O Estadão
A participação das mulheres em eventos de ultra-resistência como a maratona, o triátlon, o Ironman e outras modalidades esportivas vem adquirindo importância e aumentou significativamente nas últimas décadas. Muitas dessas atletas participam nesses eventos por diversas razões como, por exemplo, pelo grande desafio e verdadeira paixão pela atividade física. Outras, ainda procuram a melhor forma física e benefícios cardiovasculares.
Na verdade, as mulheres hoje em dia, sofrem constantes pressões da sociedade para se manter em forma com um corpo magro e torneado. Além disso, várias formas de publicidade chegam a impor essa necessidade por todos os lados, glorificando demasiadamente mulheres com tais características físicas. Assim sendo, com toda esta propaganda obsessiva e exagerada, a ideia que se tem é que qualquer pessoa que esteja ligeiramente acima do peso estabelecido é portadora de uma doença letal.
Tomemos, por exemplo, o caso da nadadora olímpica australiana Leisel Jones, que recentemente foi ridicularizada pela imprensa ao insinuar que a competidora parecia estar fora do peso ideal de uma atleta olímpica. Na verdade, tais críticos deveriam ter dado mais atenção à sua habilidade dentro desse esporte, ao invés de focarem em sua aparência física. Infelizmente, tal situação confrontada pela nadadora é um exemplo nítido de como a análise, em geral, da mídia australiana se tornou tão superficial.
Entretanto, é importante notar, que muitas atletas que participam em tais eventos de ultra-resistência profissionalmente precisam prestar atenção tanto ao excesso quanto a perda de peso, pois o desempenho esportivo pode ser afetado negativamente. Consequentemente, é ai onde os problemas potencialmente começam. De fato, determinação é o que não falta para muitas dessas atletas que muitas vezes de forma obsessiva chegam perto de seus limites em busca de um físico torneado e esculpido. E com isso, frequentemente se submetem às cargas de treinamento esdrúxulas e participam de competições altamente desgastantes, colocando a saúde em risco e levando o organismo à complicações médicas em decorrência das competições múltiplas e das cargas de treinamentos altamente extenuantes.
A chamada Tríade da Mulher Atleta (TMA), cuja síndrome é o conjunto de sinais clínicos e sintomas inter-relacionados, afeta tanto atletas da elite quanto outras praticantes de atividade física, e é caracterizada por distúrbios alimentares, redução da massa óssea, e amenorreia (ciclos menstruais diminuídos ou ausentes). Tal condição é muito comum em participantes de ultra-resistência assim como em outras modalidades das quais o peso adequado das participantes é de suma importância (ex: ginástica olímpica e balé).
Portanto, sabe-se que não é incomum que as atletas que participam de modalidades de ultra-resistência e outras atividades esportivas desgastantes sofram de diferentes graus de anomalias do ciclo menstrual.
De fato, uma pesquisa realizada pela Dra. Lisa Micklesfield, fisiologista da University of Cape Town, concluiu que a maioria das corredoras em seu estudo sofria de disfunção menstrual. Em conversa por telefone ela afirmou que, “Na verdade, as corredoras que sofrem de irregularidade menstrual têm menor densidade de massa óssea.”
Assim sendo, tal problema é caracterizado por níveis suprimidos de estrogênio. Em contrapartida, índices normais deste hormônio desempenham um papel importante no atraso da degradação óssea. É muito importante notar que a formação de massa óssea atinge seu pico por volta dos 20 anos.
Dessa maneira, as atletas que se submetem às sessões extenuantes de atividades físicas, ainda mais, durante tal momento crítico, sem apoio nutricional adequado, estão realmente prejudicando a saúde, enquanto que o organismo está tentando aumentar e armazenar a densidade óssea, que serão cruciais para a integridade óssea ao longo de toda vida. Além disso, um ponto crucial, que muitos não estão cientes é que a massa óssea perdida é provavelmente irrecuperável.
Na maioria dos casos, é bem possível que o problema das atletas que sofrem diferentes tipos de disfunção reprodutiva possa estar ligado aos hábitos alimentares que são geralmente caracterizados pelo subconsumo de calorias ou por um balanço energético negativo (abaixo das necessidades).
O termo “balanço energético” refere-se à quantidade de calorias que são gastas em relação às que são consumidas. Pode-se dizer que uma pessoa encontra-se num equilíbrio energético ideal quando a quantidade gasta corresponde às calorias consumidas. Assim sendo, um balanço de energia ideal é quando não há déficit calórico nem consumação em excesso de calorias.
A maioria dos distúrbios menstruais e diferentes graus de infertilidade sofridos pelas atletas parecem estar ligados a uma deficiência crônica de energia. Em outras palavras, a quantidade de calorias que uma atleta ou uma mulher fisicamente ativa consome, simplesmente não é adequada para suprir as demandas energéticas que correspondem ao seu consumo diário em decorrência da atividade física.
Na verdade, o sistema neuroendócrino é muito sensível e suscetível ao estresse do exercício de tal forma que afeta diretamente o sistema reprodutivo. Os estados clínicos e as situações caracterizadas por déficit calórico, ocasionam impacto significativo no eixo hipotálamo-hipófise-gonadal (HPG). Estas glândulas funcionam muitas vezes em cooperação e trabalham como se fossem um único sistema, desempenhando um papel importante no desenvolvimento e no controle do sistema reprodutivo. Os estados calóricos deficitários geram desequilíbrio hormonal que consequentemente afetam de forma negativa o sistema reprodutor feminino e a formação óssea.
A Dra. Mary Jane De Souza, pesquisadora de renome mundial da Pennsylvania State University, envolvida em pesquisas importantes sobre a síndrome da Tríade da Mulher Atleta (TMA), me disse que, “Quando o volume do fornecimento de energia não é suficiente para suprir ou reabastecer as necessidades energéticas básicas, o corpo humano faz uma redistribuição de energia, sacrificando a função de reprodução e crescimento, em prol de outros processos que são essenciais e vitais e que obviamente também consomem energia como as funções de termorregulação, manutenção das células, e de locomoção”.
Esses estudos importantes e respeitados conduzidos pela Dra. De Souza trouxeram à tona a importância fundamental que a nutrição adequada e planejada exerce no desenvolvimento de um balanço energético positivo, e consequentemente, na tentativa de reverter às irregularidades menstruais.
O problema com modalidades de ultra-resistência é que uma pessoa, em virtude dos treinamentos excessivos e das competições, tem um dispêndio energético extremo e por necessidade passa a gastar uma quantidade enorme de calorias. De tal forma, a reposição de tal gasto calórico se torna um desafio monumental.
Examinemos, por exemplo, o caso específico da natação, na qual muitos técnicos usam metodologias de treinamentos que muitas vezes são caracterizadas por volumes de cargas excessivas. Um nadador, como o norte-americano Michael Phelps, pode gastar até 12.000 calorias num só dia. Tal dispêndio energético é simplesmente impressionante. Comparemos isso com o gasto calórico médio de um cidadão comum que gera aproximadamente em torno de apenas 2750 calorias por dia. Para compensar tal gasto fenomenal, Phelps precisa ingerir quantidades de alimentos várias vezes por dia. Na verdade, ele precisa comer até quando estiver “dormindo”.
“A questão é que a maioria das atletas raramente dedica o tempo necessário para planejar um regime dietético adequado da mesma maneira que fazem com os planejamentos das suas metodologias de treinamento,” disse a Dra. De Souza.
“Na verdade, é um problema filosófico no sentido de que elas simplesmente excluem, ou não dão atenção alguma, a um planejamento dietético adequado dentro da programação de treinamento,” acrescentou.
No momento, a causa da disfunção reprodutiva em atletas do sexo feminino é um tema interessante e em evidência dentro do campo da fisiologia do exercício.
Seria importante mencionar que tanto o estresse mental, assim como o estresse relacionado às condições fisiológicas caracterizadas pela deficiência calórica causam disturbios do ciclo menstrual. Desta forma, fica difícil apontar exatamente para a causa principal das irregularidades menstruais. Também existem outras patologias que podem causar a disfunção menstrual nas mulheres, principalmente naquelas atletas com períodos irregulares caracterizados por longos intervalos.
No entanto, para a disfunção menstrual relacionada à deficiência de energia, as soluções ainda não são totalmente evidentes. A Dra. Micklesfield ficou surpresa quando lhe perguntei se uma programação alimentar por si só poderia resolver o problema do balanço de energia e da disfunção óssea e menstrual.
“Nós não temos estudos controlados-randomizados, que comprovem que os problemas relacionados ao sistema reprodutor feminino, causados por uma dieta com deficiência calórica (um balanço negativo de energia), possa ser realmente resolvido, por si só, através da alimentação,” disse ela.
A resposta definitiva para a pergunta que fiz para a Dra. Micklesfield pode chegar nas conclusões de um estudo pioneiro que se encontra em curso conduzido pela Dra. De Souza. O estudo da Dra. De Souza é apoiado pelo Departamento de Defesa dos EUA, e é o primeiro estudo controlado-randomizado com o intuito de examinar a questão em causa.
“Estamos dividindo as atletas em dois grupos dentro do nosso estudo. Um grupo receberá mais alimentos do que o outro. Assim sendo, vamos verificar com certeza se as atletas são capazes ou não de obter uma normalidade dos seus ciclos menstruais em decorrência do consumo maior de calorias,” afirmou a Dra. De Souza.
Entretanto, até a publicação dos resultados finais do estudo da Dra. De Souza, atletas femininas em geral não terão nada a perder, e talvez tudo a ganhar, assegurando-se que estão ingerindo todas as calorias necessárias de uma dieta adequada. Ao se alimentarem corretamente, dando atenção aos seus planejamentos nutricionais como fazem com os programas de treinamento, estariam dando um passo importante e antecipando as práticas que certamente virão e serão confirmadas pelo estudo da Dra. De Souza no próximo ano.
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