles anos. Canta a pulmões abertos, volta à arquibancada de concreto e descreve em frases curtas como estava, o que fazia, qual o sanduíche que comera, etc e tal. São relâmpagos de prazer absoluto. Sabe que hoje a vida é melhor, só passeia na memória para dizer: éramos pobre, e muito felizes. Depois de tudo, dia amanhecendo, pegavam o ônibus de volta para Maricá. Não há melancolia no cansaço, é tudo pra cima. Será que ele volta para os antigos desfiles para dizer “Graças a Deus, melhorei”? Ou o prazer morre ali mesmo, sem conexão com a vida presente? Que tipo de humanos somos, que precisamos voltar ao passado?
Vendo-os, um preso na quimera do sonho sonhado, e outro liberto pelo prazer de regurgitar o que passou, fico de cabelo em pé comigo mesmo: não tenho tempo para o passado. Não o evoco em sistema, não procuro, senão por motivo rápidos, sempre profissionais. Mas paro andando numa rua se ouço, de repente, canção de outrora. Revivo o cheiro, relembro os personagens mortos na estrutura da memória, e num átimo de segundo sigo em frente me esquecendo do que já tinha me esquecido. Meu presente é total, absoluto, porque depois da tempestade, sempre virá a bonança. Jamais o passado se configura íntegro como o presente, porque ele foi-se, e resta agora a glória de viver o resto de meus dias. 

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