segunda-feira, 24 de junho de 2013

Olhando as manifestações no Brasil de longe, mas não tão de longe

Blog da REA

EVA PAULINO BUENO*
“Reparando bem, todo mundo tem problema.
Só a bailarina é que não tem.”
Chico Buarque
Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this son of York;
And all the clouds that low’r'd upon our house
In the deep bosom of the ocean buried
Shakespeare, Richard The Third Act 1, scene 1, 1–4
Agora é o inverno do nosso descontentamento
Transformado em verão glorioso por este filho de York;
E todas as nuvens que baixaram sobre nossa casa
(estão) enterradas no fundo do oceano
Now is the winter of our discontentAs notícias das manifestações de rua no Brasil apareceram na televisão nacional americana como um relâmpago mole: pluft. Não é em que não se esperava algum relâmpago, afinal, assistir notícias na tevê americana é como passar meia hora olhando pra um céu cheio de nuvens escuras, formações de tornados, previsões de furacões, terremotos, nevascas, fogo nas florestas, inundações. E tudo ao mesmo tempo. Sons de tambores.
É que — algo que surpreende muito aos brasileiros recém-chegados a este país — a tevê americana muito raramente menciona o Brasil. O interesse aqui é quase que exclusivamente o próprio umbigo, ou então os parentes mais chegados (os ingleses), ou os primos distantes (a Europa Ocidental), ou os compadres inimigos (os russos), a senhora nova rica que chegou no pedaço com ares misteriosos (a China) ou aqueles incompreensíveis que vivem causando dores de cabeça (o oriente médio). A América Latina se vê resumida ao México, vizinho do lado, fornecedor de mão de obra barata e muitas horas de discussão no senado, na câmara dos deputados, e agora, pelo jeito, de emprego para mais vinte mil soldados que vão ser estacionados na fronteira, vigiando o muro.
Fora disto, quando a tevê fala dos outros países, em geral é pra revelar alguma tragédia. Então, nós brasileiros que moramos aqui na verdade aprendemos rapidamente a preferir que nada se fale do Brasil. Aqui não tem aquela de “falem bem ou mal, mas falem de mim.” Se falam de nós, só tem que ser mal.
E assim foi desta vez. A palavra “riot”, a mesma usada para descrever a “primavera árabe,” apareceu, em uma sentença, junto com duas cidades, Rio de Janeiro e São Paulo (ambas razoavelmente bem pronunciadas, por sinal, o que é uma melhoria considerável).
Morar fora do país é uma arte que evolve de uma ciência. Se você fica o tempo todo no novo país, e não se importa com sua terra natal, você se sente transformado na metade de você. Por outro lado, se você está no outro país, mas vive a vida do seu país, isto significa que você realmente não saiu de casa, não está fora aprendendo coisas novas, se enriquecendo como pessoa.
Mas tem hora que você, seja qual for seu modo de morar fora do seu país, tem que prestar atenção. Esta é uma destas horas.
Primeiro, preciso dizer que, por um lado, surpreende ver que “o povo está na rua” no Brasil. Que eu me lembre, da última vez que um movimento significativo como este aconteceu quando eu morava no Brasil, foi o movimento para as eleições diretas. Logicamente aquele movimento causou um impacto na história do Brasil. E, em seguida, a julgar por uma série de emails que tenho recebido de parentes e amigos, estas demonstrações não surpreendem, porque o volume de emails de caráter supostamente político tem aumentado.
No entanto, o que preocupa é o fato de que tantas destas informações que aparecem em mensagens de email são erradas, tendenciosas, e que querem provocar uma reação. Por exemplo, na semana passada circulou uma mensagem dizendo que o Brasil é o país com o imposto mais alto do mundo. E vinha uma porção de números, supostas comparações com outros países, tudo realçado com cores diferentes. E termina chamando o atual governo “uma corja”. Por favor. Se não há respeito, não pode haver discussão civilizada, não se pode chegar a nenhum ponto positivo.
Qualquer pessoa que queira verificar tais informações sobre o imposto no mundo, facilmente vê que esta informação não é verdadeira. (Recomendo uma rápida olhada nesta página: http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_tax_rates, por exemplo). Mas, ao chamar o governo de “corja,” obviamente o/a autor/a da mensagem quer obter uma adesão do leitor a esta visão porque quem gostaria de estar de acordo com a “corja”?
Outra coisa que tenho acompanhado de fora do Brasil é a visível raiva da nossa sociedade classista contra o presidente anterior, a quem chamam de “analfabeto”, “gordo”, “burro”. “Como é possível que um homem que ‘não estudou’ tenha chegado à presidência?” é algo que li muitas vezes. Os comentários maldosos contra ele e sua família eram uma prova, pelo menos para mim, de que muitas vezes até os que vêm da mesma classe social a que pertencia Lula, sentem um prazer enorme em se associarem aos da “classe alta” e criticarem nele aquilo que a maioria dos brasileiros é. Agora que ele não é mais presidente, a raiva se dirige a “essa mulher”. Não podem chamá-la de analfabeta. Mas podem falar da sua vida pessoal como se fossem aquele/a amigo/a do passado que se transformou em inimigo e se vê no direito de expor todos os problemas e defeitos da pessoa.
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Quem se lembra de Edson Luís de Lima Souto? Ele foi uma das primeiras vítimas da repressão da polícia militar, morto em 28 de março de 1964 no Rio de Janeiro quando participava de uma manifestação contra os preços da comida no restaurante da universidade. E nem era estudante universitário. Ainda me lembro da foto do corpo estendido em cima de mesas numa sala de aula, com uma vela acesa em um lado, rodeado dos colegas. Tinha 17 anos. Tinha uma vida inteira pela frente.
Hoje, não precisamos esperar vários ou semanas dias para ver as fotos na revistaManchete, ou Fatos e Fotos. As imagens são imediatas. E os filmes também.
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Como se faz uma revolução? É possível fazer-se uma revolução sem uma agenda política? Ou a base de uma revolução tem que necessariamente ser política, mesmo quando se diz apolítica, porque se se está contra o poder estabelecido, então se quer o fim deste poder? Quem lucra com isto?
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Reza era estudante do colegial em Teerã nos anos 1970. Junto com seus amigos, saiu às ruas e sofreu as consequências: foi agredido pela polícia, levou jatos de água. Mas continuou, até que o Xá foi deposto. Por coincidência, mais ou menos na mesma data saiu a resposta do hospital em Londres onde o aceitaram para fazer uma série de operações para corrigir a sua coluna. Ele não queria ir, mas a família decidiu que esta era uma oportunidade única, e, afinal, o Irã estaria lá mesmo quando eles voltassem.
Mas o Irã não estava mais. E ele não pôde voltar mais. Tudo que sua família tinha — uma pequena fábrica, uma casa, um automóvel — tinham sido confiscados. Muitos dos seus amigos tinham sido sumariamente executados porque não estavam de acordo com a nova ordem. Parentes desapareceram.
Quando conheci Reza no Japão, ele falava desta ocasião no Irã com grande mágoa, remorso, e raiva, sobretudo dos religiosos que, de acordo com ele, “roubaram a revolução”. “Quantos jovens lutaram! Quantos! Para quê? Pra nossos sonhos de democracia serem virados de pernas para o ar!”
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Dia 20 de junho, outra manifestação em 38 cidades do Brasil, de acordo com mapa disponível na internet. Em São Paulo, muitas pessoas não puderam voltar pra casa até depois da meia noite. No Rio, barricadas com fogo nas ruas. Em Brasília, tentativa de invasão do ministério de relações exteriores e apedrejamento da catedral de Brasília. Mais passeatas previstas. A situação continua volátil, não se sabe para que lado vai, o que pretende.
Ou então não continua. A situação está exatamente como se queria. Pelo menos isto é o que vejo daqui, ao ler o aumento de mensagens contra o atual governo, e os ataques pessoais à presidente Dilma, a qual é chamada de forma desrespeitosa, simplesmente “Dilma”. Alguns cartazes que vi em imagens diziam “Vamos pegar a Dilma”.
Este tipo de atitude ameaçadora parece o prenúncio de um estupro de uma mulher por uma turba enlouquecida. De repente, a presidente não é a pessoa eleita pela maioria. Ela fica reduzida a ser “essa mulher” que pode ser “pega” pela multidão. O que querem fazer com ela?
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De acordo com as notícias, os manifestantes têm exigido expressamente que partidos políticos não sejam parte deste movimento. Através de vaias, estão conseguindo que as bandeiras de partidos políticos sejam baixadas e removidas.
Outra vez a mesma pergunta: é possível fazer-se uma mudança política sem uma agenda política?
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O que vem a ser a “cura gay”? No dia 20 de junho, ao procurar notícias sobre as manifestações, me deparei pela primeira vez com este termo, e fui saber do que se trata. De repente, tive a impressão que o Brasil que propõe que tal “cura” seja legalizada e permitida é um país desconhecido. Estamos no século XXI?
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Para informação dos que não sabem: não existe lanche grátis nos Estados Unidos. Nem ônibus, nem trem. Nem faculdade grátis. Aqui TUDO É PAGO. Vocês que estão reclamando dos supostos altos impostos, pergunte-se: você foi, ou mandou seus filhos para a escola estadual no curso fundamental e médio? Você pagou mensalidade? Você foi, ou mandou seus filhos para uma faculdade estadual ou federal? Você pagou mensalidade?
Mas é claro que o sistema é injusto, e o vestibular acaba premiando os que ja’ tiveram vários prêmios, tutores, professores mais bem pagos. Sorte sua! Mas, o quê? Você está reclamando porque agora existe uma quota para as minorias e para os que estudaram em escolas estaduais?
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Para os menos avisados: você sabia que no país que mais gostamos de observar, os Estados Unidos, não existe um sistema como o SUS? Nem nunca vai existir! A reforma da saúde, plataforma maior de Obama, quando conseguiu sair do senado e da câmara dos deputados, era uma colcha de retalhos podres costurada com linha de água. Não é um sistema de saúde como o que os brasileiros podem ter.
Naturalmente que o SUS não é excelente! Mas se você quebra a perna na rua, não tem seguro, sua perna vai ser radiografada e engessada (experiência pessoal). Se você tem uma crise de rins, e não tem seguro, você vai ser atendido, mesmo tendo que esperar várias horas numa sala de espera superlotada (experiência pessoal  com alunos intercambistas). Logicamente você vai ficar irritadíssimo/a por ter que esperar com dor. E o consultório não é de última geração. Mas você é atendido/a. Tudo grátis.
Experimente passar por algo assim em outro país. Ninguém atende ninguém sem antes mostrar a identidade e aquele documento mais importante ainda: o cartão de crédito. E se você não tem seguro, o preço é o dobro. Não pode pagar? Pena. Seus bens vão ser confiscados.
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Meu pai foi boiadeiro uma grande parte de sua vida. Sempre me contava histórias deste estilo de vida, de como era bonito levar o gado de um lugar ao outro, montado em um cavalo, com seu berrante, a matula com comida e água, os longos entardeceres, as fogueiras de noite, as conversas com os demais boiadeiros. Era uma vida bonita, ele dizia, porque viam animais diferentes, e uma onça inclusive uma vez. Mas o que ele mais temia era o estouro da boiada, porque quando isto acontecia, ninguém podia prever o resultado final. Por isso, ele ensinava, era sempre importante compreender o gado, acalmar os animais que estivessem nervosos, e sempre se certificar que eles estavam bem tratados, satisfeitos, para poderem seguir pela estrada rumo ao seu destino.
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No dia 20 de junho, em Ribeirão Preto, um jovem de 18 anos foi morto ao ser atropelado por um carro. De acordo com as noticias disponíveis na internet, o motorista do carro se enfureceu quando alguns jovens manifestantes tentaram impedir sua passagem, e um inclusive desferiu um soco contra o veículo.
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No dia 20 de junho, em Brasília, um grupo de manifestantes apedrejou a Catedral de Brasília. Por quê? Afinal, Catedral de Brasília é um patrimônio nacional, um monumento de valor artístico reconhecido mundialmente, e é um dos símbolos do Brasil, independentemente da religião. Qual é o próximo, o Cristo Redentor no Rio de Janeiro?
A não ser que, de dentro deste movimento supostamente a-político, haja elementos que querem exatamente isto, destabilizar o movimento e a tentativa de demonstração democrática contra (ou a favor) de algo.
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O que acontece quando um movimento é “sequestrado” por um grupo organizado, que toma vantagem da energia da multidão para seus próprios fins? Os exemplos da história são conclusivos: o interesse da maioria não é o interesse deste grupo, que vai tomar o poder usando a energia da multidão, atiçar a multidão a fazer o que o grupo quer, e depois, mais tarde, punir alguns membros da multidão para que se lavem da culpa.
Daqui de longe, ao ver as imagens e acompanhar o que está acontecendo no Brasil, a apreensão é muito grande. É possível que este movimento se organize com plataforma concreta, e que líderes orgânicos surjam no processo. Isto é o que espero. Mas, ao mesmo tempo, o que assusta é a possibilidade de que grupos — tanto da direita como da esquerda — se aproveitem da ocasião para desestabilizar o país, fazer uma caça às bruxas reais ou imaginárias, e lançar por terra o que o país tem conquistado desde o fim da ditadura.
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Apesar de tudo, é uma grande emoção ver, mesmo de longe, que os brasileiros e brasileiras que aparecem nestas manifestações, muitos nascidos muito depois do movimento para as “Diretas já!” têm peito para sair às ruas, reclamando algo em que acreditam. A democracia vive, e como tudo que vive, muda, cresce, toma rumos diferentes. Este Brasil jovem e vibrante quer ser parte do processo. Mas, é muito importante que o inverno do seu descontentamento não seja sequestrado por outros que querem fazer dele seu próprio verão.

* EVA PAULINO BUENO é professora de Espanhol e Português na St. Mary´s University, em San Antonio, Texas. É autora de vários livros e artigos sobre literatura brasileira, cultura popular, e estudos da mulher. Seus livros mais recentes: The Woman in Latin American and Spanish Literature (McFarland, 2012) e Amacio Mazzaropi in the Film and Culture of Brazil: After Cinema Novo (Palgrave, 2012).

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