quarta-feira, 26 de junho de 2013

Novas postagens

Pessoal, eis mais três textos interessantes sobre os últimos acontecimentos no Brasil. Boa leitura!

A respeito das manifestações ocorridas no Brasil: movimentos sociais baseados em rede ou o que diz a voz do povo

Blog da REA

MARLENE NOVAES*
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O que foi isto? O que aconteceu para que mais de 1 milhão e meio de pessoas em 19 capitais e mais de 100 cidades brasileiras saíssem às ruas protestando? Qual é a natureza e o sentido das manifestações que tomaram o país, configurando o maior movimento popular da história do Brasil? Para qual direção apontam? São perguntas que persistem duelando com nossas inteligências. Como fenômeno social complexo, os atuais movimentos sociais intrigam analistas que aspirem às interpretações definitivas, haja a vista que a velocidade vertiginosa dos acontecimentos impede inferências sobre as tendências futuras. De todo modo, é intrigante refletir sobre os constrangimentos e as perspectivas abertas pela dinâmica dos movimentos neste tempo de redes sociais ativas.
Em Brasília, quando manifestantes violentamente chutaram o prédio do Congresso Nacional, espectadores pareciam torcer para que o mesmo não resistisse aos golpes e caísse de podre. Se as coisas por lá não estão podres, ao menos fedem muito. O descontentamento com o cenário nacional levou às ruas sujeitos de diferentes percursos sociais. O Movimento Passe Livre São Paulo (MPL) chamou mesmo foi para ir até ali na esquina, em passeata pela revogação do aumento da tarifa de ônibus. Mas, a multidão que se foi constituindo nas avenidas vinha com mais fome que os pobres que tem fome na rua. Uma fome velha, sentida, batida, dobrada e redobrada por respeito aos direitos de cidadania plena, pela partilha nas decisões do Estado, por uma vida civil com saúde, trabalho, moradia e educação e, sobretudo, fome de doer entranhas pela moralização na administração política da coisa pública.
Como lembra Todorov (2010), as guerras civis são o resultado da intolerância dos dominadores. O povo descontente tomando as ruas aos borbotões, a ameaça de generalização dos quebra-quebras, a violência desferida contra os espaços de poder constituídos, entre outras coisas, obrigou a imprensa a um movimento de câmera mais solidário com o povo. Diante dos fatos, era preciso soprar com calma a fogueira explosiva em que se transformou o Brasil, de 10 a 21 de junho de 2013. Veículos de comunicação reacionários, como a Veja, apoiaram as manifestações, difundindo temores de ordem persecutória. Muitos aventaram a hipótese de golpe de Estado e a direita provou, mais uma vez, sua inegável inteligência e habilidade para produzir a acomodação das massas. Ainda assim, o povo saia às ruas.
A emergência dos acontecimentos, tendo lugar no contexto global da sociedade em rede, foi fartamente favorecida pelos usos sociais das redes sociais. A constituição de uma nova cultura tecnológica e suas formas correlatas de relações sociais em rede teve papel decisivo no desenho, curso e desdobramentos dos ocorridos.
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A oportunidade para que a multidão apresentasse publicamente seu seleto elenco de inconformismos abriu-se quando a insatisfação social atingiu índices intoleráveis em paralelo com as atuações do #VemPraRua, #ChangeBrazil e #AcordaBrasil, responsáveis por ampliar as pautas de luta do movimento. Facebook, twitter e suas hashtags funcionaram como condição necessária, mas não suficiente, para a emergência dos movimentos sociais baseados em redes, estes que inquietam pela rapidez com que aglutinam sujeitos em suas mais destacáveis pluralidades. E a vantagem da pluralidade reside, como sabemos, no fato de garantir, a cada um, a liberdade de pensar e julgar.
As perspectivas abertas pelos movimentos sociais baseados em rede parecem promissoras. Uma nova cartografia política tem sido ali desenhada a partir da ativação de uma sociabilidade crítica calcada no julgamento. Agora, surpreendentemente o sujeito tornou-se o produtor da informação que percorre a rede acompanhada de julgamentos que instigam o ativismo social porque elevam os níveis de consciência geral. Como diria o Lula, nunca antes na história deste país vivenciamos algo equivalente. Agora o mover das peças no jogo político recomenda não ignorar a  rapidez de mobilização das massas e seu poder de xeque-mate.
E, se a identidade de um fenômeno social anda colada à identidade de seus representantes, caberia prosseguir perguntando sobre os atributos do sujeito do movimento social baseado em rede que aqui nos interessa. Até onde nos foi permitido notar, trata-se de um sujeito individuado detentor de potencialidades críticas, disposto a manter a si mesmo no contexto da pluralidade das diferenças, mas também interessado em experimentar subjetividade social, mesmo porque é bem isto que o capitalismo faz: produz subjetividade seriadas dóceis ao controle social. Porém, valendo-nos das ideias de Guatarri (1996), é possível notar que a esta nova cartografia política que está em jogo é dada a condição de produção de processos de singularização, uma singularização daquele tipo que: “coincida com um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de sociedades, os tipos de valores que não são os nossos”.
Entendendo revolução, aos modos de Guatarri, como tudo o que comporta um caráter transformador e irreversível, vamos concordar que estamos vivendo um processo revolucionário. Quem estava nas ruas era o sujeito singularizado, aquele que elevava seu cartaz gritando forte; o cartaz que redigiu em sua casa, com sua caneta denunciando aquilo que faz contraponto à sua felicidade particular. Nas avenidas, as diferentes singularidades confluíram, entrelaçaram e amarraram forte um desejo e outro desejo e mais outro até tecer uma nova voz para o país, agora não mais ressabiada ou ressentida pelas crueldades pontiagudas de um Estado leviano, não mais cativa da desesperança do seu poder de agir como catalisador para a artesania de uma sociedade de direitos e justiças assegurados. Ninguém saiu em marcha para pedir, fomos lutar para conquistar o que é de nosso direito.
É preciso, contudo, organização no plano geral a fim de maximizar as vantagens das redes sociais em seu potencial de mobilização e transformação social quando se trata de constituir movimentos com base na pluralidade ideológica de seus participantes. Nestas situações o movimento deve assumir o tom suprapartidário, e todos sabem o que reza a etiqueta para a ocasião: nada de bandeiras. Ali eram mais de um milhão e meio de reclamantes. Todos reacionários? Quem opta por desqualificar o caráter da massa cansada dos sedativos políticos está criando subterfúgios para negar resposta ao que é mais urgente: o que são as esquerdas no Brasil, hoje? Qual o projeto de transformação que defendem para o país e como têm se dado os movimentos de base a partir dos quais tais projetos são construídos e debatidos com o povo?
Agora, quando partidos políticos dão largada à corrida para angariar a simpatia das massas, a grande tarefa passa a ser a apresentação de propostas que traduzam os anseios de povo. O populismo e seus riscos estão respirando no nosso cangote. Um “queremismo” de novo tipo nos ronda. Em 1945, quando o povo gritava “queremos Getúlio” deu-se sua primeira deposição. Mas, aquele não era um tempo de redes sociais e sujeitos singularizados. Esta mania do brasileiro de nunca acreditar em si mesmo precisa ter fim.
O que quer o povo indócil? Não vai ser a Globo quem vai responder isto. Em tempos de redes sociais as análises de textométrica são mais qualificadas para dar as respostas precisas. Os partidos estão acossados pelo povo. Atribuir urgência na resolução da questão da mobilidade social urbana significa afastamento do cerne do problema em direção ao que parece de mais fácil solução. Ninguém quer o ouro de tolos. A massa quer mais que catraca livre, PSOL. Por outro lado, corre a interpretação que o povo enojou-se da política partidária e para este caso a solução seria oferecer a possibilidade de candidaturas de pessoas fora de legendas políticas ou promover a reavaliação funcional dos atuais partidos, algo do tipo trocar nomes antigos para que adquiram novas conotações distantes de seus sentidos originais, assim defende Cristovão Buarque (PDT). De todo modo, quem souber entender os reclames do povo sairá à frente. A reforma política é indiscutivelmente um clamor público. Penso que com bandeiras abaixadas devemos partir para esta luta. Não dá mais para ficar elegendo político de rabo preso.
Este é o tempo em que vivemos a revolução do sujeito singularizado, este que rejeita a serialização da subjetividade, tal como quer o capitalismo com suas perversidades. Trata-se de um sujeito que não abre mão dos seus desejos e não renuncia a conquista de seus objetivos. O sujeito singularizado vai à rua para manifestar o seu desejo porque de posse da liberdade de viver seus processos e compreender sua situação no entremeio de um mundo que tange gente feito gado.
Conforme Piotr Kropotkin: “Nenhuma revolução social pode triunfar se não for precedida de uma revolução nas mentes e corações do povo.” A revolução do sujeito é a mais necessária de todas. Eis-nos, portanto, diante dos novos sujeitos dos movimentos sociais baseados em rede, aqueles capazes de lutar com mesmo vigor, tanto para a qualidade da sua vida pessoal, quanto pela da vida coletiva através da expressão de desejos que abundam em repetições e ecos inteligíveis. O meu desejo é também o seu desejo. E juntos nosso desejo é mais vida, mais direitos e liberdades. Este ganho é revolucionário porque transformador e irreversível. Ninguém mais poderá calar a voz do povo, não neste tempo regido pelo novo paradigma tecnológico. Chegou o tempo de temer o poder do povo.
Referências
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
GUATARRI, Félix. Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996.
TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Petrópolis: Vozes, 2010.

* novaesMARLENE NOVAES é antropóloga, Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e docente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá.

A revolta dos 140 caracteres

Blog da REA

CÁSSIO AUGUSTO GUILHERME*

É extremamente difícil reunir em um único texto tantos acontecimentos, vertentes, explicações, exemplos e ponderações, ainda mais quando se está vivendo aquilo que se quer explicar. É a terceira vez que começo este texto e não tenho certeza ainda se irá tomar o rumo que desejo. Acho que vou ter que fazer outros depois.
Penso que toda forma de expressão deve ser respeitada, porém, para ser respeitada, esta forma de expressão deve também respeitar. É muito válido e importante o momento que o Brasil vive. Gente na rua é o que nós, da esquerda, sempre defendemos e estimulamos. Como bom esquerdista, e assumo isso logo no começo do texto para que o leitor não seja induzido a uma falsa imparcialidade, sou a favor das manifestações e entendo que precisamos defendê-la. É justamente por defender as manifestações, que venho fazendo ponderações aos manifestantes em minha página no Facebook e agora neste texto (espero não me perder em meio a tantas).
Primeiro, é importante salientar que só temos um movimento nacionalizado hoje em dia, graças a três fatores: ação truculenta da Polícia Militar de São Paulo na noite de 13/06 (o que diga-se, acontece todos os dias nas periferias do Brasil contra a população miserável); a defesa que a mídia tradicional fez da atuação da Polícia e taxação do Movimento Passe Livre como meros “vândalos” comparáveis ao criminoso Primeiro Comando da Capital (o que também é comum contra todos os Movimentos Sociais, principalmente o MST); e a força que as redes sociais têm hoje em dia para disseminar opiniões. Tirando dois destes elementos, a questão continuaria circunscrita às municipalidades.
Não vejo nas manifestações uma coesão e isso me preocupa. Não existe “o” movimento, mas sim vários e dispersos movimentos dentro das manifestações. A questão do transporte público foi somente o estopim, mas agora vejo todo tipo de questão, umas até contraditórias entre si. Me parece mais uma comemoração de título mundial, muita festa, diversão do que necessariamente um Movimento Social com pautas, propostas, objetivos, lideres. Está na moda tirar foto no protesto para postar no Facebook.
Em 1968, os estudantes de várias partes do mundo foram às ruas protestar contra tudo e contra todos. Queriam mais liberdade, mais paz e amor, menos repressão, mais educação. Não havia claramente uma liderança, uma pauta, uma proposta para ser discutida. Ficaram sem nada ou com Ditaduras. Acredito que o exemplo seja válido para os dias atuais. O movimento atual não tem pauta, nem projeto, nem proposta, salvo raras exceções, como por exemplo em Maringá, onde os manifestantes conseguiram que todos os vereadores da cidade assinassem a abertura de uma CPI para investigar o monopólio do transporte público no município.
Um elemento a ser considerado é a crescente rejeição à classe política. Na boca destes neo-manifestantes, tudo é culpa dos políticos, como se eles fossem uma espécie de ETs que surgiram do nada e nos escravizaram. Esquecem-se que somos nós que os colocamos lá a cada quatro anos. Aliás, cabe a pergunta aos jovens, lembram-se em quem vocês votaram para presidente, senador, deputado federal, governador e deputado estadual nas últimas eleições?
O discurso apartidário presente em boa parte das bocas dos neo-manifestantes e prontamente encampado pela mídia tradicional por motivos óbvios também merece destaque e os partidos precisam rever suas formas de comunicação com a sociedade. Os gritos de “sem partido” mostram a total falta de conhecimento dos neo-manifestantes sobre o sistema eleitoral brasileiro e no caso, principalmente sobre a importante atuação de partidos como PSTU e PSOL, que estão na rua há anos e organizaram os primeiros protestos, uma atitude anti-democrática que vem servindo de excelente desculpa para que fascistas ataquem militantes  de esquerda.
Uma discussão que voltou à tona nestes dias é sobre a dicotomia direita x esquerda. Há quem diga que isso não exista mais nos dias de hoje. Não concordo. Somente a direita insiste em dizer que tal dicotomia não faz parte do século XXI e as diferenças continuam claras e as mesmas de séculos atrás. Enquanto a direita faz o discurso da meritocracia, do conservadorismo e da moralização, a esquerda insiste em suas bandeiras sociais e de tratar os desiguais de forma desigual, para reduzir a desigualdade. Aliás, tarifa zero para o transporte público, mais escolas públicas, mais hospitais públicos, mais rodovias públicas, são bandeiras da esquerda. Apesar disso, o movimento está tomado pela extrema-direita. Neo-nazistas, skinheads, saudosos da Ditadura Militar, homofóbicos, machistas, racistas se infiltraram na espontaneidade ingênua da maioria e vão aos poucos disseminando as suas pautas pseudo-moralistas, ou alguém viu cartazes pedindo reforma agrária, redução da jornada de trabalho, reforma urbana ou reforma política?
Bradar contra a corrupção é o grito principal. Porém, continua sendo de forma vaga, afinal, nenhum político vai admitir que é corrupto e todos virão à público dizer que também são contra a corrupção. Fiz umas provocações em minha página de Facebook dizendo que furar fila, colar na prova, dirigir o carro do pai sem carteira ou aceitar gasolina de candidato em época de eleição, não deixa de ser uma forma de corrupção e a aceitação não foi das melhores. É fácil pedir que o outro se moralize, quando nós aqui em baixo não nos moralizamos.
Os neo-manifestantes recém acordados não possuem consciência histórica. Não lembram, se esqueceram, mataram a aula ou estavam mais preocupados em colar na prova e assistir a Malhação do que em pensar a respeito de, por exemplo, Canudos, o petróleo é nosso, reformas de base, diretas já, ocupações de terras, caras pintadas, protestos contra a Alca e as privatizações. Aliás, esta classe média que hoje diz lutar por direitos, é a mesma que até quinze dias atrás rotulava os que lutavam por direitos como “desocupados, vândalos, baderneiros, comunistas comedores de criancinhas”, etc. Realmente, precisamos de mais educação. Estes recém acordados bradam o instigante “vem pra rua”, mas não possuem a mesma vontade para ir às bibliotecas estudar, por exemplo, sobre direito, cidadania e movimentos sociais.
São tão despolitizados (não que isso seja culpa deles, claro) que não fazem a mínima idéia, por exemplo, da existência dos Conselhos Municipais de saúde, educação, transportes e da possibilidade de criar um orçamento participativo em seu município. São tão despolitizados que nunca foram em uma reunião da câmara de vereadores da sua cidade, muito menos leram a Constituição Federal para saberem que o destinatário de um protesto contra a PEC 33, 37 ou pela saída de Renan Calheiros da presidência do Senado é o Poder Legislativo e não o Executivo; que a prisão dos “mensaleiros” compete ao Poder Judiciário e não à Presidente. Mas claro, é mais fácil culpar a Dilma.
Por falar em culpar a Dilma, parece que o Brasil passou a ter problemas apenas a partir de 2002, com a eleição de Lula. Nossos neo-manifestantes não viveram ou então se esqueceram do que foram os anos 1980 e 1990 neste país, para ficarmos apenas em exemplos recentes. Mas como são na maior parte desinformados, acreditaram no discurso de que o “mensalão” foi o maior escândalo de corrupção do Brasil e que tudo vai mal no país. Não sabem o que foi o desmonte do Estado feito no Governo Fernando Henrique, a tentativa de “flexibilizar a CLT”, o presidente que chamou os aposentados de vagabundos, que tirou dinheiro da educação para salvar bancos quebrados, que não construiu nenhuma nova universidade federal, que vendeu a preço de banana as nossas estatais e o dinheiro foi parar em paraísos fiscais na conta de pessoas ligadas ao PSDB (uma dica, ao invés de gastarem com combos de vodka na balada este final de semana, vão na livraria mais próxima e comprem o livro “A Privataria Tucana) que teve uma política externa submissa, que os escândalos de corrupção eram todos engavetados pelo Procurador Geral da República, como o do Sivam, banco Marka, Sudam, Sudene, e sequer chegavam ao STF.
Claro que o PT também tem culpa nesta questão e muita. Deixou de ser um partido de bases e militantes, para fazer acordos escusos com o coronelismo do PMDB, que inclusive possibilitou a eleição de Marco Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara e perdeu a bandeira da ética, depois do escândalo do “mensalão”. É preciso fazer a mea-culpa.
Uma vez que o movimento perdeu o controle (o MPL anunciou que não convoca mais manifestações) não fazemos a mínima idéia para onde, como e com quem ele vai. A direita golpista parece se articular. Em 1963-64 a população estava nas ruas reivindicando reforma agrária e da educação. A elite conservadora, reacionária, com medo do povo, aproveitou a deixa para criarem o discurso de ameaça à ordem e da necessidade dos militares deporem o Presidente para salvar a democracia. Inclusive, se naquela época tínhamos o IPES/IBAD que fazia propaganda anti-esquerdista no Brasil, hoje temos o Instituto Millenium, a Veja, Folha e várias páginas no Facebook que fazem a mesma coisa. As cartas parecem estar na mesa, novamente. Infelizmente a maioria “faltou” nesta aula de História, também.
Outro exemplo é 1989. Saíamos de uma Ditadura e o sentimento geral da nação era por modernização, transparência e fim da corrupção. Como os dois candidatos favoritos era à esquerda, Fernando Collor de Mello, um ex-deputado federal pelo partido da Ditadura, encampou o discurso moralizante, nacionalista e anti-partidário, prometeu acabar com os marajás, convenceu a maioria, com a ajuda da Globo e muitos empresário e deu no que deu. Mais uma vez, parece que nossos neo-manifestantes “faltaram” a esta aula.
E a mídia tradicional também apanha. “O povo não é bobo, abaixo à Rede Globo” é um coro que soa como música aos meus ouvidos. Com medo, a Globo estabeleceu a estratégia certa para seus interesses: defende que as manifestações sejam “sem partido”, assim enfraquece o movimento, que fica ainda mais perdido e pode ser pautado pela emissora e seus amiguinhos midiáticos. Falando nisso, será que no facebook nossos jovens têm mesmo acesso à uma informação melhor? Pelo que vejo na rede social, não. Se o chefe da propaganda nazista Goebbels vivesse hoje, diria que uma mentira compartilhada mil vezes se torna uma verdade. É o caso por exemplo dos muitos brasileiros que acreditam que o Auxílio-Reclusão é para todos os presos e que o “Bolsa Prostituição” foi criado pelo Governo.
Para concluir, penso que o momento é delicado. Há boa vontade de muitos manifestantes, mas o desconhecimento acerca do funcionamento da democracia burguesa pode colocar todo o país diante de um revés perigoso. Levamos anos lutando contra uma Ditadura e agora estamos lutando para construir um país democrático e mais cidadão. Não podemos jogar fora a criança com a água e a bacia. É preciso mais reflexão tanto dos políticos como dos manifestantes. O Brasil não está perfeito, mas já esteve muito pior. É preciso garantir as conquistas sociais e econômicas dos últimos anos, estudarmos mais (para além dos 140 caracteres das frases de efeito!) participarmos mais da vida partidária-eleitoral, e o principal: apresentarmos propostas claras.

* CÁSSIO AUGUSTO GUILHERME é Meste em História pela UEM.

Houve uma vez um outono: para além do vandalismo, uma pedagogia da existência

Blog da REA

ARISTÓTELES BERINO*
As estações
Nos últimos dias do outono alguma coisa aconteceu. A temperatura não parecia de acordo com a época, confundindo os sentidos. Agora, no limiar do inverno, tudo é epiderme nas cidades. A mudança da estação traz consigo sensações variadas, de acordo com o clima e também com a sensibilidade das ruas. Alguns corpos reagem com a abertura dos poros. Querem deixar fruir a época em que vivem. Outros, partidários da imunidade do tempo, esperam que a brisa outonal já tenham ido embora. São os que sonham com o passado ou com o futuro, sem nunca sentir as estações.
Sobre esses dias, acompanhei do Rio de Janeiro, cidade onde moro. Dizer que vi através de uma cidade é apenas uma localização relativa. Porque, de tudo o que ocorreu, muito foi promovido exatamente em razão dos contatos virtuais que ultrapassam fronteiras, dos meios de comunicação desenvolvidos e das extensas redes de correspondência. O que vi foi com mil olhos. Não quero dizer com isso que vi tudo. Entre tantas imagens, pode até ser que tenha visto demais, sem saber escolher os mais proveitosos ângulos de observação. Tento ajeitar aqui as minhas impressões, provisórias, porque tudo ainda está em brusco movimento.
No Manifesto Comunista, Marx e Engels (2007, p. 45), quando analisam a passagem da sociedade precedente para a sociedade capitalista, dizem: “tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social”. Transformações que fazem ruir instituições e relações que pareciam eternas. Abalos que abrem os olhos para tudo o que se passa, sem mistificar a vida social. Um horizonte aberto à vista, na verdade. Olhar, contudo, não é um automatismo. É também uma experiência social. Inclusive, da própria luta de classes. E ainda: contraditoriamente, fantasmas podem ajudar a ver.
Outono
Começo a escrever esta breve reflexão a respeito das manifestações ocorridas em várias cidades brasileiras depois de acompanhar notícias que tiveram início com a marcha do dia 13 de junho em São Paulo e a ocorrida no dia 21, em Nova Iguaçu, cidade onde trabalho, em um campus da UFRRJ. A segunda manifestação na cidade do Rio de Janeiro, no dia 20, segundo estimativas da mídia, reuniu trezentas mil pessoas. No mesmo dia, somando os encontros em mais de cem cidades, foi também noticiado que um milhão de pessoas foram às ruas. Outras versões falam de mais de um milhão apenas na cidade do Rio de Janeiro.
Durante esse período acompanhei sobre os acontecimentos através do Canal GloboNews, do Twitter e do Facebook. Também através de revistas semanais e jornais diários. Não conversei muito, pessoalmente, com colegas professores ou amigos. Minhas formulações foram tecidas, então, através do que foi recebido e acessado das mídias – e de aquisições prévias, claro (minhas leituras e experiências, por exemplo). Se comparar com a minha vivência de outros episódios políticos do país, agora as redes sociais no espaço virtual tiveram uma pregnância marcante nos meus “diálogos”.
A primeira marcha – e depois sua multiplicação pelo Brasil – mobilizou amplamente as mídias das grandes corporações, que logo passaram a procurar explicações que pudessem dar sentido ao que estava acontecendo. Também políticos ficaram preocupados; o governo federal, vacilante. Inicialmente uma mobilização em torno do MPL (Movimento Passe Livre) em São Paulo, as manifestações foram ganhando uma pauta ampla de reivindicações. A agitação política passou a ser reconhecida, por suas características, como inédita na história do país e associada a outros movimentos parecidos, que ocorreram em outros países, como a Primavera Árabe e os panelaços na Argentina.
Quando a temperatura das marchas começou a subir, com a invasão, a pichação e danos provocados em prédios públicos, e também com a destruição e saques em estabelecimentos privados, uma caracterização dos movimentos tem início na TV: a participação “pacífica” e “ordeira” de uma “maioria” que pratica a liberdade da democracia e a participação dos “vândalos”, sempre genericamente identificados como uma “minoria”, chamada de “punks”, “infiltrados”, “bandidos” ou “desordeiros”. A repetição obsessiva das palavras “pacífico” e “vândalo” por profissionais da imprensa deixa ver a pretensão de educar a audiência e estigmatizar setores entre os manifestantes.
Primavera
Duas questões, ainda no início de tudo, apareceram como enigmas na busca de uma explicação para a situação de grande tensão e confrontos nas cidades envolvidas. Que juventude é essa e o que querem exatamente como agenda política para o país? E ainda: Que agenciamento político é esse, suprapartidário, que utiliza as redes sociais e a internet de forma ainda não conhecida no país? Importante observar que, no entanto, a primeira questão não foi muito explorada. Na TV, pareceu oportuno trabalhar apenas com as figuras genéricas do “pacífico” e do “vândalo”. Sobre as redes sociais, a conclusão foi pronta: os políticos à moda antiga não estavam preparados para uma nova produção política.
A revista Veja deu como matéria de capa, nas edições do período até aqui transcorrido, sua visão sobre as manifestações. Primeiro, destacou: “A revolta dos jovens”. Na semana seguinte, em uma chamada Edição Histórica: “Os sete dias que mudaram o Brasil”. As manchetes, superlativas, procuravam sintetizar, de forma espetacular, a dimensão que as marchas foram adquirindo, com o número de participantes e as radicalizações da rebeldia, como depredar a Assembleia Legislativa no Rio de Janeiro ou ocupar o teto do Congresso Nacional, em Brasília. Neste momento, dois campos gravitacionais concentram as discussões sobre as manifestações.
O primeiro deles está ligado à questão do governo da população. Está claro que diante das novas tecnologias, as formas de contato permitem mobilizações até agora mais velozes e versáteis do que a capacidade do Estado acompanhar como gostaria a realização e os efeitos da agitação popular. Muitas vezes foi repetido também que os partidos não representam mais o espectro político existente. O que fazer agora para administrar a situação e evitar algo pior, sem controle, mais adiante? Além de uma solicitada aproximação para conversar (mas falar com quem?) e discutir sobre as questões que sugerem tanta insatisfação e revolta, a polícia tem sido chamada para conter. O povo ainda é um caso de polícia, de todo modo.
No dia 21, a presidente Dilma faz um pronunciamento. Acompanhando as reações pelas redes sociais, vi várias declarações de aprovação e outras tantas de decepção. Reações que expressam, de algum modo, o outro campo gravitacional de questões a respeito das manifestações. O que realmente significam para as esquerdas tradicionais e para os críticos do capitalismo de várias matrizes? Vir para as ruas é estar acompanhado de quais pretensões políticas? Minha visão é de que a multidão dessas manifestações é formada por vontades que se encontram em alguns pontos e se afastam em outros. Mas como teorizar sobre isso? Como continuar “ao lado” de tantas diferenças? Não existem respostas seguras agora, mas é preciso começar a responder.
Confiança e desconfiança se abraçam. Tem ocorrido a avaliação, por parte de alguns, que o movimento é de “classe média” e já nasceu refém da sua origem social. Para outros, por trás de tudo, trata-se de uma orquestração golpista contra Dilma. Mesmo assim, as manifestações seguem acontecendo, várias delas combinadas para os dias 22 e 23, final de semana. Uma névoa ainda cobre as cidades e ninguém sabe muito bem o que viu (alguns afirmam ter visto tudo com clareza desde o início…). Agora, uma confusa percepção faz acreditar que algo de bonito realmente aconteceu, mas sem a convicção de que valeu mesmo a pena. Para outras pessoas, o melhor foi nem se deixar tocar. Outras ainda, sem a necessidade de problematizar, estão sorrindo até agora.
Vândalos
Enquanto o número de manifestações e participantes assusta o executivo (federal, estadual e municipal) e setores da esquerda estão contando nos dedos a existência ou não das classes populares nas marchas, há uma conta que não bate mesmo. E essa diferença é exatamente uma das mais recalcadas nas análises dos acontecimentos, porque ficou muito fácil, sem saber fazer essa conta, deixar de considerar esses (i)números. Até agora, nada de realmente significativo foi dito sobre personagem fantasmático, sempre presente, mas cuja existência provoca desprezo difuso das mídias, políticos e intelectuais: o “vândalo”. Melhor que não comparecessem à “festa da democracia” e à teoria política. Melhor que não existissem nas ruas.
“A ‘doxa’, a opinião pública, é ela mesma que evita abordar os problemas em sua verdadeira realidade. É preferível vê-los em sua fantasmagoria ilusória” (MAFFESOLI, 2009, p. 19). Sobre um grupo de participantes exaltados, incômodos e radicais, com gestos extremos para hostilizar policiais, atingir prédios públicos, danificar equipamentos urbanos e quebrar estabelecimentos privados, melhor começar dizendo a verdade. Se estão em número menor, quando comparados com os manifestantes “pacíficos”, não formam uma “minoria” que se destaca apenas pela desordem. Eles estão em todo lugar, importante dizer. Quem são, na verdade?
Essa tem sido uma questão recalcada desde o início das manifestações: quem são e o que sentem diversos segmentos que estão presentes nos atos. Apenas uma investigação bem conduzida proporcionará uma visão adequada dos extratos sociais das marchas e o que pensam politicamente. E mais: o que pensam da cidade. Esse é outro tema denegado nas avaliações feitas até agora. Certa perplexidade sobre o caminho de volta às ruas das manifestações políticas ainda não se abriu para questão fundamental da rua como espaço da cidade e território das presenças e invisibilidades, do estar junto ou das separações.
O fato dos atos extremos e indesejáveis acontecerem publicamente, na frente de todos e das câmeras, contra representantes da ordem urbana e contra instituições que representam a vida seletiva na cidade, precisa vir à tona nas análises. Casas legislativas, edifícios de prefeituras, agências bancárias e meios de transportes suscitam sentimentos bem agudos de revolta, não se pode esconder. Notável a desordem pública, no lugar da insatisfação particular, personalizada e individual. No entanto, até agora, foi mais fácil, não pela facilidade linguística, mas pela exclusão que promove no agenciamento político, chamar de bárbaros aqueles que não falam a mesma língua da programação televisiva, do comportamento “cívico” e da inteligência acadêmica.
Defender a presença dos “vândalos” na análise e crítica das manifestações ocorridas não significa defender de forma absoluta seus atos. Mas incluir nas investigações que procuram explicar amplamente a mudança das estações, também aqueles que, sem serem convidados, aparecem e que através das ações que cometem – que não são residuais, insignificantes e privadas – exibem uma visão do espaço público e das ruas da cidade que muitas vezes não levamos em conta, de acordo com os nossos pertencimentos e escolhas. Também porque não visualizamos bem o dia de amanhã e não sabemos ainda o que somos ou não capazes de fazer com as coletividades e pelas ruas. Basta olhar para a história das sociedades até hoje: as folhas amarelam e caem.
Fundamental viver a própria existência como algo unitário e verdadeiro,
mas também como um paradoxo:
obedecer para subsistir e resistir para poder pensar o futuro.
Então a existência é produtora de sua própria pedagogia.
Milton Santos (2001, p. 116)
Referências
MAFFESOLI, Michel. A república dos bons sentimentos. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2009.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2007.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

berinoARISTÓTELES BERINO é Professor do Departamento de Educação e Sociedade no Campus Nova Iguaçu da UFRRJ e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc/UFRRJ). Pesquisador do GRPESQEstudos Culturais em Educação e Arte. E-mail: berino@ufrrj.br

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Após um tempo...

     Pessoal, após um tempo de ausência forçada, retornamos com três  textos  interessantes sobre os últimos acontecimentos em nosso país. Já não era sem tempo o nosso retorno, e a materialização da indignação brasileira em atos e palavras. Boa leitura a todos.

O povo sabe a resposta

Blog da REA

FÁBIO VIANA RIBEIRO*
FOTO ARTIGO BLOG REA ADurante meu período de graduação na UFMG, na década de 1990, um cartaz colado do lado de fora do restaurante da universidade sempre me deixava intrigado. Assinado por um grupo político que mais tarde se acomodaria dentro do PMDB, dizia o cartaz: “O povo sabe a resposta!”.
Os anos se passaram e nunca encontrei, em nenhum momento da história brasileira, qualquer exemplo para confirmação da frase, tão bela e esperançosa. Durante a campanha pelas eleições diretas e por ocasião do afastamento do então presidente Fernando Collor, ver o povo como protagonista do processo exigia de mim uma ingenuidade ou romantismo que já não existiam.
Os recentes acontecimentos provaram o que até então parecia quase impossível: pessoas comuns começarem, de uma hora para outra, a questionar gastos públicos e níveis de corrupção que já eram cinicamente tratados como parte da paisagem; variando a argumentação de seus praticantes do realista “é assim que as coisas funcionam” ao meio envergonhado “são coisas necessárias para avançarmos em nossos projetos”.
Pois bem. Para completo espanto de tantos, que tanto se beneficiaram e continuam ainda se beneficiando com teorias assim, o povo, ele mesmo, acordou de seu longo torpor. Sem que a oposição ao governo o incentivasse a ir às ruas, sem a tutela de partidos ou centrais sindicais. Não por acaso, quase todos eles, comprometidos com os motivos do atual descontentamento.
Por que isso não aconteceu antes? Considerando inclusive que os principais motivos do descontentamento já eram, como observei, de conhecimento público. Talvez estivesse faltando cair a última gota d’água; a mais comum e mais transparente de todas.
Nas últimas eleições municipais pude confirmar que, com as exceções de sempre, não havia mais nas ruas nenhum militante político. Pessoas como as que, nos anos 1980 e em Belo Horizonte, se dispunham a formar um cordão humano de 13 quilômetros ao redor da avenida do Contorno, num ato pela eleição de um dos candidatos. Sem com isso ganharem nada que não fosse a satisfação de suas consciências. Nas últimas eleições municipais, esse tipo de militância foi substituída por “homens cabos de vassoura”, capazes de ficar plantados por horas a fio debaixo do sol, num cruzamento do centro de qualquer cidade, segurando banners de candidatos de todos os partidos que disputavam alguma coisa na eleição: do PMDB ao DEM; do PV ao PT, todos provaram que já não era mais preciso o apoio de eleitores “vivos”, bastando-lhes os zumbis contratados e os demais indiferentes em casa, que iriam mais tarde deixar seus votos nas urnas.
Ou seja, para os que reclamam a ausência de partidos liderando as atuais manifestações, fica a dúvida: que partidos? Os que já não existem mais?  Algumas coisas me parecem evidentes. Os partidos políticos estão falidos; como nunca estiveram antes. Não representam ninguém e ninguém se sente representado por eles. Coube ao PT jogar a pá de cal no atual sistema de representação político partidária: ao oferecer sua interessada generosidade a seus aliados históricos (CUT, UNE, MST, etc.) e financiarem o restante da população (por um lado com bolsas família e outras formas de assistencialismo, e, por outro, com expansão do crédito para os sem bolsa). Nesse processo, a sempre útil e providencial teoria de que “os fins justificam os meios” e o discurso de que “toda a ideia de oposição ao atual governo se resume ao fato das elites não aceitarem um governo popular que incomoda as elites”, terminou por perder sua data de validade. O que aliás lembra uma cena hilária de um filme do Monty Python: sim, o governo é corrupto, mas diminuiu a pobreza; sim, é corrupto, fez alianças políticas com Calheiros, Collor, Sarney, Edson Lobão, etc, mas diminuiu a pobreza; sim, é corrupto, fez alianças políticas com Calheiros, Collor, Sarney, Edson Lobão, etc., criou um plano assistencialismo que terminou se transformando numa eficiente máquina eleitoral, mas diminuiu a pobreza, etc…
FOTO A B R
Discordo da teoria de que tudo caminha para um golpe. E creio menos ainda que os partidos políticos atuais, esses mesmos, os que não existem, possam servir de antídoto para golpes militares nostálgicos Caso a população continue nas ruas, o novo governo que substituirá o atual (isso porque, abrupta ou vagarosamente, o atual governo parece estar caindo) será… o mais parecido possível com aquilo que todos que continuarem nas ruas desejam.
Não deixa de ser sintomático o fato de que, como resposta ao pedido de mais verdadeque acompanha as manifestações, o governo tenha optado por um discurso de menos verdade, artificial e vazio, ortodoxamente preso aos mais óbvios princípios do marketingpolítico e eleitoral. Como tantos ainda insistem em fazer, a insinuação de que as manifestações são por demais genéricas e desfocadas. Como assim??!! Se indignar contra a corrupção e golpes autoritários (como PEC-37) é algo tão vazio e desfocado assim? Na sequência do discurso oficial, o surrado argumento de que a presença do povo nas ruas fortalece a democracia, etc. E que é preciso não aceitar a violência e a presença dos inimigos do país. Novamente feitas as contas e excluídos os desordeiros e inimigos da democracia, restam alguns milhões nas ruas e outros tantos milhões em casa, explicitando sua indignação com o atual governo e o estado de coisas que o mesmo representa. Nessa lógica, é quase o caso de se imaginar que o governo apoia aqueles que o acusam de permitir toda a corrupção e desvios políticos de que é acusado. Antes fosse isso, e por meio do discurso oficial, o governo anunciasse o fim de suas parcerias com o que há de pior na política brasileira, com as grandes corporações, com a FIFA, etc., e abraçasse a causa da população. Possivelmente por serem essas parcerias, por um lado, confiáveis e de longa data, ao mesmo tempo em que são, por outro lado, muitas as dúvidas se o povo sabe mesmo a resposta…

ribeiro-fabioFÁBIO VIANA RIBEIRO é professor adjunto da Universidade Estadual de Maringá (Departamento de Ciências Sociais) e Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

Olhando as manifestações no Brasil de longe, mas não tão de longe

Blog da REA

EVA PAULINO BUENO*
“Reparando bem, todo mundo tem problema.
Só a bailarina é que não tem.”
Chico Buarque
Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this son of York;
And all the clouds that low’r'd upon our house
In the deep bosom of the ocean buried
Shakespeare, Richard The Third Act 1, scene 1, 1–4
Agora é o inverno do nosso descontentamento
Transformado em verão glorioso por este filho de York;
E todas as nuvens que baixaram sobre nossa casa
(estão) enterradas no fundo do oceano
Now is the winter of our discontentAs notícias das manifestações de rua no Brasil apareceram na televisão nacional americana como um relâmpago mole: pluft. Não é em que não se esperava algum relâmpago, afinal, assistir notícias na tevê americana é como passar meia hora olhando pra um céu cheio de nuvens escuras, formações de tornados, previsões de furacões, terremotos, nevascas, fogo nas florestas, inundações. E tudo ao mesmo tempo. Sons de tambores.
É que — algo que surpreende muito aos brasileiros recém-chegados a este país — a tevê americana muito raramente menciona o Brasil. O interesse aqui é quase que exclusivamente o próprio umbigo, ou então os parentes mais chegados (os ingleses), ou os primos distantes (a Europa Ocidental), ou os compadres inimigos (os russos), a senhora nova rica que chegou no pedaço com ares misteriosos (a China) ou aqueles incompreensíveis que vivem causando dores de cabeça (o oriente médio). A América Latina se vê resumida ao México, vizinho do lado, fornecedor de mão de obra barata e muitas horas de discussão no senado, na câmara dos deputados, e agora, pelo jeito, de emprego para mais vinte mil soldados que vão ser estacionados na fronteira, vigiando o muro.
Fora disto, quando a tevê fala dos outros países, em geral é pra revelar alguma tragédia. Então, nós brasileiros que moramos aqui na verdade aprendemos rapidamente a preferir que nada se fale do Brasil. Aqui não tem aquela de “falem bem ou mal, mas falem de mim.” Se falam de nós, só tem que ser mal.
E assim foi desta vez. A palavra “riot”, a mesma usada para descrever a “primavera árabe,” apareceu, em uma sentença, junto com duas cidades, Rio de Janeiro e São Paulo (ambas razoavelmente bem pronunciadas, por sinal, o que é uma melhoria considerável).
Morar fora do país é uma arte que evolve de uma ciência. Se você fica o tempo todo no novo país, e não se importa com sua terra natal, você se sente transformado na metade de você. Por outro lado, se você está no outro país, mas vive a vida do seu país, isto significa que você realmente não saiu de casa, não está fora aprendendo coisas novas, se enriquecendo como pessoa.
Mas tem hora que você, seja qual for seu modo de morar fora do seu país, tem que prestar atenção. Esta é uma destas horas.
Primeiro, preciso dizer que, por um lado, surpreende ver que “o povo está na rua” no Brasil. Que eu me lembre, da última vez que um movimento significativo como este aconteceu quando eu morava no Brasil, foi o movimento para as eleições diretas. Logicamente aquele movimento causou um impacto na história do Brasil. E, em seguida, a julgar por uma série de emails que tenho recebido de parentes e amigos, estas demonstrações não surpreendem, porque o volume de emails de caráter supostamente político tem aumentado.
No entanto, o que preocupa é o fato de que tantas destas informações que aparecem em mensagens de email são erradas, tendenciosas, e que querem provocar uma reação. Por exemplo, na semana passada circulou uma mensagem dizendo que o Brasil é o país com o imposto mais alto do mundo. E vinha uma porção de números, supostas comparações com outros países, tudo realçado com cores diferentes. E termina chamando o atual governo “uma corja”. Por favor. Se não há respeito, não pode haver discussão civilizada, não se pode chegar a nenhum ponto positivo.
Qualquer pessoa que queira verificar tais informações sobre o imposto no mundo, facilmente vê que esta informação não é verdadeira. (Recomendo uma rápida olhada nesta página: http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_tax_rates, por exemplo). Mas, ao chamar o governo de “corja,” obviamente o/a autor/a da mensagem quer obter uma adesão do leitor a esta visão porque quem gostaria de estar de acordo com a “corja”?
Outra coisa que tenho acompanhado de fora do Brasil é a visível raiva da nossa sociedade classista contra o presidente anterior, a quem chamam de “analfabeto”, “gordo”, “burro”. “Como é possível que um homem que ‘não estudou’ tenha chegado à presidência?” é algo que li muitas vezes. Os comentários maldosos contra ele e sua família eram uma prova, pelo menos para mim, de que muitas vezes até os que vêm da mesma classe social a que pertencia Lula, sentem um prazer enorme em se associarem aos da “classe alta” e criticarem nele aquilo que a maioria dos brasileiros é. Agora que ele não é mais presidente, a raiva se dirige a “essa mulher”. Não podem chamá-la de analfabeta. Mas podem falar da sua vida pessoal como se fossem aquele/a amigo/a do passado que se transformou em inimigo e se vê no direito de expor todos os problemas e defeitos da pessoa.
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Quem se lembra de Edson Luís de Lima Souto? Ele foi uma das primeiras vítimas da repressão da polícia militar, morto em 28 de março de 1964 no Rio de Janeiro quando participava de uma manifestação contra os preços da comida no restaurante da universidade. E nem era estudante universitário. Ainda me lembro da foto do corpo estendido em cima de mesas numa sala de aula, com uma vela acesa em um lado, rodeado dos colegas. Tinha 17 anos. Tinha uma vida inteira pela frente.
Hoje, não precisamos esperar vários ou semanas dias para ver as fotos na revistaManchete, ou Fatos e Fotos. As imagens são imediatas. E os filmes também.
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Como se faz uma revolução? É possível fazer-se uma revolução sem uma agenda política? Ou a base de uma revolução tem que necessariamente ser política, mesmo quando se diz apolítica, porque se se está contra o poder estabelecido, então se quer o fim deste poder? Quem lucra com isto?
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Reza era estudante do colegial em Teerã nos anos 1970. Junto com seus amigos, saiu às ruas e sofreu as consequências: foi agredido pela polícia, levou jatos de água. Mas continuou, até que o Xá foi deposto. Por coincidência, mais ou menos na mesma data saiu a resposta do hospital em Londres onde o aceitaram para fazer uma série de operações para corrigir a sua coluna. Ele não queria ir, mas a família decidiu que esta era uma oportunidade única, e, afinal, o Irã estaria lá mesmo quando eles voltassem.
Mas o Irã não estava mais. E ele não pôde voltar mais. Tudo que sua família tinha — uma pequena fábrica, uma casa, um automóvel — tinham sido confiscados. Muitos dos seus amigos tinham sido sumariamente executados porque não estavam de acordo com a nova ordem. Parentes desapareceram.
Quando conheci Reza no Japão, ele falava desta ocasião no Irã com grande mágoa, remorso, e raiva, sobretudo dos religiosos que, de acordo com ele, “roubaram a revolução”. “Quantos jovens lutaram! Quantos! Para quê? Pra nossos sonhos de democracia serem virados de pernas para o ar!”
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Dia 20 de junho, outra manifestação em 38 cidades do Brasil, de acordo com mapa disponível na internet. Em São Paulo, muitas pessoas não puderam voltar pra casa até depois da meia noite. No Rio, barricadas com fogo nas ruas. Em Brasília, tentativa de invasão do ministério de relações exteriores e apedrejamento da catedral de Brasília. Mais passeatas previstas. A situação continua volátil, não se sabe para que lado vai, o que pretende.
Ou então não continua. A situação está exatamente como se queria. Pelo menos isto é o que vejo daqui, ao ler o aumento de mensagens contra o atual governo, e os ataques pessoais à presidente Dilma, a qual é chamada de forma desrespeitosa, simplesmente “Dilma”. Alguns cartazes que vi em imagens diziam “Vamos pegar a Dilma”.
Este tipo de atitude ameaçadora parece o prenúncio de um estupro de uma mulher por uma turba enlouquecida. De repente, a presidente não é a pessoa eleita pela maioria. Ela fica reduzida a ser “essa mulher” que pode ser “pega” pela multidão. O que querem fazer com ela?
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De acordo com as notícias, os manifestantes têm exigido expressamente que partidos políticos não sejam parte deste movimento. Através de vaias, estão conseguindo que as bandeiras de partidos políticos sejam baixadas e removidas.
Outra vez a mesma pergunta: é possível fazer-se uma mudança política sem uma agenda política?
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O que vem a ser a “cura gay”? No dia 20 de junho, ao procurar notícias sobre as manifestações, me deparei pela primeira vez com este termo, e fui saber do que se trata. De repente, tive a impressão que o Brasil que propõe que tal “cura” seja legalizada e permitida é um país desconhecido. Estamos no século XXI?
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Para informação dos que não sabem: não existe lanche grátis nos Estados Unidos. Nem ônibus, nem trem. Nem faculdade grátis. Aqui TUDO É PAGO. Vocês que estão reclamando dos supostos altos impostos, pergunte-se: você foi, ou mandou seus filhos para a escola estadual no curso fundamental e médio? Você pagou mensalidade? Você foi, ou mandou seus filhos para uma faculdade estadual ou federal? Você pagou mensalidade?
Mas é claro que o sistema é injusto, e o vestibular acaba premiando os que ja’ tiveram vários prêmios, tutores, professores mais bem pagos. Sorte sua! Mas, o quê? Você está reclamando porque agora existe uma quota para as minorias e para os que estudaram em escolas estaduais?
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Para os menos avisados: você sabia que no país que mais gostamos de observar, os Estados Unidos, não existe um sistema como o SUS? Nem nunca vai existir! A reforma da saúde, plataforma maior de Obama, quando conseguiu sair do senado e da câmara dos deputados, era uma colcha de retalhos podres costurada com linha de água. Não é um sistema de saúde como o que os brasileiros podem ter.
Naturalmente que o SUS não é excelente! Mas se você quebra a perna na rua, não tem seguro, sua perna vai ser radiografada e engessada (experiência pessoal). Se você tem uma crise de rins, e não tem seguro, você vai ser atendido, mesmo tendo que esperar várias horas numa sala de espera superlotada (experiência pessoal  com alunos intercambistas). Logicamente você vai ficar irritadíssimo/a por ter que esperar com dor. E o consultório não é de última geração. Mas você é atendido/a. Tudo grátis.
Experimente passar por algo assim em outro país. Ninguém atende ninguém sem antes mostrar a identidade e aquele documento mais importante ainda: o cartão de crédito. E se você não tem seguro, o preço é o dobro. Não pode pagar? Pena. Seus bens vão ser confiscados.
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Meu pai foi boiadeiro uma grande parte de sua vida. Sempre me contava histórias deste estilo de vida, de como era bonito levar o gado de um lugar ao outro, montado em um cavalo, com seu berrante, a matula com comida e água, os longos entardeceres, as fogueiras de noite, as conversas com os demais boiadeiros. Era uma vida bonita, ele dizia, porque viam animais diferentes, e uma onça inclusive uma vez. Mas o que ele mais temia era o estouro da boiada, porque quando isto acontecia, ninguém podia prever o resultado final. Por isso, ele ensinava, era sempre importante compreender o gado, acalmar os animais que estivessem nervosos, e sempre se certificar que eles estavam bem tratados, satisfeitos, para poderem seguir pela estrada rumo ao seu destino.
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No dia 20 de junho, em Ribeirão Preto, um jovem de 18 anos foi morto ao ser atropelado por um carro. De acordo com as noticias disponíveis na internet, o motorista do carro se enfureceu quando alguns jovens manifestantes tentaram impedir sua passagem, e um inclusive desferiu um soco contra o veículo.
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No dia 20 de junho, em Brasília, um grupo de manifestantes apedrejou a Catedral de Brasília. Por quê? Afinal, Catedral de Brasília é um patrimônio nacional, um monumento de valor artístico reconhecido mundialmente, e é um dos símbolos do Brasil, independentemente da religião. Qual é o próximo, o Cristo Redentor no Rio de Janeiro?
A não ser que, de dentro deste movimento supostamente a-político, haja elementos que querem exatamente isto, destabilizar o movimento e a tentativa de demonstração democrática contra (ou a favor) de algo.
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O que acontece quando um movimento é “sequestrado” por um grupo organizado, que toma vantagem da energia da multidão para seus próprios fins? Os exemplos da história são conclusivos: o interesse da maioria não é o interesse deste grupo, que vai tomar o poder usando a energia da multidão, atiçar a multidão a fazer o que o grupo quer, e depois, mais tarde, punir alguns membros da multidão para que se lavem da culpa.
Daqui de longe, ao ver as imagens e acompanhar o que está acontecendo no Brasil, a apreensão é muito grande. É possível que este movimento se organize com plataforma concreta, e que líderes orgânicos surjam no processo. Isto é o que espero. Mas, ao mesmo tempo, o que assusta é a possibilidade de que grupos — tanto da direita como da esquerda — se aproveitem da ocasião para desestabilizar o país, fazer uma caça às bruxas reais ou imaginárias, e lançar por terra o que o país tem conquistado desde o fim da ditadura.
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Apesar de tudo, é uma grande emoção ver, mesmo de longe, que os brasileiros e brasileiras que aparecem nestas manifestações, muitos nascidos muito depois do movimento para as “Diretas já!” têm peito para sair às ruas, reclamando algo em que acreditam. A democracia vive, e como tudo que vive, muda, cresce, toma rumos diferentes. Este Brasil jovem e vibrante quer ser parte do processo. Mas, é muito importante que o inverno do seu descontentamento não seja sequestrado por outros que querem fazer dele seu próprio verão.

* EVA PAULINO BUENO é professora de Espanhol e Português na St. Mary´s University, em San Antonio, Texas. É autora de vários livros e artigos sobre literatura brasileira, cultura popular, e estudos da mulher. Seus livros mais recentes: The Woman in Latin American and Spanish Literature (McFarland, 2012) e Amacio Mazzaropi in the Film and Culture of Brazil: After Cinema Novo (Palgrave, 2012).