quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Os Desaparecidos do Rio de Janeiro (Carta Capital)

     
Os Desaparecidos do Rio de Janeiro (Debora lerrer)

      A morte de Juan Moraes, aos 11 anos, durante uma operação policial na Favela Danon, em Nova Iguaçu, em junho, tornou-se um divisor de águas na política de segurança do Rio de Janeiro. Em pouco tempo entrou em duas estatísticas importantes: na de vítima de operação policial e na de desaparecidos que foram mortos. Por um lado, a morte de Juan demonstrou as circunstâncias nada conformes dos “autos de resistências” registrados por alguns PMs. Mesmo uma perícia realizada oito dias depois revelou que, no local, só havia balas das armas dos policiais. Com o escândalo, a Polícia Civil baixou uma portaria exigindo mais rigor nas investigações dos autos de resistência. Mas foi a ocultação do cadáver de Juan, que escancarou mais uma vez uma prática frequente no Estado do Rio de Janeiro: o desaparecimento de corpos, sinistra herança da ditadura militar.
      Enquanto Sérgio Cabral, o governador do Rio de Janeiro, comemora a redução de 11,4 % de homicídios no primeiro semestre de 2011 em relação ao mesmo período de 2010, o número de desaparecidos continua com números expressivos e crescentes. Aumentou de 2.643, em 2010, para 2.879, em 2011, ou seja 9%. E nessa conta não entram os cadáveres e ossadas encontrados no estado, número que foi 329 em 2010 e 299 em 2011, a maioria dos quais enterrados como indigentes, sem sequer um cruzamento com os registros de desaparecidos. É por conta desses números que Antonio Carlos Costa, presidente do Movimento Rio de Paz afirma: “Enquanto não houver esclarecimento dos casos de pessoas desaparecidas, qualquer afirmação em termos absolutos sobre redução de homicídio no Rio de Janeiro é chute”.
      Na cidade do Rio de Janeiro, uma média de 200 pessoas por mês tem seus sumiços registrados nas delegacias. Embora cerca de 70% dos desaparecidos reapareçam, já que na categoria entram os jovens que fogem de casa e os idosos que se perdem na rua, Ignácio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da UERJ, lembra também que muitos desaparecidos não são registrados. “A gente conhece muitos casos de favelas nas quais uma pessoa foi morta, o corpo não foi encontrado, mas a família não registra por medo da polícia, porque já sabe que as vítima morreu e não tem expectativa de encontrar a pessoa com vida.”
      O lavrador Áureo Neves, de 66 anos, perdeu três de seus filhos entre 2005 e 2006. O mais velho, Eduardo, de 33 anos, trabalhava na Comlurb, e o mais novo, Áureo Filho, com 16 anos, o ajudava a criar porcos em seu sítio na estrada Grajaú-Jacarepaguá, Rio de Janeiro. Ambos morreram em supostos confrontos com a polícia. Do primeiro, Áureo, diz que se envolveu com drogas e que os policiais “cismaram que ele era o dono da boca”. Segundo testemunhas, foi executado depois de ferido na perna no dia 15 de setembro de 2005. Do segundo, afirma, “o envolvimento dele era com namoradinha do morro”. Diz que sua morte foi pura covardia. Voluntário na Brigada de Paraquedistas, em 1964, viu que o tiro na cabeça do filho foi dado de cima para baixo e pelas costas. Desses, pelo menos, teve o corpo. Já de Leandro, nem isso.
      Este filho, segundo Áureo, realmente lhe deu “dor de cabeça”. Cumpria condicional por roubo. No dia 28 de novembro de 2006, a mulher dele, Danielle Fontes, saiu da creche onde trabalhava, em Lins de Vasconcelos, após um telefonema do marido. Leandro tinha sido ferido por policiais em Quintino. Nunca mais ambos foram vistos. Atrás do filho e da nora, chegou a brigar na delegacia, pois lhe repetiam que seu filho era bandido. “Pobre não consegue nada. É um aborto da natureza. Não pode constituir advogado, não pode nem estar ali direto na delegacia.” Tanto Áureo como a filha do casal, então com 4 anos, tiraram sangue para checar o DNA com corpos encontrados, mas nas duas únicas checagens deu negativo.
      A categoria “desaparecido” entrou no vocabulário da violência no Brasil através dos presos políticos, a maioria dos quais, filhos de famílias da classe média, se organizam em grupos como o “Tortura Nunca Mais”e mantêm a boca no trombone desde a redemocratização do país. São ao todo 379 desaparecidos políticos no Brasil, presumidamente mortos pela repressão.
      O Instituto de Segurança Pública realizou uma pesquisa sobre desaparecidos pós-ditadura em cima das ocorrências registradas do ano de 2007. De acordo com os dados coletados com uma amostra contatada por telefone, concluiu-se que cerca de 71,3% dos desaparecidos haviam reaparecido vivos, 14,7% não reapareceram; 6,8% reapareceram mortos, 4,4 % não obteve informação; e 2,9% tiveram seu registro de desaparecimento não confirmado pela família. Fazendo uma estimativa com o índice – considerado subestimado - de 6,8% de desaparecidos comprovadamente assassinados em relação ao universo dos casos registrados de 2000 a junho de 2011, que é a cifra de 54.479, daria 3.704 casos, praticamente dez vezes a mais de vítimas do que no tempo da ditadura.
      Em zonas como a Baixada Fluminense, a ida a uma festa pode significar risco para jovens como Fábio Eduardo Santos de Souza, então com 20 anos. No dia 9 de junho de 2003, ele e Rodriguo Aubílio, de 19 anos, foram vistos pela última vez depois de deixarem uma amiga em casa, após uma festa junina. Segundo sua mãe, Izildete Santos da Silva, de 60 anos, testemunhas viram ambos levando uma “dura” de policiais e sendo colocados no camburão. Em busca por Fábio desde esse dia, Izildete chegou a escutar na delegacia para “não se preocupar” que ele devia ter ido “trabalhar para a Petrobras”. Três meses depois, outro filho, Wallace, então com 16 anos, foi pego durante a inauguração de uma discoteca. Dessa vez, no meio da madrugada, vieram lhe avisar e ela saiu correndo atrás de seu paradeiro. Este, conta ela, foi despido, estava de joelhos em um terreno baldio, quando seus algozes mandaram-no correr. Foi solto, relata ela, porque um “bêbado” notório na região testemunhava a cena. Este levou Walace para casa, deu-lhe uma bermuda, mandou-o embora dali e depois sumiu da região. A peregrinação de dona Izildete pelo filho lhe acarretou ameaças à sua vida e à de seu filho “especial”, que depois do sumiço do irmão “Iba”, que cuidava dele, nunca mais voltou a andar e a falar.
      O pesquisador Fábio Araújo, que faz doutorado na UFRJ em cima desse tema, aponta que o desaparecimento de corpos de pessoas assassinadas é uma prática comum “no repertório da violência urbana” do Rio de Janeiro. Esses casos não são geralmente investigados porque “se não há corpo, não há crime”, como dizem delegados e policiais. Além disso, segundo ele, a maior parte dessas vítimas são pobres, moram em territórios dominados pelo tráfico ou pela milícia e se sentem intimidados na delegacia. Agora, dona Izildete, que conhece pelo menos um dos policiais que abordaram o filho, luta para desarquivar o caso, encerrado por falta de provas em 2007.

      Morte sem fim
      Enquanto algumas mães levam suas denúncias adiante apesar das ameaças, algumas famílias ainda temem pela integridade de seus membros quando seus casos são divulgados. Não é um medo vão. Basta lembrar que Edméia da Silva Euzébio, uma das famosas “Mães de Acari”, foi assassinada em 1993, quando fazia uma investigação paralela da morte do filho, Luiz Henrique Euzébio, de 17 anos.
      Esse é o caso de Jaqueline,[1] cujo filho, Mateus, sumiu em Ramos, Zona Norte do Rio, no dia 9 de dezembro de 2006. Foi visto pela última vez na entrada da vila onde ficava a quitinete do amigo, Anderson. Mateus era vistoriador de contêineres no porto. Tinha 23 anos, era casado e tinha um filho de 4 anos. Naquele dia, Jaqueline tinha falado várias vezes com o filho ao telefone. Ambos estavam trabalhando e combinaram ir ao shopping fazer “umas comprinhas de fim de ano”. No final do dia, depois de um desencontro entre os dois, Jaqueline, cansada, resolveu ir para a casa sem a esticada no shopping. Em seu último contato com o filho, ele estava na casa da avó.
      No domingo, atrás de seu paradeiro, soube que “teve um problema lá”, na casa de Anderson. A quitinete, que até o dia anterior era mobiliada, estava vazia e com o chão lavado. Encontrou uma amiga deles ferida e com medo. Ouviu que “uns encapuzados” pegaram Mateus e o amigo e os torturaram. Concluiu que foram mortos por milicianos que aterrissaram em Ramos, 15 dias antes.
      A mãe buscou notícias do filho em todos os hospitais, nos batalhões, na delegacia por semanas. “Não há um dia em que eu não chore por ele”, diz ela. Quase dois meses depois, no dia 23 de janeiro, apareceu um corpo de um rapaz branco no Piscinão de Ramos. Ela só pôde reconhecê-lo por fotografia e no computador. O marido conseguiu ver a marca da bermuda do corpo, justamente a que Mateus gostava de vestir. Quando levou a cópia de arcada dentária do filho, então perfeita, para fazer a comparação, a perita descartou de imediato, dizendo que faltava um dente da frente na arcada do corpo. “É estranho jovem hoje em dia sem o dente da frente”, desconfiou ela. Sentia que podia ser o filho, queria um exame de DNA ou pelo menos o acesso à sua arcada dentária, mas não conseguiu impedir que fosse enterrado como indigente. Trâmites burocráticos difíceis de cumprir em 72 horas, para quem não tem dinheiro para pagar um bom advogado. Mais tarde, no mês de maio, conseguiram, através da defensoria pública, um levantamento de todos os corpos de indigentes enterrados naquele período. Jaqueline tinha o Boletim de Ocorrência do encontro do corpo que julgava ser de seu filho, com o registro de 021-0558/2007. Ao ser transferido para o IML, o corpo passou a ser identificado como corpo da “guia 23”, da 21 DP. No levantamento, o “homem guia 23/21 DP” tinha falecido em 7 de fevereiro.
      Além de ser uma morte sem fim, já que não há corpo, sepultura e um momento específico para o luto, um desaparecido que nunca vai voltar, como Mateus, gera uma série de desgastes civis para suas famílias. Sem atestado de óbito, foi demitido por justa causa, sem direito à indenização. Seus dependentes ficaram anos sem direito à pensão nem ao seguro de vida. O carro, com mais da metade das prestações pagas – cuja propriedade seria de Mateus em caso de morte – ficou perdido.
      O deputado estadual e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, Marcelo Freixo, acredita que o número dos desaparecidos no Rio de Janeiro tem aumentado nos últimos anos em razão do advento das milícias. Os números do Instituto de Segurança Pública corroboram essa tese. Há um crescimento expressivo do número de desaparecimentos nas Zona Norte e Oeste do Rio de Janeiro, onde há notória presença de milícias, se comparados os dados entre 2006 e 2010. Na Zona Norte, o número aumentou 16%, saindo de 843, em 2006, para 979, em 2010. Já na Zona Oeste o salto é ainda mais expressivo: foram 638 desaparecidos em 2006 e 1.038 em 2010, ou seja um aumento de 62,5 %.
      Maurício Campos, do Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, explica que entre 2006 e 2008 houve a implantação das milícias nessas regiões e a prática de extermínio é geralmente usada como “moeda de troca dos grupos mafiosos na hora de se impor territorialmente”. Embora o desaparecimento de corpos possa ser vinculado a três atores: o tráfico, a polícia e a milícia, para Campos, é difícil separar as duas últimas categorias, pois geralmente miliciano é o policial sem farda, em seu bico nas horas de folga. Essa dupla jornada tem sua origem na ditadura militar, nos grupos de extermínio pára-oficias, como o Esquadrão da Morte, que faziam o trabalho sujo e iam embora. “Agora a novidade é a presença territorial constante das milícias.” Para ele, a diminuição dos “autos de resistência”, que caiu 25% de janeiro a junho de 2011, se comparado a 2010, pode encobrir esses crimes, pois a política de extermínio continua. “Estes policiais deixam de registrar autos de resistência fardados e vão praticar o desaparecimento sem farda, sequestrando e sumindo com os corpos.”
      Para Ignácio Cano, é necessário ter mais evidências para se fazer uma conclusão nesse sentido. Concorda que quando a milícia entra em um território há um maior índice de assassinatos, mas acha que não dá para atribuir às milícias o aumento recente do número de desaparecidos. “Eles não precisam matar tanto depois de controlar o território. Teríamos que encontrar uma explicação de porque a milícia agora está sumindo com os corpos.” Cano inclusive tende a acreditar que a milícia mata menos do que o tráfico porque não precisa estar em disputa constante de território e não troca tiro com a polícia.
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[1] Os nomes deste caso são fictícios.

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