domingo, 8 de dezembro de 2013

Conflitos entre professores e alunos: por um código de ética docente

Blog da REA
RAYMUNDO DE LIMA*
No início de novembro/2013, um professor de História da Escola Estadual Maria Montessori, de São Paulo, foi afastado depois de ser flagrado abraçando e beijando uma aluna de 11 anos dentro da sala de aula. Em outubro, um professor da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor pela Universidade de Sorbonne (Paris) e há 16 anos na UFMG, foi acusado de assédio sexual por alunas universitárias. Elas disseram que “Ele usa os alunos para exemplificar a matéria. Disse que a nossa colega era atraente [...] e que ele gostaria de ficar na horizontal com ela”. Sua atitude foi considerada pelas alunas como “sexista”, quando disse “ela não passava de uma costela”. O primeiro caso acima foi flagrado, fotografado, mas o segundo parece mera acusação.
Outro professor está sob sindicância porque teria dito, em uma rede social “Desafio alguém a mostrar aqui o depoimento de algum pai aceitando seu filho gay.” Ora, frase como esta aparece no filme “Orações para Bobby”, usado nos meios escolares e pedagógicos para analisar a tendência homoafetiva na juventude com a família, e representa uma parcela significativa da população ainda não preparada para lidar com tal problemática.
Nossa justiça tem sido implacável na condenação de professores. Foi noticiado o caso do professor de uma universidade particular de Minas Gerais condenado a indenizar alunas porque teria dito que o trabalho “estava horrível, um lixo” (15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de MG); a faculdade Z foi obrigada a pagar R$5.450 à ex-estudante por danos morais. (Uol:14/06/2011). Em Maringá, Paraná, um professor universitário, doutor, com mais de vinte anos de profissão, também foi obrigado a pagar um elevado valor porque teria impedido uma aluna de assistir um evento coordenado por ele.
PARA PROBLEMATIZAR: Está faltando ética [êthos] na atuação docente? No livro “A ética no campo educativo”, o professor de Filosofia na França e doutor em ciências da educação, Francis Imbert (2001), questiona: “Os professores estão bastante impregnados de moral, mas será que possuem uma ética?” Então, estaria faltando éticana atuação docente? Ou os alunos estão mais vigilantes, críticos e conscientes dos seus direitos? Alguns alunos/as não estariam confundindo a adoção de atitude ‘crítica’ com atitude ‘cínica’ ao acusar, caluniar ou difamar um professor outsider? O professor está totalmente livre para expressar ideias, opiniões, usar metáforas ou ‘brincar’ com palavras ou metáforas durante a aula? Ou a liberdade docente é relativa? A vítima de difamação – professor/a – consegue reparar o dano psicológico ou moral? O professor em atitude íntima com uma menor de idade caracteriza transgressão da função docente, no mínimo. Mas se a aluna for maior de idade, ou seja, namoro entre professor e aluna, pode?
Médicos, psicólogos, entre outras categorias profissionais, seguem um código de ética, código moral ou deontologia (“deon” = obrigatório, dever). Por que os professores ainda não têm seu próprio código de ética? Ética situa-se antes de qualquer conformidade moral. Na época de apagamento das fronteiras (certo/ errado, pode/ deve, pessoal/ profissional), a formação ética no campo da docência poderia contribuir para melhor preparar o professor para agir corretamente no dia a dia da sala de aula? Noutros termos, como vivemos um tempo de interregno, como deve ser a conduta deste profissional: sob o ponto de vista físico (modo de vestir), discursivo (modo de falar, argumentar), e o ético e estético durante as aulas?
Está em extinção o estilo professoral carrancudo, isto é, aquele professor que só pela presença causava nos alunos pavor durante a aula e pesadelos no sono. Ele sempre tinha razão. Ora, o professor hoje se sente desamparado, despreparado para lidar com alunos desatentos, hiperativos, desrespeitosos, agressivos, ameaçadores, prontos para explosão de ira diante de um não, ou prontos para lesar o sentido do projeto educativo. Antigamente os pais confiavam nos professores, hoje não. (Sugiro ver os filmes: “O substituto”, “Infâmia”). Quando eu era aluno, os professores sempre tinham razão. Hoje, que sou professor, a tendência é sempre dar razão aos alunos, observa o professor Leandro Karnal, em conferência do CPFL-videos. Por que hoje muitos tendem a dar razão ao aluno? Por que o aluno virou cliente, conforme o ideário neoliberal? E o cliente sempre tem razão!
VIVÊNCIA E SOBREVIVÊNCIA DOCENTE
Conforme o interessante estudo de Marilda da Silva (2005), os professores aprendem mais com a prática docente do que com as teorias da didática e das metodologias de ensino. Ou seja, o “habitus professoral” [sic] é aprendido independentemente da formação didática específica; é aprendido no ensaio-erro da atuação profissional. Durante a formação universitária o máximo que é aprendido é o “habitus estudantil”, porque nos cursos de formação de docentes os alunos lêem e discutem o tema “[in]disciplina na sala de aula”, por exemplo, mas não praticam a ação de manter a classe disciplinada como se fossem professores. Também ainda não existe uma matéria para formação de professores sobre ética docente.
De acordo com esta pesquisa, acumulamos algumas preocupações: a) a formação de professores não funciona na prática, só na teoria; b) a nova geração de professores corre pior risco de estar em colapso mental durante o exercício profissional porque está totalmente despreparada para lidar ou ‘trabalhar com’ a nova geração de alunos de tendência incivilizada, indisciplinada ou até mesmo cínica. Alguns sindicatos de professores vêm alertando para o crescente número de professores afastados do trabalho, licença médica ou psicológica, por burnout, depressão, fobia escolar, distúrbios psicossomáticos, síndrome loco-neurótica[1], etc.
No livro “Adoro odiar meu professor: o aluno entre a ironia e o sarcasmo pedagógico”, Antonio Zuin (2008) reconhece como sádica a função docente ao longo da sua história. Ou seja, o sadismo professoral sempre foi uma habitus, jamais criticado ou questionado. Pierre Bourdieu (1998 e outros) reconhece o quanto a escola e a universidade exercem violência simbólica sobre os alunos, desde sua entrada até sua formação. Então, como não odiar o professor que atua com violência camuflada? Como gostar de uma escola ou universidade que atuam ora excluindo ora sendo omissa ou indiferente?
Ainda no século passado a escola aplicava instrumentos punitivos (palmatória) ou castigos físicos, e hoje ainda existem professores que estigmatizam alguns alunos com palavras ofensivas, tais como “burro”, “idiota”, etc. Ou usam atos constrangedores, por exemplo, uma professora e uma monitora obrigaram dois alunos da escola a ficarem nus em sala de aula, para averiguação de sumiço de dinheiro. Como não odiar esta professora?
Hoje são produzidas formas sofisticadas de violência simbólica, em que o aluno é estigmatizado [rotulado], mas ele não se dá conta. Ou mesmo os professores não fazem autocrítica de seu posicionamento violento. Dizer que fulano é “TDAH”, muitas vezes é reproduzido pelos pais como modo de proteger o/a filho/a; e parece que todos os agentes não se reconhecem fazendo uso desta forma de violência simbólica.
A universidade por séculos cumpriu a tradição autoritária repressora; os professores eram considerados arrogantes, irônicos, sarcásticos, até exerciam algo de sádico durante provas e bancas examinadoras. De certa forma, até hoje tal sadismo ainda é autorizado nas bancas de seleção e exame.
Mas ser docente universitário hoje implica antes de tudo ser “professor-pesquisador”. Isso significa ser prudente na fala e nos gestos. Ele não pode confundir ironia – que é uma virtude, segundo Comte-Sponville (2005) com sarcasmo, durante aulas, palestras, bancas. Também os alunos – feitos ‘clientes’ – deveriam saber mais sobre como funciona o habitus docente: brincadeirinhas e exemplos de boa fé [didática] podem ser usados para ilustrar um conteúdo compõem tal habitus, ainda que a onda politicamente correta exagere nas denúncias.
Nos EUA e Canadá, o regulamento escolar proíbe o professor ‘tocar’ aluno (abraço, beijinho no rosto). Algumas instituições de nível superior recomendam ao professor atender aluno/a com porta aberta, para não causar mal entendido, constrangimento ou processo judicial. Certamente são indícios ou sintomas de ruptura da confiança entre professores e alunos, cujo ambiente escolar e universitário, no mínimo, produz efeitos danosos para ambos. A discussão sobre um código de ética docente poderia esclarecer e prevenir melhor nossa atuação. É uma proposta.
Referências
ALEVATO, Hilda. Síndrome loconeurótica revisitada: o cotidiano de docentes. Rev. Psicol., Organ. Trab. v. 12 nº.2, Florianópolis, ago. 2012. Disponível em:http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1984-66572012000200008&script=sci_arttext
BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
IMBERT, Francis. A questão da ética no campo educativo. Petrópolis: Vozes, 2001.
SILVA, Marilda da. O habitus professoral: o objeto dos estudos sobre o ato de ensinar na sala de aula. In: Revista Brasileira de Educação. maio/jun/jul/ago, 2005. Disponível em:
UOL. Professor classifica trabalho de ‘lixo’, e universidade é condenada a indenização. 14/06/2011. Disponível em: http://educacao.uol.com.br/noticias/2011/06/14/professor-classifica-trabalho-de-lixo-e-universidade-e-condenada-a-indenizacao.htm
ZUIN, Antonio. Adoro odiar meu professor: o aluno entre a ironia e o sarcasmo pedagógico. Campinas: Autores Associados, 2008.

* RAYMUNDO DE LIMA é Professor-doutor do Departamento de Fundamentos da Educação (DFE), da Universidade Estadual de Maringá. É colunista da revista eletrônica Espaço Acadêmico.

[1] Cf.: ALEVATO, 2002.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Lei Para Quê???

    Se um operador do direito posiciona-se contra a lei, imagine o resto da população...



Direito de greve: Ministro diz que é 'demagogia'

Paralisação de professores, como a que ocorreu no Rio, foi criticada por Fux

O Dia
STEPHANIE TONDO

Rio - Responsável pelo acordo entre o Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (Sepe) e os governos municipal e estadual que pôs fim à greve da categoria no Rio, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux declarou ontem que permitir a greve de servidores públicos é “demagogia” e “desatino”. Durante discurso em seminário no Rio, Fux criticou a Constituição Federal de 1988, por garantir o direito de greve no funcionalismo.
Segundo ele: “a greve do servidor não tem eficácia. Só prejudica aqueles que dependem do serviço público”. Além disso, o ministro disse ser contra a paralisação dos professores e as manifestações.
Diretora do Sepe, Vera Nepomuceno caracteriza como lamentáveis as declarações. “A Constituição de 88 foi a que mais avançou no direito do trabalhador. E servidores não são sacerdotes, são trabalhadores”, disse. 
Para o presidente do Sindicato dos Servidores das Justicas Federais no Rio, Valter Nogueira Alves, a postura do ministro foi incoerente, já que o Supremo reconhece o direito de greve dos servidores. “Ele disse que a lei vale para uns e não para outros”, exclamou.
POSTURA ATRASADA
Secretário-geral da Condsef, Josemilton Costa entende a postura do ministro como atrasada. “Somos trabalhadores como qualquer outra categoria. Pagamos impostos, contribuimos para o país”, alegou.
PROJETO DE LEI
Segundo Josemilton Costa, o projeto do senador Romero Jucá (PMDB/RR) que regulamenta o direito de greve do servidor público ainda está sendo discutido pelas centrais sindicais.
REUNIÃO DIA 10
No próximo dia 10, representantes das centrais sindicais se encontram novamente com o senador para discutir sobre o projeto. “Queremos que seja levada em consideração a proposta dos sindicatos”, disse Josemilton.

Estou Procurando o que Fazer...: Rosinha vaiada em "casa", de novo

Estou Procurando o que Fazer...: Rosinha vaiada em "casa", de novo: Por Gustavo Matheus, em 02-12-2013 - 18h38 Folha da Manhã online Neste último sábado, em parceria com a orquestra sinfônica de Ca...

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Não penso, logo relincho

Matheus Pichonelli
Carta capital

Dizem que uma mentira repetida à exaustão se transforma em verdade. Pura mentira. Uma mentira repetida à exaustão é só uma mentira, que descamba para o clichê, que descamba para o discurso. E o discurso, quando mal calibrado, é o terreno para legitimar ofensas, preconceitos, perseguições e exclusões ao longo da História. Nem sempre é resultado da má-fé. Por estranho que pareça, é na maioria das vezes fruto da indigência mental – uma indigência mental que assola as escolas, a imprensa, as tribunas, as mesas de bares, as redes sociais. Com os anos, a liberdade dos leitores para se manifestar sobre qualquer assunto e o exercício de moderação de comentários nos levam a reconhecer um clichê pelo cheiro. Listamos alguns deles abaixo com um apelo humanitário: ao replicar, você não está sendo original; está apenas repetindo uma fórmula pronta sem precisar pensar sobre tema algum. E um clichê repetido à exaustão, vale lembrar, não é debate. É apenas relincho*.

“Negros têm preconceitos contra eles mesmos”
Tentativa clássica de terceirizar o próprio racismo, é a frase mais falada das redes sociais durante o Dia da Consciência Negra. É propagada justamente por quem mais precisa colocar a mão na consciência em datas como esta: pessoas que nunca tomaram enquadro na rua nem foram preteridas em entrevistas de emprego sem motivos aparentes. O discurso é recorrente na boca de quem jamais se questionou por que a maioria da população brasileira não circula em ambientes frequentados pela elite financeira e intelectual do País, como universidades, centros culturais, restaurantes, shows e centros de compra. Tem a sua variação homofóbica aplicada durante a Parada Gay. O sujeito tende a imaginar que Dia Branco e Dia Hétero são equivalentes porque ignora os processos históricos de dominação e exclusão de seu próprio país.

“Não precisamos de consciência preta, parda ou branca. Precisamos de consciência humana”
Eis uma verdade fatiada que deixa algumas perguntas no contrapé: o manifestante a exigir direitos iguais não é gente? O que mais se busca, nessas datas, se não a consciência humana? Ou ela seria necessária, com ou sem feriado, caso a cor da pele (ou o gênero ou a sexualidade) não fosse, ainda hoje, fatores de exclusão e agressão?

“Héteros morrem mais do que homossexuais. Portanto, somos mais vulneráveis”
É o mesmo que medir o volume de um açude com uma régua escolar. Crimes como homicídio, latrocínio, roubo ou furto têm causas diversas: rouba-se ou mata-se por uma carteira, por ciúmes, por fome, por motivo fútil, por futebol, mas não necessariamente por causa da orientação sexual da vítima. O argumento é utilizado por quem nunca se perguntou por que ninguém acorda em um belo dia e decide estourar uma barra de ferro na cabeça de alguém só porque este alguém gosta e anda de mãos dadas com alguém do sexo oposto. O crime motivado por ódio contra heterossexuais é tão plausível quanto ser engolido por uma jaguatirica em plena Avenida Paulista.

“Estamos criando uma ditadura gay (ou racial) no Brasil. O que essas pessoas querem é privilégio”
Frase utilizada por quem jamais imaginou a seguinte cena: o sujeito acorda, vê na tevê sempre os mesmos apresentadores, sempre as mesmas pautas, sempre as mesmas gracinhas. No caminho do trabalho, ouve ofensas de pedestres, motoristas e para constantemente em uma mesma blitz que em tese serviria para todos. Mostra documento, RG. Ouve risada às suas costas. Precisa o tempo todo provar que trabalha e paga imposto (além, é claro, de trabalhar e pagar imposto). Chega ao trabalho e é recebido com deferência: “oi boneca”; “oi negão”; “veio sem camisa hoje?”. Quando joga futebol, vê a torcida imitando um macaco, jogando bananas ao campo, ou imitando gazelas. E engasga toda vez que vira as costas e se descobre alvo de algum comentário. Um dia diz: “apenas parem”. E ouve como resposta que ele tem preconceito contra a própria condição ou está em busca de privilégio. Resultado: precisamos de um novo glossário sobre privilégios.

“A mulher deve se dar o valor”
Repetida tanto por homens como por mulheres, é a confissão do recalque, em um caso, e da incompetência, no outro: o homem recorre ao mantra para terceirizar a culpa de não controlar seus próprios instintos; a mulher, por pura assimilação dos mandamentos do pai, do marido e dos irmãos. Nos dois casos o interlocutor acredita que, ao não se dar o valor, a menina assume por sua conta e risco toda e qualquer violência contra sua pretensão. Para se vestir como quer, andar como quer, dizer e fazer o que quer com quem bem quiser, ouvirá, na melhor das hipóteses, que não é a moça certa para casar; na pior, que foi ela quem provocou a agressão.

“Os homens também precisam ser protegidos da violência feminina”
Na Lua, é possível que a violência entre gêneros seja equivalente. Na Terra, ainda está para aparecer o homem que apanhou em casa porque foi chamado de gostoso na rua, levou mão na bunda, ouviu assobios ou ruídos com a língua sem pedir a opinião da mulher. Também não há relevância estatística para os homens que tiveram os corpos rasgados e invadidos por grupos de mulheres que dominam as delegacias do País e minimizam os crimes ao perguntar: “Quem mandou tirar a camisa?”.

“Se ela se deixou ser filmada, é porque quis se exibir”.

Verdade. Mas não leva em conta um detalhe: existe alguém do outro lado da tela, ou da câmera. Este alguém tem um colchão de conforto a seu favor. Se um dia o vídeo vazar, será carregado nos braços como comedor. Ela, enquanto isso, vai ser sempre a exibida. A puta. A idiota que deixou ser flagrada. A vergonha da família. A piada na escola. Parece uma relação bastante equilibrada, não?

“O humor politicamente correto é sacal”
É a mais pura verdade em um mundo no qual o politicamente incorreto serve para manter as posições originais: ricos rindo de pobres, paulistas ridicularizando nordestinos, brancos ricos fazendo troça de mulatos pobres, machões buscando graça na vulnerabilidade de gays e mulheres. As provocações são brincadeiras saudáveis à medida que a plateia não se identifica com elas: a graça de uma piada sobre português é proporcional à distância do primeiro português daquele salão. Via de regra, a frase é usada por quem jura se ofender quando chamado de girafa branca tanto quanto um negro ao ser chamado de macaco. Só não vale perguntar se o interlocutor já foi chamado de “elemento suspeito”, com tapas e humilhações, pelo simples fato de ser alto como o artiodátilo.

“Bolsa Família incentiva a vagabundagem. Pegar na enxada e trabalhar ninguém quer”
Há duas origens para a sentença. Uma advém da bronca – manifestada, ironicamente, por quem jamais pegou em enxada – por não se encontrar hoje em dia uma boa empregada doméstica pelo mesmo preço e a mesma facilidade. A outra origem é da turma do “pegar o jornal e ler além do horóscopo ninguém quer”; se quisesse, o autor da frase saberia que o Bolsa Empreiteiro (que também dispensa a enxada) consome muito mais o orçamento público do que programa de transferência de renda. Ou que a maioria dos beneficiários de Bolsa Família não só trabalha como é obrigada a vacinar os filhos, manter a regularidade na escola e atravessar as portas de saída do programa. Mas a ojeriza sobre números e fatos é a mesma que consagrou a enxada como símbolo do nojo ao trabalho.

“Na ditadura as coisas funcionavam”
Frase geralmente acolhida por pacientes com síndrome de Estocolmo. Entre 1964 e 1985, a economia nacional crescia para poucos, às custas de endividamento externo e da subserviência a Washington; universalização do ensino e da saúde era piada pronta, ninguém podia escolher os seus representantes, a imprensa não podia criticar os generais e a sensação de segurança e honestidade era construída à base da omissão porque ninguém investigava ninguém. Em todo caso, qualquer desvio identificado era prontamente ofuscado com receitas de bolo na primeira página (os bolos eram de fato melhores).

“Você defende direito de presos porque ele não agrediu ninguém da sua família”.
É o sofisma usado geralmente contra quem defende o uso das leis para que a lei seja garantida. Para o sujeito, aplicação de penas e encarceramentos são privilégios bancados às custas dele, o contribuinte. Em sua lógica, o Estado só seria efetivo se garantisse a sua segurança e instituísse a vingança como base constitucional. Assim, a eventual agressão contra um integrante de uma família seria compensada com a agressão a um integrante da família do acusado. O acúmulo de experiência, aperfeiçoamento de leis e instituições, para ele, são papo de intelectual: bons eram os tempos dos linchamentos, dos apedrejamentos públicos, da Lei de Talião. Falta perguntar se o defensor do fuzilamento está disposto a dar a cara a tapa, ou a tiro, quando o filho dirigir bêbado, atropelar, agredir e violentar a família de quem, como ele, defende penas mais duras para crimes inafiançáveis.

“A criminalidade só vai diminuir quando tiver pena de morte no Brasil”
Frase repetida por quem admira o modelo prisional e o corredor da morte dos EUA, o país mais rico do mundo e ao mesmo tempo o mais violento entre as nações desenvolvidas. Lá o crime pode não compensar (em algum lugar compensa?), mas está longe de ser varrido junto com seus meliantes.

“Político deveria ser tratado por médico cubano”
Tradução: “não gosto de política nem de cubano”. Pelo raciocínio, todo paciente tratado por cubanos VAI morrer e todo político que precisa de tratamento médico DEVE morrer. Para o autor da frase, bons eram os tempos em que, na falta de médico brasileiro, deixava-se o paciente morrer – ou quando as leis eram criadas não pelo Legislativo, mas pelo humor de quem governa na canetada.

“Deveriam fazer testes de medicamento em presidiários, não em animais”
Também conhecida como “não aprendemos nada com a parábola do filho Pródigo que tantas vezes rezamos na catequese”. É citada por quem não aceita tratamento desumano contra os bichos, mas não liga para o tratamento desumano contra humanos. É repetida também por quem se imagina livre de todo pecado e das grandes ironias da vida, como um certo fiscal da prefeitura de São Paulo que um certo dia criticou o direito ao indulto de presidiários e, no outro, estava preso acusado de participação na máfia do ISS. É como dizem: teste de laboratório na cela dos outros é refresco.

“Por que você não vai para Cuba?”
Também conhecida como “acabou meu estoque de argumentos. Estou andando na banguela”.

domingo, 24 de novembro de 2013

Seremos uma célula cancerígena a ser extirpada?

Leonardo Boff
Jornal do Brasil

Há  negacionistas da Shoah (eliminação de milhões de judeus nos campos nazistas de extermínio) e há negacionistas das mudanças climáticas da Terra. O primeiros recebem o desdém de toda a humanidade. Os segundos, que até há pouco sorriam cinicamente, agora veem dia a dia suas convicções sendo refutadas pelos fatos inegáveis. Só se mantêm coagindo cientistas para não dizerem tudo o que sabem como foi denunciado por diferentes e sérios meios alternativos de comunicação. É a razão ensandecida que busca a acumulação de riqueza sem qualquer outra consideração. 
Em tempos recentes temos conhecido eventos extremos da maior gravidade: Katrina e Sandy nos EUA, tufões terríveis no Paquistão e em Bangladesh, o tsunâmi no Sudeste da Ásia e o tufão  no Japão que perigosamente danificou as usinas nucleares em Fukushima e ultimamente o avassalador tufão Haiyan nas Filipinas com milhares de vítimas. 
Sabe-se hoje que a temperatura do Pacífico tropical, de onde nascem os principais tufões, ficava normalmente abaixo de 19,2ºC. As águas marítimas foram aquecendo a ponto de a partir de 1976 ficarem por volta de 25ºC e a partir de 1997-1998 alcançaram 30ºC. Tal fato produz grande evaporação de água. Os eventos extremos ocorrem a partir de 26ªC. Com o aquecimento, os tufões estão acontecendo com cada vez mais frequência e maior velocidade. Em 1951 eram de 240 km/h; em 1960-1980 subiram para 275 km/h; em 2006 chegaram a 306 km/h e em 2013 aos terrificantes 380 km/h. 
Nos últimos meses, quatro relatórios oficiais de organismos ligados à ONU lançaram veemente alerta sobre as graves consequência do crescente aquecimento global. Com 90% de certeza é comprovadamente provocado pela atividade irresponsável dos seres humanos e dos países industrializados. 
Em setembro, o IPPC que articula mais de mil cientistas o confirmou; o mesmo o fez o Programa do Meio Ambiente da ONU (Pnuma); em seguida, o Relatório Internacional do Estado dos Oceanos denunciando o aumento da acidez  que por isso absorve menos C02; finalmente em 13 de novembro, em Genebra, a Organização Meteorológica Mundial. Todos são unânimes em afirmar que não estamos indo ao encontro do aquecimento global: já estamos dentro dele. Se nos inícios da revolução industrial o CO2 era de 280 ppm (parte de um milhão), em 1990 elevou-se a 350 ppm e hoje chega a 450 ppm. Neste ano noticiou-se que em algumas partes do planeta já se rompeu a barreira dos 2ºC, o que pode acarretar danos irreversíveis para os seres vivos.
Poucas semanas atrás, a secretária executiva da Convenção do Clima da ONU, Christina Figueres, em plena entrevista coletiva, desatou em choro incontido ao denunciar que os países quase nada fazem para a adaptação e a mitigação do aquecimento global. Yeb Sano, das Filipinas, na 19ª Convenção do Clima em Varsóvia, ocorrida entre 11-22 de novembro, chorou também diante de representantes de 190 países quando contava o horror do tufão que dizimou seu país, atingindo sua própria família. A maioria não pôde conter as lágrimas. Mas para muitos eram lágrimas de crocodilo. Os representantes já trazem no bolso as instruções previamente tomadas por seus governos, e os grandes dificultam por muitos modos qualquer consenso. Lá estão também os donos do poder no mundo, donos das minas de carvão,  muitos acionistas de petrolíferas ou de siderurgias movidas a carvão, as montadoras e outros. Todos querem que as coisas continuem como estão. É o que de pior nos pode acontecer, porque então o caminho para o abismo se torna mais direto e fatal. Por que essa irracional oposição? 
Vamos direto à questão central: esse caos ecológico é tributado ao nosso modo de produção, que devasta a natureza e alimenta a cultura do consumismo ilimitado. Ou mudamos nosso paradigma de relação para com a Terra e para com os bens e serviços naturais, ou vamos irrefreavelmente ao encontro do  pior. O paradigma vigente se rege por esta lógica: quanto posso ganhar com o menor investimento possível, no mais curto lapso de tempo, com inovação tecnológica e com maior potência competitiva? A produção é para o puro e simples consumo que gera a acumulação, este, o objetivo principal. A devastação da natureza e o empobrecimento dos ecossistemas aí implicados são meras externalidades (não  entram na contabilidade empresarial). Como a economia neoliberal se rege estritamente pela competição e não pela cooperação, estabelece-se uma guerra de mercados, de todos contra todos. Quem paga a conta  são os seres humanos (injustiça social) e a natureza (injustiça ecológica).
Ocorre que a Terra não aguenta mais este tipo de guerra total contra ela. Ela precisa de um ano e meio para repor o que lhe arrancamos durante um ano. O aquecimento global é a febre que denuncia estar doente, e gravemente doente.
Ou começamos a nos sentir parte da natureza, e então a respeitamos como a nós mesmos, ou passamos do paradigma da conquista e da dominação para aquele do cuidado e da convivência e produzimos respeitando os ritmos naturais e dentro dos limites de cada ecossistema, ou então preparemo-nos para as amargas lições que a Mãe Terra no dará. E não está excluída a possibilidade de que ela já não nos queira mais sobre sua face e se liberte de nós como nos libertamos de uma célula cancerígena. Ela continuará, coberta de cadáveres, mas sem nós. Que Deus não permita semelhante e trágico destino.  
* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é autor, também, de 'Proteger a Terra e cuidar da vida: Como escapar do fim do mundo' (Record, Rio de Janeiro, 2011).

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

A importância da espiritualidade para a saúde

Jornal do Brasil
Leonardo Boff

Via de regra todos os operadores de saúde foram moldados pelo paradigma científico da modernidade, que operou uma separação drástica entre corpo e mente e entre ser humano e natureza. Criou as muitas especialidades que tantos benefícios trouxeram para o diagnóstico das enfermidades e  também para as formas de cura.
Reconhecido este mérito,  não se pode esquecer que se perdeu a visão de totalidade: o ser humano inserido no todo maior da sociedade, da natureza e das energias cósmicas e a doença como uma fratura nesta totalidade e a cura como uma reintegração nela.
Há uma instância em nós que responde pelo cultivo desta totalidade, que zela pelo  Eixo estruturador de nossa vida: é a dimensão do espírito. De espírito vem espiritualidade. Espiritualidade é o cultivo daquilo que é próprio do espírito, que é sua capacidade de projetar visões unificadoras, de relacionar tudo com tudo, de ligar e re-ligar todas as coisas entre si e com a Fonte Originária de todo ser.
Se espírito é relação e vida, seu oposto não é matéria e corpo mas a morte como ausência de relação. Nesta acepção, espiritualidade é toda atitude e atividade que favorece a  expansão da vida, a relação consciente, a comunhão aberta, a subjetividade profunda e a transcendência como modo de ser, sempre disposto a novas experiências e a  novos conhecimentos.
Neurobiólogos e estudiosos do cérebro identificaram a base biológica da espiritualidade. Ela se situa no lobo frontal do cérebro. Verificaram empiricamente que sempre que se captam os contextos mais globais ou ocorre uma experiência significativa de totalidade ou também quando que se abordam de forma existencial (não como objeto de estudo) realidades últimas, carregadas de sentido e que produzem atitudes  de veneração, de devoção e de respeito, se verifica uma aceleração das vibrações em hertz dos neurônios aí localizados. Chamaram a este fenômeno de “ponto Deus” no cérebro ou da emergência da “mente mística” (Zohar, QS: Inteligência espiritual, 2004). Trata-se de uma espécie de órgão interior pelo qual se capta a presença do Inefável dentro da realidade.
Este fato constitui uma vantagem evolutiva do ser humano que, enquanto homem-espírito, percebe a Realidade Fontal sustendando todas as coisas. Dá-se conta de que  pode, surpreendetemente, entabular um diálogo e buscar uma comunhão íntima com ela. Tal possibilidade o dignifica, pois o espiritualiza e o leva a graus mais altos de percepção do Elo que liga e re-liga todas as coisas. Sente-se inserido no Todo.
Este “ponto Deus” se revela por valores intangíveis como mais compaixão, mais solidariedade, mais sentido de respeito e de dignidade. Despertar este “ponto Deus”, tirar as cinzas  que uma cultura demasiadamente racionalista e materialista o cobriu, é permitir que a espiritualidade aflore na vida das pessoas.
No termo, espiritualidade não é pensar Deus mas sentir Deus mediante este órgão interior e fazer a experiência de sua presença e atuação a partir do coração.  Ele é percebido como entusiasmo (em grego significa ter um deus dentro) que nos toma e nos faz saudáveis e nos dá a vontade de viver e de criar continuamente sentidos de existir.
Que importância emprestamos  a esta dimensão espiritual no cuidado da saúde e da doença? A espiritualidade possui uma força curativa própria. Não se trata de forma nenhuma de algo mágico e esotérico. Trata-se de potenciar aquelas energias que são próprias da dimensão espiritual tão válidas como a inteligência, a libido, o poder, o afeto entre outras  dimensões do humano. Estas energias são altamente positivas como amar a vida, abrir-se ao demais, estabelecer laços de fraternidade e de solidariedade, ser capaz de perdão, de misericórdia e de indignação face às injustiças deste mundo, como o faz exemplarmente o papa Francisco.
Além  de reconhecer todo o valor das terapias conhecidas existe ainda um supplément d’ame como diriam os franceses. Ela quer sinalizar  um complemento daquilo que já existe mas que o reforça e enriquece com fatores  oriundos de outra fonte de cura. O modelo estabelecido de medicina não detém, por certo, o monopólio do diagnóstico e da  cura. É aqui que encontra o seu lugar a espiritualidade.
A espiritualidade reforça na pessoa, em primeiro lugar, a confiança nas energias regenerativas da vida, na competência do médico/a e no cuidado diligente ou do enfermeiro/a. Sabemos pela psicologia do profundo e da transpessoal, do valor terapêutico da confiança na condução normal da vida. Confiar significa fundamentalmente afirmar: a vida tem sentido, ela vale a pena, ela detém uma energia interna que a autoalimenta, ela é preciosa. Essa confiança pertence a uma visão espiritual do mundo.
Pertence à espiritualidade a convicção de que a realidade que captamos é maior do que as análises nos dizem. Podemos ter acesso a ela pelos sentidos interiores, pela intuição e pelos secretos caminhos da razão cordial. Percebe-se que há uma ordem subjacente à ordem sensível, como o sustentava sempre o grande físico quântico, Prêmio Nobel David Bohm, aluno predileto de Einstein.
Esta ordem subjacente responde pelas ordens visíveis, e ela sempre pode nos trazer surpresas. Não raro, os próprios médicos/as se surpreendem com a rapidez com que alguém se recupera, ou mesmo como situações, normalmente dadas como irreversíveis, regridem e acabam levando à  cura. No fundo é crer que o invisível e o imponderável são parte do visível e do previsível.
Pertence também ao mundo espiritual a esperança imorredoura de que a vida não termina na morte, mas se transfigura através dela. Nossos sonhos de voltar à vida normal deslancham energias positivas que contribuem para a regeneração da vida enferma.
Força maior, entretanto, é a fé de sentir-se na palma da  mão de Deus. Entregar-se, confiadamente, à sua vontade, desejar ardentemente  a cura mas também acolher serenamente sua vontade de chamar-nos  para si: eis a presença da energia espiritual. Não morremos, Deus vem nos buscar e nos levar para onde pertencemos desde sempre, para a sua Casa e para o seu convívio. Tais convicções espirituais funcionam como fontes de água viva, geradoras de cura e de potência de vida. É o fruto da espiritualidade.
*Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. Junto com Jean-Yves Leloup e outros, escreveu 'Espírito e saúde' (Vozes, 2007). - leonardo Boff

sábado, 16 de novembro de 2013

Orquestra Sinfônica do Aprendiz - vídeo 05



     Vídeo da orquestra do projeto Aprendiz, da prefeitura de Niterói, em apresentação dia 5 de novembro, no Teatro Municipal de Niterói, com a participação da soprano Grace Castro, campista que coordena o projeto.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Órfãos de Eike em São João da Barra Tentam Sobreviver

Comerciantes, lavradores e trabalhadores perderam clientes, empregos, terra e renda

O DIA
Rio - Eles não estão incluídos no processo de recuperação e não vão fazer parte de nenhum cronograma de pagamento de dívidas. São a ponta menos visível da crise do grupo X, do empresário Eike Batista: pequenos empreendedores que investiram para aproveitar oportunidades no Porto do Açu e agricultores desalojados para construção de um distrito industrial na Zona Rural de São João da Barra, Norte Fluminense, local do empreendimento.
Há um ano Manoel Peixoto foi detido por resistência à desapropriação, quando tentou proteger o terreno
Foto:  Fernando Souza / Agência O Dia
Com a suspensão das obras do estaleiro da OSX, que também pediu recuperação judicial, o clima é de apreensão no município de 35 mil habitantes. Desde abril, quando a crise se aprofundou, o movimento no comércio despencou e muitos empresários passaram a conviver com calotes da clientela. 
Dos empreendimentos previstos, incluindo siderúrgicas e um polo metal mecânico, apenas o terminal de minério de ferro e duas fabricantes de equipamentos petrolíferos continuam em obras. A maior parte do terreno do porto permanece como estava antes da chegada da empresa: com grandes pastos e áreas de restinga. A população tem esperança de dias melhores, embora saiba que o empreendimento não terá o mesmo porte inicial. 
“Está abandonado!”, gritou o motorista de ônibus ao ver a reportagem ao lado da cerca das obras do estaleiro da OSX, em São João da Barra, norte fluminense. Lá dentro, apenas um imenso galpão sem trabalhadores ou máquinas operando confirma: as obras estão suspensas. 
A desmobilização jogou uma pá de cal sobre as expectativas dos moradores da região, que, desde o início das obras do porto, colhiam os lucros da intensa movimentação de empregados das empreiteiras e prestadoras de serviço contratadas pelo empreendimento.
“Vendia 800 quentinhas”
“Cheguei a vender 800 quentinhas por dia”, conta Paulo de Freitas Bastos, dono de um restaurante. “Hoje, não passa de 200”, conclui. Ele deixou a capital em 2007 rumo ao município, atraído pelas oportunidades que o porto geraria. Bastos se viu envolvido na espiral de calotes que assolou a região após o começo da crise. Hoje tem aproximadamente R$30 mil a receber.
“Antes de abril, tinha fila de ônibus, estava lotado de trabalhadores. Agora, está deserto”, lamenta Denis Toledo, dono de uma lan house no centro de Barra do Açu, próximo ao porto.
“Chegaram de mansinho e depois nos mandaram sair” 
Pesquisador do Instituto Federal Fluminense (IFF) Roberto Moraes estima que haja R$ 2 milhões em dívidas de fornecedores das empresas X junto a empresários do Norte Fluminense. Como se tratam de subcontratados, estes credores não fazem parte do processo de recuperação judicial.
Dono de uma pousada e um restaurante na cidade, João Batista Stellet Alves prefere não revelar o prejuízo que teve. Ele investiu R$300 mil no empreendimento, inaugurada em 2012. 
“Eles primeiro chegam de mansinho, medindo as terras. Depois botam a placa e dizem que é deles”. A reclamação do produtor rural Reginaldo de Almeida, em frente ao terreno que pertence a sua família há 40 anos, foi feita com dedo em riste. Na mira, uma placa que identifica o terreno de 13 quilômetros quadrados, desapropriado para receber o polo siderúrgico da ítalo-argentina Ternium.
Com a retração do mercado de siderurgia e a entrada da empresa no grupo controlado pela Usiminas, porém, o empreendimento foi interrompido em setembro e a expectativa é que a companhia devolva as terras, hoje improdutivas. Outros produtores também foram desapropriados para as obras do distrito industrial.
A DESAPROPRIAÇÃO
A desapropriação iniciou em 2009. Estudos feitos à época definiram a necessidade de 70 quilômetros quadrados de área, antes dividida em 466 lotes de pequenos produtores rurais. Desde então, 292 propriedades já foram desapropriadas, mediante ação judicial.
Em contrapartida, o governo ofereceu em troca um assentamento próximo, além de auxílio-produção de um a cinco salários por dois anos. “Foram pagos R$ 2,8 milhões para 190 famílias, das quais 35 foram para o assentamento”, disse o governo estadual à reportagem.
Para os casos em que não houve acordo, já existem ações na Justiça e, hoje, as indenizações vem sendo feitas por depósito judicial. A resistência ao processo, que vem sendo usado como arma pela oposição ao governo Cabral, aumenta à medida em que o projeto do porto perde tamanho.
“Não precisava ter abraçado o mundo com tanta pressa. Esse porto está lá longe e nós perdemos pasto e área para plantar”, diz o produtor Manoel Peixoto, 61 anos.
Há um ano ele foi detido por resistência à desapropriação. A área de apenas um alqueire, está atualmente cercada por arame farpado. “Me agarraram pelo pescoço e me algemaram com meus dois filhos, como bandidos”, recorda. Ele lamentou terem jogado areia sobre a terra, que ficou improdutiva — mesmo que não seja mais usada pelo porto.
Reportagem de Nicola Pamplona

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Imagina na Copa!

Blog da REA
MARCELO GRUMAN*
Passava um pouco das onze horas da manhã. Seguíamos para o Aeroporto Internacional de Los Angeles para iniciarmos a longa jornada de volta ao Rio de Janeiro depois de duas semanas de visita a parentes e diversão nos parques da Disneylândia, neste último caso, sobretudo para meu filho de quatro anos. A poucos metros do destino, recebemos um telefonema de meu pai que, a milhares de quilômetros dali, graças às maravilhas da globalização da informação, via, na tela da televisão de sua casa, que um maluco resolveu disparar a esmo com um rifle em pleno terminal 3 do aeroporto. A princípio, minha tia, que recebeu a ligação, achou que era uma brincadeira do irmão, mas não era. Quase instantaneamente, vimos carros da polícia e do esquadrão anti-bomba passar pelo nosso carro em alta velocidade e muitos outros, de civis, vindo na contramão, uma vez que as vias de acesso ao aeroporto haviam sido bloqueadas. Até segunda ordem, todos os voos estavam cancelados. Soubemos, depois, que foram cerca de setecentos cancelamentos e mais de setenta mil passageiros prejudicados.
O que fazer? Eu tinha de voltar ao Rio de Janeiro naquele dia, sexta-feira, chegando aqui no sábado pela manhã, porque tinha compromisso inadiável no domingo. Bateu aquela angústia, é claro. O namorado de minha tia teve, então, uma sacada genial. Voltamos para casa, a alguns quilômetros do aeroporto, e começamos a ligar para a companhia aérea tentando remarcar nosso voo para Houston, de onde partiria a conexão para o Rio de Janeiro, a partir de algum outro aeroporto nas redondezas de Los Angeles. Havia três opções: Long Beach, Santa Ana e Ontário. Obviamente, os atendentes estavam todos ocupados e o tempo de espera era de quinze minutos. Usamos dois telefones. Num tempo menor do que o previsto, a ligação foi completada e a atendente ficou de realizar a reserva para o aeroporto de Santa Ana, distante a uma hora de onde estávamos, retornando em alguns minutos para a confirmação. A única saída era essa, porque o voo partindo de Santa Ana chegaria a Houston a tempo de pegarmos a conexão para o Rio de Janeiro. Se não houvesse mais assentos disponíveis, só poderíamos retornar para casa no dia seguinte.
Resolvemos sair de casa e pegar uma das freeways que cortam a cidade de Los Angeles, mesmo sem a confirmação da reserva. A atendente não retornou, mas, numa nova ligação, toda ela respondida eletronicamente, soubemos que estava tudo encaminhado. Para ajudar, um aplicativo do IPhone atualizava as condições do tráfego e possíveis rotas de fuga. A combinação de um bom “gestor de crise” com um sistema de telefonia celular inteligente e vias de acesso de excelente qualidade nos permitiram chegar ao aeroporto John Wayne a tempo de realizar o check-in com tranquilidade e ainda comer um sanduíche antes do embarque. O aeroporto, bem… De pequeno porte, conforme meus parentes informaram, dão um banho em qualquer aeroporto tupiniquim, mesmo aqueles “internacionais”: arejado, claro, limpo, com boa oferta de serviços, WiFi, funcionários educados, banheiros limpos, funcional. Resumo: em uma hora, fomos do inferno ao céu.
Chegando ao Rio de Janeiro, um choque de anti-civilização. Exceção feita à rapidez da checagem de passaportes brasileiros, todo o resto é de envergonhar qualquer nativo que pretenda receber bem o estrangeiro. Calor intenso, estética deprimente, péssima sinalização, escadas rolantes em mal estado de funcionamento, taxistas berrando em busca de passageiros como se estivéssemos num leilão, preços extorsivos cobrados pelas cooperativas de táxi (cerca de 50 dólares para o percurso aeroporto-zona sul da cidade). Que boas-vindas!
Fico imaginando se o tiroteio no terminal 3 do Aeroporto de Los Angeles tivesse ocorrido num dos terminais do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. O sistema de telefonia celular funcionaria? As vias de acesso ao/do Aeroporto, no bairro da Ilha do Governador, dariam conta do fluxo de veículos buscando a única saída possível, ou seja, o Aeroporto Santos Dumont, no Centro da cidade? As companhias aéreas estariam preparadas para lidar com situações de emergência?
A resposta é clara: NÃO. As ligações feitas a partir da telefonia móvel, além de serem uma das mais caras do mundo (de Houston para o Rio de Janeiro, uma ligação de telefone público custa US$ 1 por dois minutos), rotineiramente ficam pelo meio do caminho, a malha viária da capital fluminense está saturada e engarrafamentos acontecem a qualquer hora do dia ou da noite, mobilidade urbana é apenas um sonho distante.
É claro que o episódio do tiroteio, praticamente um traço cultural do povo norte-americano tanto quanto a nossa decantada malandragem, causou transtornos enormes a milhares de pessoas e, para quem não estava acompanhado de residentes da cidade, como era o nosso caso, voltar para casa foi um martírio. No entanto, para além deste caso em particular, é chocante a forma como o cidadão comum norte-americano, alheio à política internacional do governo, da espionagem, das guerras sujas contra povos soberanos, o cidadão comum que sai para trabalhar todo dia e que paga seus altos impostos, é tratado pelo poder público. Mesmo numa megalópole como Los Angeles, as ruas são limpas e bem sinalizadas, o transporte público, apesar de praticamente todo morador da cidade ter um carro, é moderno, serviços de telefonia e Internet funcionam ininterruptamente, os parques para as crianças estão em perfeito estado, há bebedouros disponíveis para quem tem sede, respeita-se os sinais de trânsito e os pedestres, a sensação de segurança é plena.
Enquanto aqui… Imagina na Copa!

* MARCELO GRUMAN é é Doutor em Antropologia Social pelo PPGAS/MN/UFRJ, Antropólogo e Especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura.

domingo, 10 de novembro de 2013

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Complementando a postagem abaixo...

Projeto de lei pede punição a aluno que desrespeitar professor

Em caso de descumprimento, estudante pode ser encaminhado ao judiciário. Medida divide educadores

IG
São Paulo - Um projeto que está sendo analisado na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados inclui no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) um artigo que obriga os alunos a observarem os códigos de ética e conduta da escola onde estão matriculados e “respeitar a autoridade intelectual e moral de seus docentes”.
Em caso de descumprimento, os alunos nessa faixa etária estarão sujeitos à suspensão e, “na hipótese de reincidência grave, ao seu encaminhamento a autoridade judiciária competente”, conforme diz o texto do dispositivo.
“Visitei quase 200 municípios do meu Estado e percebi, conversando com os pais e com a comunidade escolar, que é preciso fazer alguma coisa para coibir a violência”, explica a deputada Cida Borghetti (PP-PR), autora do projeto de lei 267/11. “Os professores me relatam que são agredidos moral, intelectual e fisicamente.”
Cida explica que a palavra punição não consta em seu projeto de lei. “A palavra correta é responsabilização. Este adolescente precisa ser responsabilizado. A única maneira de resgatar esse aluno é não passar a mão em sua cabeça”, argumenta.
No texto do projeto, a parlamentar diz que os episódios de violência na escola “trata-se de comportamento decrépito, inaceitável e insustentável, que deve ser prontamente erradicado da vida escolar com a adoção de medidas próprias.”
Questionada sobre as medidas judiciais a serem tomadas, a deputada diz que isso caberá ao juiz. “Ele é quem decidirá se encaminha para um atendimento psicológico ou se é o caso de uma decisão mais rígida. Só não podemos continuar convivendo nesse cenário.”
Tramitação
A proposta, que tramita em caráter conclusivo, já foi aprovada na Comissão de Seguridade Social e Família e está atualmente na Comissão de Educação, onde já recebeu parecer favorável da relatora. Em seguida, vai ser analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. De lá, segue para votação no Senado Federal.
A proposta foi tema de audiência pública na terça (29/10), com a participação de diversos setores ligados à educação. E, segundo informações da Agência Câmara, a ideia do projeto dividiu especialistas.
Para alguns, alterar o ECA não vai resolver o problema. A solução para a violência dentro da escola dependeria do fortalecimento do sistema educacional, com a valorização dos profissionais da educação e com a adoção de uma gestão democrática.
Os favoráveis defendemque as escolas precisam de respaldo legal para poder controlar a ação violenta de alunos.
As informações são de Ocimara Balmant

Fernando Leite & Outros Quintais: AS ESCOLAS QUE DESEDUCAM

Fernando Leite & Outros Quintais: AS ESCOLAS QUE DESEDUCAM: Os modelos educacionais, com raríssimas exceções, têm formado, gerações de analfabetos funcionais, verdadeiros párias. E isso é geral. Quand...

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Índices da Imbecilidade Humana

    Essa semana três assuntos aparentemente não correlatos me chamaram a atenção. Vejamos:
* Justin Bieber veio ao Brasil "cantar" para seus fãs, muitos deles em uma espera de meses na fila (esses adolescentes não estudam?). Andou com prostitutas, pichou, chamou repórteres para briga. Não sei se em outros países o talzinho comporta-se dessa forma, mas aqui no Brasil ele sentiu-se a vontade para agir com tanta falta de urbanidade.
* Políticos, em um rasgo de sinceridade, teceram suas infelizes considerações sobre os mendigos. Comida de peixe ( uma sobrevivência infeliz da ditadura), eis o único destino digno para esses seres humanos que não são nada, em um país no qual todos os seus habitantes, com exceção dos políticos, são considerados cidadãos de segunda classe, e há legislação severa em defesa dos animais.
* Na revista Superinteressante dessa semana foi publicada uma matéria dando conta do verdadeiro ódio que vem sendo gerado, nos últimos anos, em relação às pessoas obesas. Mais uma forma de agressão entre seres humanos que são peritos em gerá-las e gerí-las, assim como o racismo, a exclusão de deficientes físicos e mentais, o proselitismo religioso. Armas de quem é frágil demais para lidar com as diferenças, e tapado demais para pensar de maneira autônoma em relação aos meios de comunicação e aos interesses das muitas indústrias que lucram com as neuras humanas.
    É extremamente angustiante perceber que os tempos atuais são realmente os "tempos líquidos" de Baumann, nos quais o ser humano não tem mais estofo intelectual e moral para pensar por si só, analisando e criticando a realidade de forma a retalhá-la e construir um mundo mental e relacional saudável. A sociedade está doente porque o indivíduo tornou-se acomodado e preguiçoso, buscando sempre o caminho mais cômodo e fácil, mas nem por isso o mais suave: abrir mão da independência do pensamento e da construção do seu próprio  mundo. As pontes ruíram...

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Geografando o 6: A Capacidade de Cada Um

Geografando o 6: A Capacidade de Cada Um: Eis dois vídeos que mostram a importância do professor para a sociedade e sua formação: a campanha do governo federal e, mais significativa...

Blog do Cláudio Andrade: Vídeo com voz atribuída à secretária de educação c...

Blog do Cláudio Andrade: Vídeo com voz atribuída à secretária de educação c...: "Os profissionais da educação de Campos estão revoltados com a publicação de um vídeo na internet onde eles são chamados de idiotas....

A difícil arte de ser ateu

Blog da REA

MARCELO GRUMAN*
Quando meu avô materno morreu, em 2000, eu, sentado no sofá de sua casa, tentando assimilar a perda de alguém que eu admirava muitíssimo e que deixava um vazio na minha vida, ouvi de uma vizinha, cuja intenção era consolar-me, uma frase curta do tipo “Deus quis assim” ou “ele foi pra um lugar melhor”. Tempos depois, conversando com um rabino ortodoxo na época em que realizava trabalho de campo para minha dissertação de mestrado, quase fui fazer companhia a meu avô, naquele “lugar melhor”, ao ouvir que o assassinato dos judeus pelos nazistas, incluindo bebês recém-nascidos, era fruto de pecados neste ou noutro mundo. E Deus puniu a todos, perdoar pra quê, escreveu não leu, o pau comeu. Em ambos os casos, por culpa da educação recebida em casa, não respondi à altura os insultos.
Num pequeno texto, intitulado Abraão e Isaque, Luis Fernando Veríssimo imagina um diálogo entre pai e filho, em que o filho, magoado, questiona a submissão do pai e sua disposição de imolá-lo porque alguém ou algo mandou que assim procedesse. Um trecho do diálogo segue assim:
- O fio do cutelo encostou na minha garganta.
- Mas eu não o matei!
- Porque Deus não deixou. Porque Deus mudou de ideia.
- Meu filho…
- Eu sei. Faz muito tempo. É melhor esquecer. Vou conseguir sobreviver às minhas memórias e aos meus pesadelos. Como você sobreviveu ao que sabe.
- O que eu sei?
- Que deve tudo que tem, seu poder e sua glória, a um Deus volúvel. A um Deus incerto do que faz. A um Deus que volta atrás. A um Deus inconfiável.
- Ele estava me testando.
- Então é pior. Um Deus frívolo e cruel.
Frívolo, cruel e, acrescento eu, sádico. Por outro lado, a atitude do pai desnaturado é perfeitamente aceitável se admitirmos que o outro lado da moeda seja a proteção contra o Mal, o conforto de saber que o destino já está traçado, que não se tem responsabilidade sobre ele por mais que o discurso religioso confira ao livre arbítrio um status positivo. A onisciência e a onipotência divina, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, foi magistralmente transposta para o plano humano por Woody Allen, naquela cena antológica em que a mãe judia (quem mais?) aparece como um fantasma sobrevoando a cidade de Nova Iorque. Quem não se lembra do susto, medo, alegria e alívio do personagem que vê sua mãe desaparecer no meio de um show de mágica?
A alternativa ao outro mundo é dolorosa. Romeu e Julieta representam bem a transformação de uma sociedade até então construída única e exclusivamente sobre a Tradição, sobre a reprodução de papéis sociais, onde o presente reproduz o passado e antecipa o futuro. A Tradição significa, tomando emprestado de Sartre uma expressão usada para caracterizar o pensamento racista, “a constância da pedra”, é a imutabilidade, é a chatice em estado puro porque não abre espaço para o livre pensar, para o questionamento.
A tragédia dos Montecchio e Capuleto fala de um momento em que o indivíduo enquanto valor, não apenas corpo com fronteiras físicas bem definidas, passa a dar as cartas, a construir sua história, é quando podemos começar a falar de projeto de vida, de biografia, de construção de identidades. Na realidade, a própria noção de identidade só faz sentido na Modernidade, porque diz respeito à forma como nos vemos e queremos ser vistos pelos outros, e esta definição acontece no processo de interação, não é dada a priori. Aqui, sim, podemos falar de livre arbítrio e das consequências de nossos atos, boas ou más, cuja punição acontece de forma mais pungente na nossa cabeça (tirando, claro, crimes passíveis de punição pelo sistema judiciário).
A Modernidade significa a “psicologização” da vida, a crescente angústia pela indeterminação do dia de amanhã, desde questões triviais como a necessidade de escolhermos o que comer no café da manhã e que roupa vestir para ir ao trabalho até decisões um pouco mais importantes, como a escolha da pessoa com quem se quer dividir o mesmo teto, decisão angustiante ainda que a escolha, condizente com os tempos modernos, não seja inevitavelmente definitiva apesar dos votos recitados ad nauseam na troca das alianças. A escolha do parceiro também é diária, e a eventual separação não é isenta de sofrimento.
A Modernidade abriu espaço e legitimou a existência daqueles que não acreditam na existência de um ser, entidade ou força superior independente de nossa vontade. Ela permitiu que Nietzsche, apesar de não fazer a apologia do ateísmo, chegasse à conclusão de que “Deus está morto”, como observamos nesta passagem de A Gaia Ciência:
Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste ato não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a história até hoje!
Abriu espaço aos ateus. Ser ateu no Brasil não é fácil, a declaração provoca reações que vão do espanto ao medo, passando pela incredulidade (crentes incrédulos?) como se o interlocutor fosse dotado de rabo e chifres (talvez seja…), um fruto exótico ou podre, uma anormalidade pensante. Ser ateu no Brasil significa ser parte de 0,4% da população, segundo os últimos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Talvez seja possível reivindicar cotas, sob o manto da intolerância, da perseguição, do bullying.
Os ateus sofrem bullying cotidianamente ao ligarem a TV aberta, concessão estatal, e se depararem, dependendo da hora do dia, com pregações religiosas em metade dos canais disponíveis; quando, num final de domingo melancólico, são obrigados a ouvir, de dentro de suas casas, os cantos e orações da igreja que fica bem longe, mas dotada de potentes alto-falantes; quando são obrigados a ouvir de um interlocutor que o parceiro teve de acabar com o relacionamento porque, sendo o interlocutor de outra religião, estaria fadado a viver em companhia do Coisa Ruim; quando veem grupos obscurantistas e intolerantes tomando de assalto o Congresso Nacional; quando tem cerceado seu direito constitucional de ir e vir, por conta de eventos religiosos propositadamente mal planejados com o intuito de “dar mídia”.
Devo confessar que invejo aqueles que creem, que tem em quê se apegar nos momentos difíceis, nunca estão sós. Quero ter fé, mas não consigo. Serei um caso perdido? Talvez parte da humanidade tenha substituído Deus pelos psicanalistas, talvez os psicanalistas sejam os deuses modernos, trocaríamos seis por meia dúzia e não aliviaríamos nossas angústias, nosso mal-estar.
Pensando bem, é preferível uma relação em que uma das partes possa ser demitida, com a qual temos uma relação afetiva, sim, mas, principalmente, pecuniária, do que uma relação em que uma das partes tem o direito de vida e morte sobre a outra. O difícil vai ser explicar pro meu filho que, depois daqui, voltamos ao pó.

* MARCELO GRUMAN é Doutor em Antropologia Social pelo PPGAS/MN/UFRJ, Antropólogo e Especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura.