MARLENE NOVAES*
O que foi isto? O que aconteceu para que mais de 1 milhão e meio de pessoas em 19 capitais e mais de 100 cidades brasileiras saíssem às ruas protestando? Qual é a natureza e o sentido das manifestações que tomaram o país, configurando o maior movimento popular da história do Brasil? Para qual direção apontam? São perguntas que persistem duelando com nossas inteligências. Como fenômeno social complexo, os atuais movimentos sociais intrigam analistas que aspirem às interpretações definitivas, haja a vista que a velocidade vertiginosa dos acontecimentos impede inferências sobre as tendências futuras. De todo modo, é intrigante refletir sobre os constrangimentos e as perspectivas abertas pela dinâmica dos movimentos neste tempo de redes sociais ativas.
Em Brasília, quando manifestantes violentamente chutaram o prédio do Congresso Nacional, espectadores pareciam torcer para que o mesmo não resistisse aos golpes e caísse de podre. Se as coisas por lá não estão podres, ao menos fedem muito. O descontentamento com o cenário nacional levou às ruas sujeitos de diferentes percursos sociais. O Movimento Passe Livre São Paulo (MPL) chamou mesmo foi para ir até ali na esquina, em passeata pela revogação do aumento da tarifa de ônibus. Mas, a multidão que se foi constituindo nas avenidas vinha com mais fome que os pobres que tem fome na rua. Uma fome velha, sentida, batida, dobrada e redobrada por respeito aos direitos de cidadania plena, pela partilha nas decisões do Estado, por uma vida civil com saúde, trabalho, moradia e educação e, sobretudo, fome de doer entranhas pela moralização na administração política da coisa pública.
Como lembra Todorov (2010), as guerras civis são o resultado da intolerância dos dominadores. O povo descontente tomando as ruas aos borbotões, a ameaça de generalização dos quebra-quebras, a violência desferida contra os espaços de poder constituídos, entre outras coisas, obrigou a imprensa a um movimento de câmera mais solidário com o povo. Diante dos fatos, era preciso soprar com calma a fogueira explosiva em que se transformou o Brasil, de 10 a 21 de junho de 2013. Veículos de comunicação reacionários, como a Veja, apoiaram as manifestações, difundindo temores de ordem persecutória. Muitos aventaram a hipótese de golpe de Estado e a direita provou, mais uma vez, sua inegável inteligência e habilidade para produzir a acomodação das massas. Ainda assim, o povo saia às ruas.
A emergência dos acontecimentos, tendo lugar no contexto global da sociedade em rede, foi fartamente favorecida pelos usos sociais das redes sociais. A constituição de uma nova cultura tecnológica e suas formas correlatas de relações sociais em rede teve papel decisivo no desenho, curso e desdobramentos dos ocorridos.
A oportunidade para que a multidão apresentasse publicamente seu seleto elenco de inconformismos abriu-se quando a insatisfação social atingiu índices intoleráveis em paralelo com as atuações do #VemPraRua, #ChangeBrazil e #AcordaBrasil, responsáveis por ampliar as pautas de luta do movimento. Facebook, twitter e suas hashtags funcionaram como condição necessária, mas não suficiente, para a emergência dos movimentos sociais baseados em redes, estes que inquietam pela rapidez com que aglutinam sujeitos em suas mais destacáveis pluralidades. E a vantagem da pluralidade reside, como sabemos, no fato de garantir, a cada um, a liberdade de pensar e julgar.
As perspectivas abertas pelos movimentos sociais baseados em rede parecem promissoras. Uma nova cartografia política tem sido ali desenhada a partir da ativação de uma sociabilidade crítica calcada no julgamento. Agora, surpreendentemente o sujeito tornou-se o produtor da informação que percorre a rede acompanhada de julgamentos que instigam o ativismo social porque elevam os níveis de consciência geral. Como diria o Lula, nunca antes na história deste país vivenciamos algo equivalente. Agora o mover das peças no jogo político recomenda não ignorar a rapidez de mobilização das massas e seu poder de xeque-mate.
E, se a identidade de um fenômeno social anda colada à identidade de seus representantes, caberia prosseguir perguntando sobre os atributos do sujeito do movimento social baseado em rede que aqui nos interessa. Até onde nos foi permitido notar, trata-se de um sujeito individuado detentor de potencialidades críticas, disposto a manter a si mesmo no contexto da pluralidade das diferenças, mas também interessado em experimentar subjetividade social, mesmo porque é bem isto que o capitalismo faz: produz subjetividade seriadas dóceis ao controle social. Porém, valendo-nos das ideias de Guatarri (1996), é possível notar que a esta nova cartografia política que está em jogo é dada a condição de produção de processos de singularização, uma singularização daquele tipo que: “coincida com um desejo, com um gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de sociedades, os tipos de valores que não são os nossos”.
Entendendo revolução, aos modos de Guatarri, como tudo o que comporta um caráter transformador e irreversível, vamos concordar que estamos vivendo um processo revolucionário. Quem estava nas ruas era o sujeito singularizado, aquele que elevava seu cartaz gritando forte; o cartaz que redigiu em sua casa, com sua caneta denunciando aquilo que faz contraponto à sua felicidade particular. Nas avenidas, as diferentes singularidades confluíram, entrelaçaram e amarraram forte um desejo e outro desejo e mais outro até tecer uma nova voz para o país, agora não mais ressabiada ou ressentida pelas crueldades pontiagudas de um Estado leviano, não mais cativa da desesperança do seu poder de agir como catalisador para a artesania de uma sociedade de direitos e justiças assegurados. Ninguém saiu em marcha para pedir, fomos lutar para conquistar o que é de nosso direito.
É preciso, contudo, organização no plano geral a fim de maximizar as vantagens das redes sociais em seu potencial de mobilização e transformação social quando se trata de constituir movimentos com base na pluralidade ideológica de seus participantes. Nestas situações o movimento deve assumir o tom suprapartidário, e todos sabem o que reza a etiqueta para a ocasião: nada de bandeiras. Ali eram mais de um milhão e meio de reclamantes. Todos reacionários? Quem opta por desqualificar o caráter da massa cansada dos sedativos políticos está criando subterfúgios para negar resposta ao que é mais urgente: o que são as esquerdas no Brasil, hoje? Qual o projeto de transformação que defendem para o país e como têm se dado os movimentos de base a partir dos quais tais projetos são construídos e debatidos com o povo?
Agora, quando partidos políticos dão largada à corrida para angariar a simpatia das massas, a grande tarefa passa a ser a apresentação de propostas que traduzam os anseios de povo. O populismo e seus riscos estão respirando no nosso cangote. Um “queremismo” de novo tipo nos ronda. Em 1945, quando o povo gritava “queremos Getúlio” deu-se sua primeira deposição. Mas, aquele não era um tempo de redes sociais e sujeitos singularizados. Esta mania do brasileiro de nunca acreditar em si mesmo precisa ter fim.
O que quer o povo indócil? Não vai ser a Globo quem vai responder isto. Em tempos de redes sociais as análises de textométrica são mais qualificadas para dar as respostas precisas. Os partidos estão acossados pelo povo. Atribuir urgência na resolução da questão da mobilidade social urbana significa afastamento do cerne do problema em direção ao que parece de mais fácil solução. Ninguém quer o ouro de tolos. A massa quer mais que catraca livre, PSOL. Por outro lado, corre a interpretação que o povo enojou-se da política partidária e para este caso a solução seria oferecer a possibilidade de candidaturas de pessoas fora de legendas políticas ou promover a reavaliação funcional dos atuais partidos, algo do tipo trocar nomes antigos para que adquiram novas conotações distantes de seus sentidos originais, assim defende Cristovão Buarque (PDT). De todo modo, quem souber entender os reclames do povo sairá à frente. A reforma política é indiscutivelmente um clamor público. Penso que com bandeiras abaixadas devemos partir para esta luta. Não dá mais para ficar elegendo político de rabo preso.
Este é o tempo em que vivemos a revolução do sujeito singularizado, este que rejeita a serialização da subjetividade, tal como quer o capitalismo com suas perversidades. Trata-se de um sujeito que não abre mão dos seus desejos e não renuncia a conquista de seus objetivos. O sujeito singularizado vai à rua para manifestar o seu desejo porque de posse da liberdade de viver seus processos e compreender sua situação no entremeio de um mundo que tange gente feito gado.
Conforme Piotr Kropotkin: “Nenhuma revolução social pode triunfar se não for precedida de uma revolução nas mentes e corações do povo.” A revolução do sujeito é a mais necessária de todas. Eis-nos, portanto, diante dos novos sujeitos dos movimentos sociais baseados em rede, aqueles capazes de lutar com mesmo vigor, tanto para a qualidade da sua vida pessoal, quanto pela da vida coletiva através da expressão de desejos que abundam em repetições e ecos inteligíveis. O meu desejo é também o seu desejo. E juntos nosso desejo é mais vida, mais direitos e liberdades. Este ganho é revolucionário porque transformador e irreversível. Ninguém mais poderá calar a voz do povo, não neste tempo regido pelo novo paradigma tecnológico. Chegou o tempo de temer o poder do povo.
Referências
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
GUATARRI, Félix. Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996.
TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Petrópolis: Vozes, 2010.
* MARLENE NOVAES é antropóloga, Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e docente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá.
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