terça-feira, 31 de julho de 2012

Deus e o Diabo na Terra do Cão


Matheus Pichonelli

Carta Capital

Encerrava ontem uma típica tarde no interior à sombra de uma praça, ouvindo futebol pelo rádio e fazendo planos para segunda-feira quando vi algo parecido com uma lata de Nescau caminhando pela rua. Esfreguei os olhos para ver direito e notei que a lata de Nescau tinha rabo e patas. Incrédulo, esfreguei os olhos de novo e vi que de fato estava diante de rabo e patas, mas não de uma lata de Nescau – era, isso sim, uma vasilha de plástico com a cabeça de um cachorro dentro. O que não parecia fazer o menor sentido virou algo óbvio: o coitado do animal meteu o focinho onde não devia e ficou preso, andando feito doido pela rua em busca de alguém que fizesse a caridade de tirá-lo de sua claustrofóbica tigela cilíndrica (ou seja lá o que fosse aquilo).
O cão e a velha mania de colocar o fucinho onde não deve. Foto: Galeria de Beverly & Pack/Flickr
O que se viu em instantes faria inveja a qualquer roteiro de Mario Monicelli: do garapeiro ao guarda de trânsito, todo mundo na cidade parecia mobilizado para ajudar o animal – que, assustado, fugia com latidos abafados e passava rente às rodas de caminhões na avenida principal cada vez que alguém se aproximava. Carros paravam, as pessoas desciam curiosas, algumas com o coração na boca, arregaçavam as mangas e corriam para ajudar a fechar um cerco improvisado pelo guarda do trânsito que suava em bicas em pleno inverno. Até o fechamento desta edição o cachorro passava bem.
A solidariedade espontânea daquelas pessoas levou um sujeito baixinho de asas e auréolas a soprar no meu ouvido algo como: “viu só, a humanidade ainda tem jeito”.
Balancei a cabeça em concordância plena quando tomei um cutucão. “Jeito?”, contrapôs, na outra orelha, um outro sujeito, este de chifres e tridente. “Se fosse um viciado em crack com a cabeça entupida num cachimbo vocês não franziriam nem a testa”.
“É verdade”, ouvi confuso do outro lado, já percebendo que estava em meio a um debate desses de mesa de bar. “Mas uma coisa é certa: as pessoas estão mais sensíveis do que eram há alguns anos, quando chutar cachorro ou matar passarinho na rua era tão comum quanto tomar garapa num fim de domingo”.
Um deles lembrou então que, meses atrás, uma mulher foi flagrada espancando um yorkshire e foi alvo de campanha pró-linchamento na internet. Quem era o cão, quem era o homem?, perguntou. Na hora lembrei de um grande amigo que sempre diz: vivemos um tempo de humanização dos animais e animalização do ser humano. É mais ou menos o que Kafka expressou ao transformar Gregor Samsa, seu personagem de A Metamorfose, em um imenso inseto: todo mundo evita chegar perto de um ser humano quando ele foge a um padrão de conduta socialmente aceitável. Enquanto dormimos com animais tosados na cama, encarceramos nossos loucos, nossos velhos que já perderam o juízo, nossos doentes, nossos jovens que cometeram pequenos delitos e, principalmente, nossos viciados. Como imensos insetos, todos são objetos de ojeriza e, ainda que ninguém assuma publicamente, deixam amigos e parentes aliviados quando simplesmente desaparecem. “Logo”, concluiria o diabo, “se um viciado em crack com um cachimbo na cabeça fosse atropelado por aquele caminhão, todos ficariam no mínimo confortáveis. Seria um a menos para jogar na nossa cara nossa condição animal”.
“Pois se ele tivesse um cão, o cão estaria com ele até debaixo da roda”, contra-atacou o anjo não-decaído, citando uma lista enorme de matérias sobre quantos degregados filhos de Eva se salvaram da depressão graças à companhia dos bichinhos. Não demorou a apelar a Rousseau. A culpa é do sistema, concluiria ele, já ensaiando uma desavergonhada sociologia de botequim: “à medida que as cidades crescem, passamos a conviver cada vez mais em ambientes insalubres; esbarramos no trabalho, nas escolas, nas casas de vizinhos e outras instituições fechadas com todo tipo de competição, ganância, trapaça, preconceito e intolerância. Por isso valorizamos cada dia mais a ideia de lealdade. E temos de admitir: nessa, os cães dão de dez a zero em qualquer bicho-homem”.
“Vai ver é por isso que, pelo menos por esses lados, um cachorro tenha ganho uma aura sagrada, mais ou menos como as vacas associadas às divindades da Índia”, completou. “E daí?”, espetou o do tridente. “Os cães são leais, amorosos, gostam de você quase gratuitamente e não vão pular o muro de casa para te trair com o dono do cão vizinho. Assim até eu”.
Os dois concordaram.
O anjo então lembrou de uma belíssima crônica escrita por Carlos Heitor Cony para sua cachorra Mila. Para ele, o melhor resumo da relação humana com os animais: “quando meu pai morreu, ela se chegou, solidária, encostou sua cabeça em meus joelhos, não exigiu minha festa, não queria disputar espaço nem ser maior do que minha tristeza”.
(Diz a lenda que Cony só voltaria à literatura, depois de anos de silêncio, por obra de Mila – mas esta é outra história).
O demônio até ensaiou responder, mas embargou a voz. Depois disso, os dois entraram numa linha de concordância, espécie de bifurcação ao avesso: com tantos hotéis, spas, comida específica, acompanhamento psicológico e outras benesses para animais, nada parecia ser mais atraente do que viver num mundo-cão. Os do outro lado que se virassem com as próprias imperfeições e abandonos. E comemoravam a sorte do cão enlatado – quase uma piada pronta para Vinicius de Moraes sobre wisky e o melhor amigo do homem.
Só então reparei que anjo e demônio, para mim símbolos máximos da dubiedade humana, tinham feições caninas. Só não rosnavam um para o outro por pura educação.

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