domingo, 26 de agosto de 2012

A Ação Popular na história do catolicismo

Blog da REA


REGINALDO BENEDITO DIAS**

Preâmbulo
O Brasil viveu, no início da década de 1960, um processo de renovação da esquerda, marcado pela fundação de organizações que se contrapunham à linha política do PCB. Entre essas novas organizações, a Ação Popular teve a origem mais singular. Enquanto o PC do B e a POLOP filiavam-se à herança marxista, a gênese da Ação Popular é relativamente heterodoxa. Fundada em 1963 como movimento político dotado de uma ideologia própria, a Ação Popular contou, em sua origem, com forte impulso de jovens egressos dos movimentos leigos católicos. Depois do golpe militar de 1964, entretanto, a AP caracterizou-se por buscar filiação na tradição marxista-leninista.
Apesar dessa ruptura, a experiência da Ação Popular tornou-se referência para a história da Igreja Católica do período. Primeiro, pelo fato de ser gerada uma organização de esquerda no seio de uma instituição que, até então, tinha uma trajetória essencialmente conservadora. [1] Segundo, porque sua gênese e práxis foram relacionadas com o processo do desenvolvimento da Igreja Popular e da Teologia da Libertação, influentes na década seguinte.
O presente trabalho investiga a forma como a experiência da Ação Popular foi interpretada na literatura que analisa aquele período da história do catolicismo. São analisados tanto documentos oficiais da Igreja Católica quanto obras de intelectuais ligados à instituição ou interessados em refletir sobre sua experiência histórica. Naturalmente, selecionou-se material relacionado com o desenvolvimento da esquerda católica, fenômeno com o qual a Ação Popular costuma estar associada. São investigadas duas tendências principais de interpretação. A primeira representa as posições conservadoras da Igreja Católica do período de emergência da AP. A segunda está em sintonia com as mudanças que o catolicismo brasileiro viveria na década de 1970, marcadas pelo advento da Igreja Popular e da Teologia da Libertação.
Da esquerda católica ao marxismo-leninismo
No final de 1961, a CNBB emitiu um documento de orientação às atividades da Juventude Universitária Católica, cujos líderes vinham assumindo posições de destaque no movimento estudantil nacional. Na época, esse movimento experimentava uma radicalização de perspectivas. O documento episcopal estabelecia:
1) Não é lícito apontar a cristão o socialismo como solução de problemas econômico-sociais e políticos, nem muito menos apontá-lo como solução única; 2) Não é lícito admitir-se que ao se formular a figura de uma Revolução Brasileira – em assembléias ou círculos de estudos da JUC, se afirme doutrina de violência, como válida e aceitável (CNBB, 1961, p. 947).
O documento identificava impasses ocorridos nas eleições para as entidades estudantis, quando os jucistas somavam-se aos comunistas para conquistar a direção de organismos estaduais ou nacionais. Diante disso, decreta: “A começar do ano de 1962, nenhum dirigente jucista poderá concorrer a cargos eletivos em organismos de política estudantil, nacional ou  internacionais, sem deixar os seus postos de direção da JUC. O mesmo se diga, como é evidente, quando se trata de participação ativa em partidos políticos” (CNBB, 1961, p. 949-50). A JUC era um braço leigo da estrutura da Igreja, submetido, portanto, às regras disciplinares. Sua atuação estava circunscrita pelo mandato que lhe era delegado.
Esse impasse é um emblema das transformações que ocorriam na juventude católica daquele período. Desde o final da década anterior, a radicalização política se verificava nos movimentos leigos da Igreja, em particular na JUC. Setor especializado da Ação Católica Brasileira, a JUC tinha, em sua origem, um perfil conservador e clerical, visando cristianizar a futura elite do país. A guinada ocorreu no final da década de 1950, quando a JUC participava da movimentação e da política estudantil. Os jovens jucistas não ficaram alheios à influência desses movimentos. Progressivamente, a JUC ultrapassou suas preocupações estritamente religiosas e doutrinárias e engajou-se nas lutas pela reforma universitária e pela mudança das estruturas na sociedade brasileira.
Esse engajamento colocou a necessidade de definição de objetivos políticos mais amplos. No congresso de 10 anos da JUC, ocorrido em 1960, o horizonte para a guinada à esquerda foi sintetizado no documento Algumas diretrizes de um Ideal Histórico cristão para o povo brasileiro. No início da década de 1960, a ascensão da JUC no movimento estudantil traduziu-se na conquista do comando da UNE. Nesse momento, aliou-se com estudantes do PCB. Inaugurou-se uma hegemonia que se estenderia, por intermédio da AP, ao longo da década. Foi nessa conjuntura precisa que a práxis jucista, ultrapassando e entrando em choque com os limites tolerados, gerou a citada reação da hierarquia da Igreja Católica.
Pelos limites de atuação em uma estrutura eclesial e por conta dos atritos com a hierarquia, pautou-se a criação de uma organização laica, que, em vez de ter como elemento de coesão a confissão religiosa, aglutinasse por motivos políticos e constituísse, nas palavras de Herbert de Souza (1976), um movimento nacional alternativo ao PC. Em 1962, foi desencadeada uma série de reuniões com esse objetivo. Em menos de um ano, estaria constituída a Ação Popular. O congresso de fundação ocorreu em fevereiro de 1963, na Bahia. Aprofundando o caminho teórico que vinha sendo trilhado, aprovou-se o Documento base, que orientou a organização nesse período e que exerceu influência até a conjuntura imediatamente posterior ao golpe de Estado de 1964.
A JUC, sem dúvida, é o tronco principal no processo de origem da AP. Entretanto,  considere-se que a organização, como era seu objetivo, atraiu militantes de outras origens, seja de vertente religiosa, seja de formação independente. Um estudo de caso sobre sua experiência no Paraná, por exemplo, apontou uma interface com a Juventude Democrata Cristã. [2] Outra vertente foi a do protestantismo, evidenciada pelo relevo da atuação de Paulo Wright, de formação presbiteriana, no final da década de 1960 e início da seguinte (WRIGHT, 1993).
Com a fundação da AP, como conseqüência da opção pessoal de seus integrantes, ocorreu o fenômeno da dupla militância dos estudantes jucistas que se incorporaram ao movimento recém-criado. A preferência pela AP decorria de seu “compromisso com o homem, com o homem brasileiro antes de tudo” (GOMES SOUZA, 1984, p.210). O efeito gravitacional exercido pela AP foi significativo, pois, a despeito da aparente divisão de atribuições, áreas de atuação da JUC sofreram declínio (GOMES SOUZA, 1984, p. 212).
Em sua origem, a AP distinguia-se das organizações de esquerda de sua geração por não reivindicar filiação marxista e pela busca de ideologia e de caminhos próprios. Sob influência do cristianismo, do existencialismo e do marxismo, tentava formular uma nova síntese política, à qual correspondia certo ecletismo. O conceito-chave era o de socialismo como humanismo. O Documento base era a expressão dessa tentativa de síntese.
A divisão de tarefas na elaboração do Documento base revelava a herança que a AP recebia das organizações leigas católicas. Na elaboração da perspectiva filosófica, sobressaiu a participação do Pe. Vaz, assessor da JUC, como reconhece Herbert de Souza, primeiro coordenador nacional da AP (SOUZA, 1996).
Na seção de fundamentação filosófica, o referido documento critica o materialismo e o idealismo. O primeiro promoveria a “consciência reflexo”. Ao anular a especificidade da consciência, negaria a condição de sujeito do homem. O segundo promoveria a “consciência abstrata”, que atraiçoaria as responsabilidades históricas concretas. O DB procura situar-se em uma terceira posição, proclamada como  “realista”. Em sintonia com as encíclicas de João XXIII, adota o conceito de socialização como linha condutora de interpretação do processo civilizatório. Sob influência marxista, aponta o caráter contraditório do capitalismo, que remete a um desenlace socialista (AÇÃO POPULAR, 1979).
O conceito de “socialismo como humanismo” era uma crítica às ditaduras de esquerda e ao chamado socialismo real. O Documento Base salienta o fato de que, na superação do capitalismo, tenham surgido novas formas de dominação e alienação. Preconiza que, no complexo mundo socialista em gestação, poderiam existir experiências plurais e com orientações ideológicas distintas. A realidade comportava, em seu entender, a possibilidade de “diversas concepções de passagem ao socialismo”. Sobre o processo revolucionário, indica, com certo eufemismo, que “a história não registra quebra de estruturas sem violência gerada por essas mesmas estruturas, que produzem, em última análise, essa conseqüência” (AÇÃO POPULAR, 1979, p. 137).
Na conjuntura posterior ao golpe militar, a Ação Popular iniciou um processo de reavaliação de sua política, em face da derrota sofrida em 1964. Essa reavaliação culminaria na ruptura com a influência cristã presente em sua origem. Tal ruptura não ocorreu imediatamente, porém. Houve um período transitório.
Uma primeira resposta aos novos desafios foi condensada em 1965, no documento Resolução política. Preservou-se, nessa resolução, parte essencial do edifício conceitual do Documento Base, especialmente seus fundamentos filosóficos, os aspectos que abordavam o socialismo como humanismo e as críticas ao socialismo real. A grande marca da RP foi a adesão explícita ao objetivo de conquistar o poder pela via insurrecional, por meio da estratégia da Revolução Socialista da Libertação Nacional, conceito que sofria influência das revoluções cubana e chinesa. As permanências do período anterior foram colocadas em xeque em 1967, quando foi aberto o Debate Teórico e Ideológico. A convocação do debate acentua a ruptura com a formulação anterior: “Na etapa atual, para que se possa chegar a resultados coerentes e inclusive preparar etapas futuras, é necessário considerar o estudo crítico do marxismo como eixo e princípio ordenador da discussão” (AÇÃO POPULAR, 1967, p.14).
No curso desse debate, a influência das revoluções chinesa e cubana não correu de forma híbrida, como na RP. Essa influência se particularizou em cada uma das duas alas em que a AP se dividiu no processo, cada qual apresentando postulados sobre a caracterização da sociedade brasileira e sobre os caminhos para a revolução. Em 1968, prevaleceram as posições da “corrente 1”, de linhagem maoísta e adepta da estratégia da guerra popular prolongada. Os membros da “corrente 2”, próximos da influência da revolução cubana, foram expulsos. No que diz respeito à atualização da identidade da AP, as duas correntes, formalmente, romperam com suas origens e tentaram refundá-la, cada qual a seu modo, como uma organização marxista-leninista. As divergências  diziam respeito a qual marxismo aderir. Ambas pretendiam superar a “velha” AP, tida como pequeno-burguesa, eclética e idealista, em nome do marxismo-leninismo.
Superada essa disputa interna, a ruptura com o passado se acentuou. Os documentos da organização dão conta do ritual, desenvolvido voluntariamente, de autodestruição da AP, para reconstrução em novas bases. Na seqüência, a AP formalizou tal ruptura. Na III Reunião Ampliada da Direção Nacional, ocorrida em 1971, a organização passou a denominar-se Ação Popular Marxista-Leninista. As fases de sua história foram assim demarcadas: “surgiu de um partido pequeno-burguês, fundado em 1962, que se transformou de um partido pequeno-burguês-reformista (1962-1964) num partido pequeno-burguês revolucionário (1965-1967) e depois, através de um árdua luta teórica e prática (1967-1969), numa organização marxista-leninista (a partir do segundo semestre de 1969)”  (AÇÃO POPULAR, 1985, p. 293-294).
Novas fases de luta interna ocorreriam na vida da AP. Em 1973, número expressivo de militantes se incorporou ao Partido Comunista do Brasil, saudado como o partido de vanguarda do proletariado brasileiro. [3] Outra ala buscou reorganizar a Ação Popular e atualizou a pauta da construção do partido de vanguarda. No final da década, a AP esteve entre os agentes políticos que participaram do processo de fundação do PT.
Na constituição do PT, convergiram agentes políticos egressos dos novos movimentos sindicais e populares, das Comunidades Eclesiais de Base, assim como organizações revolucionárias remanescentes do período da luta armada. Entre esses novos agentes políticos, destacavam-se militantes formados na Igreja Popular. Nessa confluência, a Ação Popular estava incluída, porém, no campo da chamada esquerda revolucionária, herdeira do marxismo-leninismo. Não tinha identidade com os setores ligados à Teologia da Libertação, cuja semente costuma ser buscada nos movimentos em que a AP teve origem, nos anos 1960 (DIAS, 2004).
Visões sobre um fenômeno singular
Ecos da cristandade
No final de 1963, para reagir ao fenômeno da dupla militância que a juventude católica promovia nos movimentos de leigos e na AP, a cúpula da Igreja Católica emitiu nova determinação. Considerava que a AP tinha uma orientação naturalista e não representava “o pensamento cristão autêntico”. Estabeleceu que era inoportuna a presença de estudantes da JEC em suas fileiras. Quanto aos membros da JUC, poder-se-ia aceitar que participassem da AP em duas circunstâncias: “a) a de um elemento com vocação para atividade dessa natureza e bem formado; b) a de entrar com a intenção de modificar substancialmente a Ação Popular para uma linha cristã autêntica” (In BEOZZO, 1984, p. 209). [4] No início de 1964, outro documento, veiculado pela Revista Eclesiástica Brasileira, retomou e desenvolveu o tema. Fundamentou as reservas à orientação política e filosófica da AP. Acusou que o Documento base pecava pelo naturalismo, sendo omisso ou vago nas questões morais que condicionam a questão social. Ancorado nas doutrinas constitutivas do magistério pontifício, sentenciou:
além do caráter econômico, o problema social encerra aspectos morais que condicionam qualquer solução positiva. Nas manifestações conhecidas da Ação Popular este fato ou fica de todo omisso ou apenas vagamente lembrado. E do naturalismo, que ignora os valores morais e religiosos, ao ateísmo, que os nega e combate ferozmente, vai distância muito pequena (In FLORIDI, 1973, p.166).
Condenou a perspectiva da luta de classes e a colaboração com forças políticas de orientação comunista.  Vaticinou qual seria a natureza do regime que seria instaurado no país, caso vingassem a subversão da ordem e a conquista do poder por parte dessas forças. O atual capitalismo seria substituído pelo “capitalismo todo-poderoso e irrefreável do estado, mais cruel, mais opressor e mais injusto que o outro” (In FLORIDI, 1973, p. 168).
Derivações das posições expressas por esses documentos eclesiais podem ser encontradas em uma publicação, escrita pelo padre Eustaquio Gallejones em 1965, que fez um balanço precoce da curta trajetória da AP. A ideologia da AP teria três pontos vulneráveis: visão incompleta do homem; conceito falso de propriedade privada e crítica inconsistente do capitalismo; análise equivocada do processo histórico. A visão incompleta do homem decorreria do naturalismo da AP, cuja análise da dignidade humana não parte do transcendental. O falso conceito de propriedade privada e de capitalismo era conseqüência da influência marxista no DB. A justiça social deveria ser buscada na Doutrina Social da Igreja e não, como seria o caso da AP, em um socialismo ortodoxo, baseado na luta de classes e supressão da propriedade privada.
Gallejones considera uma contradição em termos falar de humanismo marxista e em socialismo humanista, como teria feito o Documento base da AP. Da premissa de que o verdadeiro fundamento do humanismo seria a transcendência, conclui que o materialismo marxista seria, intrinsecamente, anti-humanista. Se o ponto de partida da AP tinha sido o cristianismo, as características da doutrina social católica foram omitidas em seus documentos.
Em conjuntura próxima, foi elaborada, nos marcos da instituição eclesial, outra leitura conservadora da experiência da AP, de autoria do padre italiano Ulisse Alessio Floridi. Publicado em italiano em 1968, o livro circulou em português em 1973. De certo modo, é ainda mais contundente do que Gallejones na crítica à AP. Em relação ao que chama de concepção naturalista do Documento base, escreve: “O que admira, neste documento, é a absoluta falta de referência, não digo à doutrina social da Igreja, mas ao próprio Cristo e ao Evangelho” (FLORIDI, 1973, p. 163). Acusa a AP de aceitar, no fundamental, as posições do materialismo histórico, tentando introduzir nelas uma visão personalista. Prevaleceria, porém, a posição do materialismo. Por isso, indaga: “que garantias oferece a AP de respeitar a pessoa humana e de ser diferente dos outros socialismos?” (FLORIDI 1973, p. 164).
Se a leitura do Documento base já estabelecia suspeitas sobre o paradeiro do socialismo apista, Floridi escreve em uma conjuntura em que a AP, de forma deliberada, promovera rupturas com sua origem e aderira formalmente ao marxismo. Esse processo de redefinição é usado como comprovação de sua tese, já presente na interpretação do DB, acerca da incompatibilidade entre o cristianismo e a perspectiva socialista ou comunista. A experiência da AP, então, é descrita com tintas fatalistas:
Os católicos e os eclesiásticos radicais que (…) crêem salvar seu cristianismo aceitando o socialismo (comunismo) como ideal ou fenômeno histórico inevitável têm no caso da AP a prova de que isso não é possível. Os militantes da AP vêem hoje, e não há razão para pensar que sejam insinceros, que quem escolhe o socialismo deve necessariamente optar pelo comunismo concreto, ideológico, partidário, anti-humano e violento (FLORIDI, 1973, p. 183).
A interface com a Igreja Popular e com a Teologia da Libertação
No início da década de 1970, influenciado pelo advento do catolicismo popular, Márcio Moreira Alves produziu uma tese de doutorado, convertida em livro anos depois, em que investigou as relações entre a Igreja e a política (ALVES, 1979). Seu interesse pelo tema, porém, fora aguçado na conjuntura imediatamente posterior ao golpe de Estado de 1964, quando produziu o livro O Cristo do povo. Nessa obra, após detalhado relato da politização vivida pelos estudantes católicos, afirma: “a Ação Popular (AP) é um movimento revolucionário que surgiu como resposta política aos anseios e angústias dos jucistas” (ALVES, 1968, p. 233). O período pós-1964, analisado no calor da hora, foi visto como de radicalização premida pelas circunstâncias, que levou ao marxismo-leninismo. Em tom crítico, conclui: “O resultado da definição foi um violento expurgo em seus quadros, um grande desperdício de vocações revolucionárias” (ALVES, 1968, p. 235).
Em sua obra mais recente, reflete se a Igreja católica teria potencial para engajar-se em um projeto de transformação socialista. Depois de acusar a incompatibilidade entre a cadeia de comando da Igreja e projetos revolucionários, demonstra os impasses de organizações de elite, como a JUC, e aponta as potencialidades das Comunidades Eclesiais de Base, embora considerasse precoce qualquer julgamento definitivo a respeito. Sobre a AP, finalmente, faz uma observação lacônica: “A organização política resultante das descobertas revolucionárias da JUC foi a Ação Popular. Gradualmente, exigirá ela dos seus membros uma lealdade exclusiva, que os desligará da Igreja institucional até explicitar (…) a sua opção pelo marxismo-leninismo” (ALVES, 1979, p. 131). Nas duas intervenções de Márcio Moreira Alves, subjaz um olhar crítico sobre o desperdício das “descobertas revolucionárias” presentes em sua origem.
No final da década de 1970, período de consolidação da Teologia da Libertação, a experiência da Ação Popular e sua relação com a história do catolicismo voltariam a ser analisadas por intelectuais oriundos da JUC  ou identificados com as mudanças de perspectivas da Igreja Católica. Nessa época, conhecia-se o fato de Gustavo Gutierrez, quando preparava seu clássico livro sobre a Teologia da Libertação, publicado em 1971, ter vindo ao Brasil para entrevistar cristãos militantes do período 1960-1963 e refletir sobre a práxis da esquerda católica daqueles anos, como apontou Luiz Alberto Gomes de Souza, autor de importante contribuição para os estudos a respeito da interface da AP com o catolicismo.
Ex-dirigente da JUC e fundador da AP, esse autor demarca as diferenças de projetos entre os dois movimentos. Em 1960, esclarece, falava-se de uma esquerda cristã, que pudesse abrigar jovens profissionais e jucistas. Em 1961 e em 1962, com a ampliação de horizontes, pautou-se a organização “de um movimento de esquerda onde os cristãos participassem” (GOMES SOUZA, 1984, p. 198). Por isso,
Essa geração foi chegando ao socialismo, mas não ao socialismo cristão, nem tampouco ao socialismo derivado do cristianismo. Ainda que a discussão tivesse começado no âmbito de movimentos cristãos da AC (Ação Católica), logo passou a ser uma caminhada em comum com pessoas de diferentes origens, analisando o processo histórico das lutas populares e os contornos de um futuro projeto político. Daí o surgimento da Ação Popular, impropriamente considerada por muitos analistas como um movimento de esquerda cristã, mas que pretendia ser, desde o início, um movimento pluralista, embora não se possa negar que a biografia da maioria de seus criadores estivesse condicionada por suas origens cristãs (GOMES SOUZA, 1987, p. 101).
Analisando o Documento Base, destaca que, em sua perspectiva histórica, a socialização e a personalização estão dialeticamente condicionadas. Na perspectiva filosófica, sobressai a relação entre a consciência e o mundo (GOMES SOUZA, 1984, p. 199). Quanto ao horizonte socialista, aponta a crítica às formas de alienação política geradas pelas experiências históricas (GOMES SOUZA, 1984, p. 200). Em intervenção posterior, é bastante direto quanto a esses temas, assinalando a recusa de uma consciência reflexo do mundo (determinismo das condições materiais) e a opção por um socialismo democrático, em coerência com a crítica às experiências autoritárias (GOMES SOUZA, 1987, p. 101).
Não havia, em seu entender, uma reflexão prévia e acabada como ponto de partida, mas uma experiência, até certo ponto hesitante, que se iniciara, para muitos militantes, ainda nos tempos da JUC. A “experimentação” e a “teorização” gradual demarcavam, “ao mesmo tempo, a originalidade e a aparente fragilidade do movimento, diante de outros grupos ideológicos que já têm naquele momento soluções preparadas e tiradas de seu baú de “posições corretas” (GOMES SOUZA, 1984, p. 200). A fragilidade, vista retrospectivamente, decorria do fato de que, até março de 1964, houve pouco tempo “para um debate aberto e público que permita compatibilizar, corrigir e melhorar a prática, com um pensamento cuja elaboração se faria aos poucos. Essa pelo menos  era a intenção em 1963” (GOMES SOUZA, 1984, p. 201).
Entretanto, é com aquele período inicial que o autor se identifica. O período posterior ao golpe militar de 1964 é abordado com pouco interesse e linguagem ácida. Na segunda metade daquela década, “em tempos de clandestinidade e repressão, num salto em direção oposta, vários de seus dirigentes, com complexo de inferioridade, procuram a tranqüilidade nas águas do dogmatismo e uma clara ortodoxia leninista ou maoísta” (GOMES SOUZA, 1984, p. 200). Em outra intervenção, avalia que o movimento transformou-se “num rígido partido marxista-leninista sem originalidade” (GOMES SOUZA, 1987, p.102).  Para concluir, observa que essa transformação do movimento mereceria um estudo cuidadoso, que analisasse tanto os condicionamentos externos, impostos pela clandestinidade, quanto os internos. Sem eufemismos, sugere que esse estudo seria “um pouco ‘uma patologia do político’, ou em linguagem mais irreverente, ‘de como um movimento político endoidou” (GOMES SOUZA, 1987, p.102). [5]
Ainda no final da década de 1970, Luiz Gonzaga Souza Lima divulgou um amplo estudo sobre os estudantes católicos, em que também aborda o fenômeno da formação da AP. O crescimento da AP teria sido impulsionado pelo fato de ter uma ideologia em formação. A despeito de faltarem diversos níveis de elaboração, essa ideologia exercia fascínio e justificava o engajamento político dos cristãos em um projeto de transformações socialistas. Valorizando a ação, esse projeto em construção aliava motivações humanistas cristãs com o materialismo histórico, sem deixar de fazer críticas às experiências socialistas. Tudo isso exercia fascínio sobre amplos setores católicos e “era funcional, naquele momento histórico, para explicar e justificar a prática social das classes e setores de classe aos quais pertenciam, na direção da Revolução Brasileira” (SOUZA LIMA, 1979, p. 44).
Lima também analisa a formação da AP a partir da radicalização de setores da ACB. Recusa, porém, a interpretação de que se trata de um fenômeno interno da Igreja Católica. Propõe que esse fenômeno de politização e radicalização seja entendido no contexto político do período e na conjuntura de luta de classes. Como ocorre com os intelectuais católicos, seu interesse pela fase posterior da AP é mínimo. Sistematiza, esquematicamente, as fases que a AP viveria no pós-1964: adesão à luta armada e ao marxismo de matiz maoísta, transformação em uma organização marxista-leninista e virtual extinção pela confluência da maioria de seus quadros em outras organizações clandestinas. Em linguagem sóbria, mas sem dispensar certa dose de ironia, anota:
Essa evolução político-ideológica, se de um lado deu aos seus dirigentes e quadros uma teoria revolucionária internacionalmente considerada como tal, afastou o movimento de suas bases sociais, que eram os cristãos progressistas. O abandono do humanismo cristão como ponto de partida, ao mesmo tempo em que se abandonavam suas bases sociais, haveria de transformar a AP em uma organização pequena e impaciente, que disputava verbalmente com outras  organizações clandestinas a hegemonia na direção da classe operária e da Revolução Brasileira (SOUZA LIMA, 1979,  p. 47).
Em 1984, o Pe. Beozzo divulgou suas reflexões sobre a práxis da AP, inseridas em um livro que aborda a radicalização dos estudantes católicos. Sua análise se detém, sobretudo, nos aspectos doutrinários da AP e em sua relação com a prática política do movimento, embora não faça propriamente uma investigação empírica das ações. No Documento base, sua maior identificação dirige-se à fundamentação filosófica: “O edifício filosófico, bem arquitetado, crítico e matizado parece não fecundar e penetrar as outras perspectivas e flutua um pouco entre a análise econômica, de um lado (como interpretação da história), e as opções concretas, de outro” (BEOZZO, 1984, p.129-30). Padecendo de um pronunciado corte da perspectiva teórica, a análise seria escrava de um postulado ativista e imediatista, que arriscava “afastar da luta sua raiz e seus objetivos mais universais e diluir a força das opções na pura tática, liberta de  toda orientação normativa” (BEOZZO, 1984, p. 130).
Essas limitações tiveram, no entender de Beozzo, graves conseqüências políticas para a Ação Popular, na decisiva conjuntura de 1964:
Negligenciando sistematicamente os amplos setores da realidade que não entravam em seu horizonte de análise, o político por exemplo e a natureza do poder, ou o poder do Exército e da Igreja Católica, para não citar senão dois, eles basearam sua luta sobre um conhecimento estreito e incompleto da realidade, negligenciando a ação junto aos setores-chaves do controle social. A revolução de 1964 encontrou-os inteiramente desprevenidos e só lhes deixou a ingrata tarefa de procurar encontrar uma explicação para seu fracasso (BEOZZO, 1984, p.130).
Beozzo assinala que, no período posterior ao golpe militar, os debates sobre a estratégia e sua natureza organizativa monopolizaram a reflexão do movimento, mas não aprofunda a análise.
Em meados da década de 1980, o brasilianista Scott Mainwaring interveio no debate, em livro dedicado a estudar a relação entre a Igreja Católica e a política, cuja cronologia, abarcando o período de 1916 a 1985, desemboca na conjuntura de influência da Igreja Popular. Sobre as raízes católicas dos militantes da AP, anota: “É digno de nota que, dentro de uma instituição que ainda era mais ou menos conservadora e hierárquica, tenha surgido um movimento com posições tão progressistas quanto as da Ação Popular “(MAINWARING, 1989, p. 87). Entretanto, diante dos impasses que a juventude católica vivera com a estrutura eclesial, salienta que, livre das restrições que os bispos impunham ao apostolado leigo, a Ação Popular assumiu posições políticas à esquerda da JUC e criou uma possibilidade independente da hierarquia (MAINWARING, 1989).
O interesse de Mainwaring pela AP, tanto quanto o dos autores católicos citados acima, é por sua primeira fase, em que seu projeto mesclava o humanismo cristão com outras referências. Por isso, é lacônico e crítico ao indicar as mudanças que a AP viveria a partir do golpe militar de 1964:
A história da AP após o golpe foi trágica, como também o foi a história da maior parte da esquerda brasileira. O movimento tornou-se clandestino logo depois do golpe devido à repressão. Por isso, passou por uma rápida radicalização que o levou ao marxismo e à participação na luta armada (MAINWARING, 1989, p. 87).
Retomando o foco de sua análise, a relação entre a Igreja e a política, faz duas inferências sobre a trajetória da AP. Primeiro, constata que, nos pós-1964, a AP “abandonou suas origens cristãs e, nesse processo, deixou de ter influência dentro da Igreja. O movimento progressista dentro da Igreja passou por novos canais, embora se valesse do legado deixado pelos jovens católicos radicais “(MAINWARING, 1989, p. 87). Na segunda inferência, é enfático quanto ao legado da  AP sobre o desenvolvimento da Igreja Popular, a despeito dos caminhos assumidos na segunda metade da década de 1960:
É (…) notável a presciência da Ação Popular em relação a um grande número de assuntos que vão desde os compromissos com a transformação social radical até uma perspectiva crítica do leninismo e do socialismo burocrático. Sob esses aspectos, a Ação Popular antecipou a ideologia dos intelectuais da Igreja Popular das décadas de 70 e 80. Não havia uma relação causal direta entre a AP e a Igreja Popular, mas a AP realmente estabeleceu uma tradição de humanismo radical dentro do catolicismo brasileiro que continuou depois de o próprio movimento ter abandonado suas origens católicas (MAINWARING, 1989, p. 87).
Na primeira metade da década de 1990, Giovanni Semeraro contribuiu com o debate, por intermédio do livro A primavera dos anos 60: a geração de Betinho. A conjuntura em que a obra foi gestada, caracterizada pela crise do socialismo e pelo avanço do neoliberalismo, é ressaltada pelo autor. Motivou-se a estudar o início da década de 1960 “para colher a concepção de mundo, a dinâmica social, o espírito de luta e a transparência ética que animaram os jovens politizados daqueles anos” (SEMERARO, 1994, p. 13). O caráter de resistência da obra é ainda dimensionado pelo fato de a Teologia da Libertação encontrar-se em franca perda de influência.
Para Semeraro, a Ação Popular era uma superação da controvertida idéia de “esquerda cristã”. Mas enfatiza que, apesar de proclamar-se não-confessional, a AP, em sua origem,  apresentava “uma marca inconfundível de humanismo cristão e uma visão utópica de transformação de mundo” (SEMERARO, 1994, p. 60). Sua ideologia, mesclando o humanismo cristão com o materialismo histórico, justificava e propunha o engajamento dos cristãos no processo de transformação, especialmente pela renovação que propunha no projeto socialista. Sem deixar de destacar a influência do ideário cristão, insere a Ação Popular no leito das organizações de esquerda do período. Salienta, entretanto, sua originalidade e a renovação que promovia. A AP seria, naquela conjuntura,  a organização mais revolucionária do Brasil, pois seu projeto representava um diálogo  original:
Pela crítica de conceitos marxista-leninistas, pela rejeição do economicismo vulgar, pela condenação dos regimes socialistas autoritários e burocráticos, os cristãos superavam as deformações da esquerda tradicional. Voltavam a instaurar a dinâmica da dialética no melhor pensamento de Marx, ao se baterem pela criação de um socialismo humanista que tinha a democracia como valor universal e o pluralismo na participação de múltiplos sujeitos coletivos (SEMERARO, 1994, p. 181-182).
Sobre o caminho percorrido pela AP depois de 1964, reproduz a noção de que “o movimento endoidou”. Entretanto, o balanço da primeira fase é amplamente favorável.  Entre 1959 e 1964, os cristãos de esquerda, incluídos os que enveredaram pela AP, “deixaram traços inconfundíveis e lançaram as premissas de um processo que assumirá proporções impressionantes nos anos 70 e 80, quando despontará a Teologia da Libertação e serão esboçadas as linhas de um novo partido da classe trabalhadora”  (SEMERARO, 1994, p. 197).
Considerações finais
Conquanto fosse uma organização laica e tivesse, após o golpe militar, aderido ao marxismo-leninismo, a trajetória da Ação Popular mantém pontos de interseção com a história do catolicismo, como salientaram as duas tendências de interpretação, no que diz respeito ao capítulo da esquerda católica.
Traduzindo uma posição conservadora, as análises de Gallejones e Floridi são convergentes e complementares. Ambos procuram se ancorar nos documentos da hierarquia da Igreja e defender a doutrina oficial, tal como então se apresentava. Há, quando muito, nuanças entre um e outro. Gallejones identifica a tendência de extrema esquerda no período anterior a 1964. Ao afirmar que a AP não era uma organização de católicos, submetida à hierarquia e orientada pela doutrina social, situa-se nos marcos de uma visão de nova cristandade. Ele exige que a AP, um movimento laico, seja algo que não quer ser, uma organização eclesial. Floridi segue essa linha e a radicaliza, pois exige referências ao Evangelho. Uma nuança é sua visão de que o ecletismo da primeira fase penderia para o marxismo. Como escreve alguns anos após Gallejones, assiste à conclusão da transformação ideológica da AP e a descreve com tintas fatalistas.
Autores identificados com as transformações que a Igreja experimentou ressaltam o caráter renovador da esquerda católica em geral e da Ação Popular em particular. Movimento laico e independente, a AP é vista como desdobramento da esquerda católica. Tanto se beneficia de seu legado quanto mantém incidência sobre seu curso. Ela também foi um canal pelo qual os cristãos puderam influenciar, para além dos marcos da instituição eclesial, a práxis política mais ampla e o ideário socialista. Salientam-se, assim, as críticas ao socialismo real e às formas de alienação geradas em sua experiência. Em todos os autores que analisam a interface com a Igreja Popular, prevalece uma visão crítica às transformações que a AP viveria no pós-1964.
Na verdade, para as duas vertentes destacadas, o interesse pela história da AP se encerra quando se faz a opção pelo marxismo-leninismo. Por razões distintas, ambas são críticas dessa opção. Rejeitando toda a experiência, os intelectuais conservadores consideram que esse era o desfecho natural para a incompatível convivência de orientações díspares. Por seu turno, os intelectuais identificados com o catolicismo popular, com ou sem vínculos com a Igreja, interpretam essa definição como o encerramento dos aspectos criativos da práxis da AP. Por isso, procuram na primeira fase da AP o impulso renovador para a Igreja ou para a esquerda, malgrado certa dose de ingenuidade ou de imprecisão de formulação. É naquele período que procuram a centelha de esperança para avivar as lutas de seu tempo.

Referências
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* Trabalho originalmente apresentado no I ENCONTRO DO GT NACIONAL DE HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES: ANPUH. 2007.
** REGINALDO BENEDITO DIAS é professor do Departamento de História, Universidade Estadual de Maringá (DHI/UEM) e Doutor em História Social pela UNESP. Publicado naREA, nº 88, setembro de 2008, disponível emhttp://www.espacoacademico.com.br/088/88dias.htm
[1] Segundo Edgard Carone (1984, p. 16), a AP “é um fenômeno estranho na nossa história, pois, na nossa história, o catolicismo sempre se identificou com o reacionarismo”.
[2] Os vínculos orgânicos não eram fortes, mas a JDC, hegemônica na União Paranaense dos Estudantes, alinhava-se com a AP nas questões nacionais do movimento estudantil (DIAS, 2003).
[3] Em outro artigo, analisei como a experiência da AP foi interpretada pela ótica do PC do B (DIAS, 2006).
[4] Nesta relativa abertura, que aceita a participação sob determinadas condições, pode-se perceber a influência da atualização do magistério pontifício. Na encíclicaPacem in terris, editada em 1963, João XXIII enfoca, de forma pragmática, a colaboração entre católicos e não-cristãos no seio dos movimentos, com vistas à promoção do bem comum. Para tal, estabelece uma distinção entre doutrinas e movimentos, que permite colaboração em torno de objetivos práticos, sem compromissos quanto aos fundamentos.
[5] Herbert de Souza expressou ponto de vista análogo acerca dos períodos de vida da AP, apesar de ter rompido seus vínculos com a Igreja e com as religiões (SOUZA, 1976 e 1996).

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