quarta-feira, 26 de junho de 2013

Houve uma vez um outono: para além do vandalismo, uma pedagogia da existência

Blog da REA

ARISTÓTELES BERINO*
As estações
Nos últimos dias do outono alguma coisa aconteceu. A temperatura não parecia de acordo com a época, confundindo os sentidos. Agora, no limiar do inverno, tudo é epiderme nas cidades. A mudança da estação traz consigo sensações variadas, de acordo com o clima e também com a sensibilidade das ruas. Alguns corpos reagem com a abertura dos poros. Querem deixar fruir a época em que vivem. Outros, partidários da imunidade do tempo, esperam que a brisa outonal já tenham ido embora. São os que sonham com o passado ou com o futuro, sem nunca sentir as estações.
Sobre esses dias, acompanhei do Rio de Janeiro, cidade onde moro. Dizer que vi através de uma cidade é apenas uma localização relativa. Porque, de tudo o que ocorreu, muito foi promovido exatamente em razão dos contatos virtuais que ultrapassam fronteiras, dos meios de comunicação desenvolvidos e das extensas redes de correspondência. O que vi foi com mil olhos. Não quero dizer com isso que vi tudo. Entre tantas imagens, pode até ser que tenha visto demais, sem saber escolher os mais proveitosos ângulos de observação. Tento ajeitar aqui as minhas impressões, provisórias, porque tudo ainda está em brusco movimento.
No Manifesto Comunista, Marx e Engels (2007, p. 45), quando analisam a passagem da sociedade precedente para a sociedade capitalista, dizem: “tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social”. Transformações que fazem ruir instituições e relações que pareciam eternas. Abalos que abrem os olhos para tudo o que se passa, sem mistificar a vida social. Um horizonte aberto à vista, na verdade. Olhar, contudo, não é um automatismo. É também uma experiência social. Inclusive, da própria luta de classes. E ainda: contraditoriamente, fantasmas podem ajudar a ver.
Outono
Começo a escrever esta breve reflexão a respeito das manifestações ocorridas em várias cidades brasileiras depois de acompanhar notícias que tiveram início com a marcha do dia 13 de junho em São Paulo e a ocorrida no dia 21, em Nova Iguaçu, cidade onde trabalho, em um campus da UFRRJ. A segunda manifestação na cidade do Rio de Janeiro, no dia 20, segundo estimativas da mídia, reuniu trezentas mil pessoas. No mesmo dia, somando os encontros em mais de cem cidades, foi também noticiado que um milhão de pessoas foram às ruas. Outras versões falam de mais de um milhão apenas na cidade do Rio de Janeiro.
Durante esse período acompanhei sobre os acontecimentos através do Canal GloboNews, do Twitter e do Facebook. Também através de revistas semanais e jornais diários. Não conversei muito, pessoalmente, com colegas professores ou amigos. Minhas formulações foram tecidas, então, através do que foi recebido e acessado das mídias – e de aquisições prévias, claro (minhas leituras e experiências, por exemplo). Se comparar com a minha vivência de outros episódios políticos do país, agora as redes sociais no espaço virtual tiveram uma pregnância marcante nos meus “diálogos”.
A primeira marcha – e depois sua multiplicação pelo Brasil – mobilizou amplamente as mídias das grandes corporações, que logo passaram a procurar explicações que pudessem dar sentido ao que estava acontecendo. Também políticos ficaram preocupados; o governo federal, vacilante. Inicialmente uma mobilização em torno do MPL (Movimento Passe Livre) em São Paulo, as manifestações foram ganhando uma pauta ampla de reivindicações. A agitação política passou a ser reconhecida, por suas características, como inédita na história do país e associada a outros movimentos parecidos, que ocorreram em outros países, como a Primavera Árabe e os panelaços na Argentina.
Quando a temperatura das marchas começou a subir, com a invasão, a pichação e danos provocados em prédios públicos, e também com a destruição e saques em estabelecimentos privados, uma caracterização dos movimentos tem início na TV: a participação “pacífica” e “ordeira” de uma “maioria” que pratica a liberdade da democracia e a participação dos “vândalos”, sempre genericamente identificados como uma “minoria”, chamada de “punks”, “infiltrados”, “bandidos” ou “desordeiros”. A repetição obsessiva das palavras “pacífico” e “vândalo” por profissionais da imprensa deixa ver a pretensão de educar a audiência e estigmatizar setores entre os manifestantes.
Primavera
Duas questões, ainda no início de tudo, apareceram como enigmas na busca de uma explicação para a situação de grande tensão e confrontos nas cidades envolvidas. Que juventude é essa e o que querem exatamente como agenda política para o país? E ainda: Que agenciamento político é esse, suprapartidário, que utiliza as redes sociais e a internet de forma ainda não conhecida no país? Importante observar que, no entanto, a primeira questão não foi muito explorada. Na TV, pareceu oportuno trabalhar apenas com as figuras genéricas do “pacífico” e do “vândalo”. Sobre as redes sociais, a conclusão foi pronta: os políticos à moda antiga não estavam preparados para uma nova produção política.
A revista Veja deu como matéria de capa, nas edições do período até aqui transcorrido, sua visão sobre as manifestações. Primeiro, destacou: “A revolta dos jovens”. Na semana seguinte, em uma chamada Edição Histórica: “Os sete dias que mudaram o Brasil”. As manchetes, superlativas, procuravam sintetizar, de forma espetacular, a dimensão que as marchas foram adquirindo, com o número de participantes e as radicalizações da rebeldia, como depredar a Assembleia Legislativa no Rio de Janeiro ou ocupar o teto do Congresso Nacional, em Brasília. Neste momento, dois campos gravitacionais concentram as discussões sobre as manifestações.
O primeiro deles está ligado à questão do governo da população. Está claro que diante das novas tecnologias, as formas de contato permitem mobilizações até agora mais velozes e versáteis do que a capacidade do Estado acompanhar como gostaria a realização e os efeitos da agitação popular. Muitas vezes foi repetido também que os partidos não representam mais o espectro político existente. O que fazer agora para administrar a situação e evitar algo pior, sem controle, mais adiante? Além de uma solicitada aproximação para conversar (mas falar com quem?) e discutir sobre as questões que sugerem tanta insatisfação e revolta, a polícia tem sido chamada para conter. O povo ainda é um caso de polícia, de todo modo.
No dia 21, a presidente Dilma faz um pronunciamento. Acompanhando as reações pelas redes sociais, vi várias declarações de aprovação e outras tantas de decepção. Reações que expressam, de algum modo, o outro campo gravitacional de questões a respeito das manifestações. O que realmente significam para as esquerdas tradicionais e para os críticos do capitalismo de várias matrizes? Vir para as ruas é estar acompanhado de quais pretensões políticas? Minha visão é de que a multidão dessas manifestações é formada por vontades que se encontram em alguns pontos e se afastam em outros. Mas como teorizar sobre isso? Como continuar “ao lado” de tantas diferenças? Não existem respostas seguras agora, mas é preciso começar a responder.
Confiança e desconfiança se abraçam. Tem ocorrido a avaliação, por parte de alguns, que o movimento é de “classe média” e já nasceu refém da sua origem social. Para outros, por trás de tudo, trata-se de uma orquestração golpista contra Dilma. Mesmo assim, as manifestações seguem acontecendo, várias delas combinadas para os dias 22 e 23, final de semana. Uma névoa ainda cobre as cidades e ninguém sabe muito bem o que viu (alguns afirmam ter visto tudo com clareza desde o início…). Agora, uma confusa percepção faz acreditar que algo de bonito realmente aconteceu, mas sem a convicção de que valeu mesmo a pena. Para outras pessoas, o melhor foi nem se deixar tocar. Outras ainda, sem a necessidade de problematizar, estão sorrindo até agora.
Vândalos
Enquanto o número de manifestações e participantes assusta o executivo (federal, estadual e municipal) e setores da esquerda estão contando nos dedos a existência ou não das classes populares nas marchas, há uma conta que não bate mesmo. E essa diferença é exatamente uma das mais recalcadas nas análises dos acontecimentos, porque ficou muito fácil, sem saber fazer essa conta, deixar de considerar esses (i)números. Até agora, nada de realmente significativo foi dito sobre personagem fantasmático, sempre presente, mas cuja existência provoca desprezo difuso das mídias, políticos e intelectuais: o “vândalo”. Melhor que não comparecessem à “festa da democracia” e à teoria política. Melhor que não existissem nas ruas.
“A ‘doxa’, a opinião pública, é ela mesma que evita abordar os problemas em sua verdadeira realidade. É preferível vê-los em sua fantasmagoria ilusória” (MAFFESOLI, 2009, p. 19). Sobre um grupo de participantes exaltados, incômodos e radicais, com gestos extremos para hostilizar policiais, atingir prédios públicos, danificar equipamentos urbanos e quebrar estabelecimentos privados, melhor começar dizendo a verdade. Se estão em número menor, quando comparados com os manifestantes “pacíficos”, não formam uma “minoria” que se destaca apenas pela desordem. Eles estão em todo lugar, importante dizer. Quem são, na verdade?
Essa tem sido uma questão recalcada desde o início das manifestações: quem são e o que sentem diversos segmentos que estão presentes nos atos. Apenas uma investigação bem conduzida proporcionará uma visão adequada dos extratos sociais das marchas e o que pensam politicamente. E mais: o que pensam da cidade. Esse é outro tema denegado nas avaliações feitas até agora. Certa perplexidade sobre o caminho de volta às ruas das manifestações políticas ainda não se abriu para questão fundamental da rua como espaço da cidade e território das presenças e invisibilidades, do estar junto ou das separações.
O fato dos atos extremos e indesejáveis acontecerem publicamente, na frente de todos e das câmeras, contra representantes da ordem urbana e contra instituições que representam a vida seletiva na cidade, precisa vir à tona nas análises. Casas legislativas, edifícios de prefeituras, agências bancárias e meios de transportes suscitam sentimentos bem agudos de revolta, não se pode esconder. Notável a desordem pública, no lugar da insatisfação particular, personalizada e individual. No entanto, até agora, foi mais fácil, não pela facilidade linguística, mas pela exclusão que promove no agenciamento político, chamar de bárbaros aqueles que não falam a mesma língua da programação televisiva, do comportamento “cívico” e da inteligência acadêmica.
Defender a presença dos “vândalos” na análise e crítica das manifestações ocorridas não significa defender de forma absoluta seus atos. Mas incluir nas investigações que procuram explicar amplamente a mudança das estações, também aqueles que, sem serem convidados, aparecem e que através das ações que cometem – que não são residuais, insignificantes e privadas – exibem uma visão do espaço público e das ruas da cidade que muitas vezes não levamos em conta, de acordo com os nossos pertencimentos e escolhas. Também porque não visualizamos bem o dia de amanhã e não sabemos ainda o que somos ou não capazes de fazer com as coletividades e pelas ruas. Basta olhar para a história das sociedades até hoje: as folhas amarelam e caem.
Fundamental viver a própria existência como algo unitário e verdadeiro,
mas também como um paradoxo:
obedecer para subsistir e resistir para poder pensar o futuro.
Então a existência é produtora de sua própria pedagogia.
Milton Santos (2001, p. 116)
Referências
MAFFESOLI, Michel. A república dos bons sentimentos. São Paulo: Iluminuras/Itaú Cultural, 2009.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2007.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.

berinoARISTÓTELES BERINO é Professor do Departamento de Educação e Sociedade no Campus Nova Iguaçu da UFRRJ e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc/UFRRJ). Pesquisador do GRPESQEstudos Culturais em Educação e Arte. E-mail: berino@ufrrj.br

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