CÁSSIO AUGUSTO GUILHERME*
É extremamente difícil reunir em um único texto tantos acontecimentos, vertentes, explicações, exemplos e ponderações, ainda mais quando se está vivendo aquilo que se quer explicar. É a terceira vez que começo este texto e não tenho certeza ainda se irá tomar o rumo que desejo. Acho que vou ter que fazer outros depois.
Penso que toda forma de expressão deve ser respeitada, porém, para ser respeitada, esta forma de expressão deve também respeitar. É muito válido e importante o momento que o Brasil vive. Gente na rua é o que nós, da esquerda, sempre defendemos e estimulamos. Como bom esquerdista, e assumo isso logo no começo do texto para que o leitor não seja induzido a uma falsa imparcialidade, sou a favor das manifestações e entendo que precisamos defendê-la. É justamente por defender as manifestações, que venho fazendo ponderações aos manifestantes em minha página no Facebook e agora neste texto (espero não me perder em meio a tantas).
Primeiro, é importante salientar que só temos um movimento nacionalizado hoje em dia, graças a três fatores: ação truculenta da Polícia Militar de São Paulo na noite de 13/06 (o que diga-se, acontece todos os dias nas periferias do Brasil contra a população miserável); a defesa que a mídia tradicional fez da atuação da Polícia e taxação do Movimento Passe Livre como meros “vândalos” comparáveis ao criminoso Primeiro Comando da Capital (o que também é comum contra todos os Movimentos Sociais, principalmente o MST); e a força que as redes sociais têm hoje em dia para disseminar opiniões. Tirando dois destes elementos, a questão continuaria circunscrita às municipalidades.
Não vejo nas manifestações uma coesão e isso me preocupa. Não existe “o” movimento, mas sim vários e dispersos movimentos dentro das manifestações. A questão do transporte público foi somente o estopim, mas agora vejo todo tipo de questão, umas até contraditórias entre si. Me parece mais uma comemoração de título mundial, muita festa, diversão do que necessariamente um Movimento Social com pautas, propostas, objetivos, lideres. Está na moda tirar foto no protesto para postar no Facebook.
Em 1968, os estudantes de várias partes do mundo foram às ruas protestar contra tudo e contra todos. Queriam mais liberdade, mais paz e amor, menos repressão, mais educação. Não havia claramente uma liderança, uma pauta, uma proposta para ser discutida. Ficaram sem nada ou com Ditaduras. Acredito que o exemplo seja válido para os dias atuais. O movimento atual não tem pauta, nem projeto, nem proposta, salvo raras exceções, como por exemplo em Maringá, onde os manifestantes conseguiram que todos os vereadores da cidade assinassem a abertura de uma CPI para investigar o monopólio do transporte público no município.
Um elemento a ser considerado é a crescente rejeição à classe política. Na boca destes neo-manifestantes, tudo é culpa dos políticos, como se eles fossem uma espécie de ETs que surgiram do nada e nos escravizaram. Esquecem-se que somos nós que os colocamos lá a cada quatro anos. Aliás, cabe a pergunta aos jovens, lembram-se em quem vocês votaram para presidente, senador, deputado federal, governador e deputado estadual nas últimas eleições?
O discurso apartidário presente em boa parte das bocas dos neo-manifestantes e prontamente encampado pela mídia tradicional por motivos óbvios também merece destaque e os partidos precisam rever suas formas de comunicação com a sociedade. Os gritos de “sem partido” mostram a total falta de conhecimento dos neo-manifestantes sobre o sistema eleitoral brasileiro e no caso, principalmente sobre a importante atuação de partidos como PSTU e PSOL, que estão na rua há anos e organizaram os primeiros protestos, uma atitude anti-democrática que vem servindo de excelente desculpa para que fascistas ataquem militantes de esquerda.
Uma discussão que voltou à tona nestes dias é sobre a dicotomia direita x esquerda. Há quem diga que isso não exista mais nos dias de hoje. Não concordo. Somente a direita insiste em dizer que tal dicotomia não faz parte do século XXI e as diferenças continuam claras e as mesmas de séculos atrás. Enquanto a direita faz o discurso da meritocracia, do conservadorismo e da moralização, a esquerda insiste em suas bandeiras sociais e de tratar os desiguais de forma desigual, para reduzir a desigualdade. Aliás, tarifa zero para o transporte público, mais escolas públicas, mais hospitais públicos, mais rodovias públicas, são bandeiras da esquerda. Apesar disso, o movimento está tomado pela extrema-direita. Neo-nazistas, skinheads, saudosos da Ditadura Militar, homofóbicos, machistas, racistas se infiltraram na espontaneidade ingênua da maioria e vão aos poucos disseminando as suas pautas pseudo-moralistas, ou alguém viu cartazes pedindo reforma agrária, redução da jornada de trabalho, reforma urbana ou reforma política?
Bradar contra a corrupção é o grito principal. Porém, continua sendo de forma vaga, afinal, nenhum político vai admitir que é corrupto e todos virão à público dizer que também são contra a corrupção. Fiz umas provocações em minha página de Facebook dizendo que furar fila, colar na prova, dirigir o carro do pai sem carteira ou aceitar gasolina de candidato em época de eleição, não deixa de ser uma forma de corrupção e a aceitação não foi das melhores. É fácil pedir que o outro se moralize, quando nós aqui em baixo não nos moralizamos.
Os neo-manifestantes recém acordados não possuem consciência histórica. Não lembram, se esqueceram, mataram a aula ou estavam mais preocupados em colar na prova e assistir a Malhação do que em pensar a respeito de, por exemplo, Canudos, o petróleo é nosso, reformas de base, diretas já, ocupações de terras, caras pintadas, protestos contra a Alca e as privatizações. Aliás, esta classe média que hoje diz lutar por direitos, é a mesma que até quinze dias atrás rotulava os que lutavam por direitos como “desocupados, vândalos, baderneiros, comunistas comedores de criancinhas”, etc. Realmente, precisamos de mais educação. Estes recém acordados bradam o instigante “vem pra rua”, mas não possuem a mesma vontade para ir às bibliotecas estudar, por exemplo, sobre direito, cidadania e movimentos sociais.
São tão despolitizados (não que isso seja culpa deles, claro) que não fazem a mínima idéia, por exemplo, da existência dos Conselhos Municipais de saúde, educação, transportes e da possibilidade de criar um orçamento participativo em seu município. São tão despolitizados que nunca foram em uma reunião da câmara de vereadores da sua cidade, muito menos leram a Constituição Federal para saberem que o destinatário de um protesto contra a PEC 33, 37 ou pela saída de Renan Calheiros da presidência do Senado é o Poder Legislativo e não o Executivo; que a prisão dos “mensaleiros” compete ao Poder Judiciário e não à Presidente. Mas claro, é mais fácil culpar a Dilma.
Por falar em culpar a Dilma, parece que o Brasil passou a ter problemas apenas a partir de 2002, com a eleição de Lula. Nossos neo-manifestantes não viveram ou então se esqueceram do que foram os anos 1980 e 1990 neste país, para ficarmos apenas em exemplos recentes. Mas como são na maior parte desinformados, acreditaram no discurso de que o “mensalão” foi o maior escândalo de corrupção do Brasil e que tudo vai mal no país. Não sabem o que foi o desmonte do Estado feito no Governo Fernando Henrique, a tentativa de “flexibilizar a CLT”, o presidente que chamou os aposentados de vagabundos, que tirou dinheiro da educação para salvar bancos quebrados, que não construiu nenhuma nova universidade federal, que vendeu a preço de banana as nossas estatais e o dinheiro foi parar em paraísos fiscais na conta de pessoas ligadas ao PSDB (uma dica, ao invés de gastarem com combos de vodka na balada este final de semana, vão na livraria mais próxima e comprem o livro “A Privataria Tucana) que teve uma política externa submissa, que os escândalos de corrupção eram todos engavetados pelo Procurador Geral da República, como o do Sivam, banco Marka, Sudam, Sudene, e sequer chegavam ao STF.
Claro que o PT também tem culpa nesta questão e muita. Deixou de ser um partido de bases e militantes, para fazer acordos escusos com o coronelismo do PMDB, que inclusive possibilitou a eleição de Marco Feliciano para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara e perdeu a bandeira da ética, depois do escândalo do “mensalão”. É preciso fazer a mea-culpa.
Uma vez que o movimento perdeu o controle (o MPL anunciou que não convoca mais manifestações) não fazemos a mínima idéia para onde, como e com quem ele vai. A direita golpista parece se articular. Em 1963-64 a população estava nas ruas reivindicando reforma agrária e da educação. A elite conservadora, reacionária, com medo do povo, aproveitou a deixa para criarem o discurso de ameaça à ordem e da necessidade dos militares deporem o Presidente para salvar a democracia. Inclusive, se naquela época tínhamos o IPES/IBAD que fazia propaganda anti-esquerdista no Brasil, hoje temos o Instituto Millenium, a Veja, Folha e várias páginas no Facebook que fazem a mesma coisa. As cartas parecem estar na mesa, novamente. Infelizmente a maioria “faltou” nesta aula de História, também.
Outro exemplo é 1989. Saíamos de uma Ditadura e o sentimento geral da nação era por modernização, transparência e fim da corrupção. Como os dois candidatos favoritos era à esquerda, Fernando Collor de Mello, um ex-deputado federal pelo partido da Ditadura, encampou o discurso moralizante, nacionalista e anti-partidário, prometeu acabar com os marajás, convenceu a maioria, com a ajuda da Globo e muitos empresário e deu no que deu. Mais uma vez, parece que nossos neo-manifestantes “faltaram” a esta aula.
E a mídia tradicional também apanha. “O povo não é bobo, abaixo à Rede Globo” é um coro que soa como música aos meus ouvidos. Com medo, a Globo estabeleceu a estratégia certa para seus interesses: defende que as manifestações sejam “sem partido”, assim enfraquece o movimento, que fica ainda mais perdido e pode ser pautado pela emissora e seus amiguinhos midiáticos. Falando nisso, será que no facebook nossos jovens têm mesmo acesso à uma informação melhor? Pelo que vejo na rede social, não. Se o chefe da propaganda nazista Goebbels vivesse hoje, diria que uma mentira compartilhada mil vezes se torna uma verdade. É o caso por exemplo dos muitos brasileiros que acreditam que o Auxílio-Reclusão é para todos os presos e que o “Bolsa Prostituição” foi criado pelo Governo.
Para concluir, penso que o momento é delicado. Há boa vontade de muitos manifestantes, mas o desconhecimento acerca do funcionamento da democracia burguesa pode colocar todo o país diante de um revés perigoso. Levamos anos lutando contra uma Ditadura e agora estamos lutando para construir um país democrático e mais cidadão. Não podemos jogar fora a criança com a água e a bacia. É preciso mais reflexão tanto dos políticos como dos manifestantes. O Brasil não está perfeito, mas já esteve muito pior. É preciso garantir as conquistas sociais e econômicas dos últimos anos, estudarmos mais (para além dos 140 caracteres das frases de efeito!) participarmos mais da vida partidária-eleitoral, e o principal: apresentarmos propostas claras.
* CÁSSIO AUGUSTO GUILHERME é Meste em História pela UEM.
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