sexta-feira, 11 de outubro de 2013

A difícil arte de ser ateu

Blog da REA

MARCELO GRUMAN*
Quando meu avô materno morreu, em 2000, eu, sentado no sofá de sua casa, tentando assimilar a perda de alguém que eu admirava muitíssimo e que deixava um vazio na minha vida, ouvi de uma vizinha, cuja intenção era consolar-me, uma frase curta do tipo “Deus quis assim” ou “ele foi pra um lugar melhor”. Tempos depois, conversando com um rabino ortodoxo na época em que realizava trabalho de campo para minha dissertação de mestrado, quase fui fazer companhia a meu avô, naquele “lugar melhor”, ao ouvir que o assassinato dos judeus pelos nazistas, incluindo bebês recém-nascidos, era fruto de pecados neste ou noutro mundo. E Deus puniu a todos, perdoar pra quê, escreveu não leu, o pau comeu. Em ambos os casos, por culpa da educação recebida em casa, não respondi à altura os insultos.
Num pequeno texto, intitulado Abraão e Isaque, Luis Fernando Veríssimo imagina um diálogo entre pai e filho, em que o filho, magoado, questiona a submissão do pai e sua disposição de imolá-lo porque alguém ou algo mandou que assim procedesse. Um trecho do diálogo segue assim:
- O fio do cutelo encostou na minha garganta.
- Mas eu não o matei!
- Porque Deus não deixou. Porque Deus mudou de ideia.
- Meu filho…
- Eu sei. Faz muito tempo. É melhor esquecer. Vou conseguir sobreviver às minhas memórias e aos meus pesadelos. Como você sobreviveu ao que sabe.
- O que eu sei?
- Que deve tudo que tem, seu poder e sua glória, a um Deus volúvel. A um Deus incerto do que faz. A um Deus que volta atrás. A um Deus inconfiável.
- Ele estava me testando.
- Então é pior. Um Deus frívolo e cruel.
Frívolo, cruel e, acrescento eu, sádico. Por outro lado, a atitude do pai desnaturado é perfeitamente aceitável se admitirmos que o outro lado da moeda seja a proteção contra o Mal, o conforto de saber que o destino já está traçado, que não se tem responsabilidade sobre ele por mais que o discurso religioso confira ao livre arbítrio um status positivo. A onisciência e a onipotência divina, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, foi magistralmente transposta para o plano humano por Woody Allen, naquela cena antológica em que a mãe judia (quem mais?) aparece como um fantasma sobrevoando a cidade de Nova Iorque. Quem não se lembra do susto, medo, alegria e alívio do personagem que vê sua mãe desaparecer no meio de um show de mágica?
A alternativa ao outro mundo é dolorosa. Romeu e Julieta representam bem a transformação de uma sociedade até então construída única e exclusivamente sobre a Tradição, sobre a reprodução de papéis sociais, onde o presente reproduz o passado e antecipa o futuro. A Tradição significa, tomando emprestado de Sartre uma expressão usada para caracterizar o pensamento racista, “a constância da pedra”, é a imutabilidade, é a chatice em estado puro porque não abre espaço para o livre pensar, para o questionamento.
A tragédia dos Montecchio e Capuleto fala de um momento em que o indivíduo enquanto valor, não apenas corpo com fronteiras físicas bem definidas, passa a dar as cartas, a construir sua história, é quando podemos começar a falar de projeto de vida, de biografia, de construção de identidades. Na realidade, a própria noção de identidade só faz sentido na Modernidade, porque diz respeito à forma como nos vemos e queremos ser vistos pelos outros, e esta definição acontece no processo de interação, não é dada a priori. Aqui, sim, podemos falar de livre arbítrio e das consequências de nossos atos, boas ou más, cuja punição acontece de forma mais pungente na nossa cabeça (tirando, claro, crimes passíveis de punição pelo sistema judiciário).
A Modernidade significa a “psicologização” da vida, a crescente angústia pela indeterminação do dia de amanhã, desde questões triviais como a necessidade de escolhermos o que comer no café da manhã e que roupa vestir para ir ao trabalho até decisões um pouco mais importantes, como a escolha da pessoa com quem se quer dividir o mesmo teto, decisão angustiante ainda que a escolha, condizente com os tempos modernos, não seja inevitavelmente definitiva apesar dos votos recitados ad nauseam na troca das alianças. A escolha do parceiro também é diária, e a eventual separação não é isenta de sofrimento.
A Modernidade abriu espaço e legitimou a existência daqueles que não acreditam na existência de um ser, entidade ou força superior independente de nossa vontade. Ela permitiu que Nietzsche, apesar de não fazer a apologia do ateísmo, chegasse à conclusão de que “Deus está morto”, como observamos nesta passagem de A Gaia Ciência:
Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade deste ato não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses, para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu ato mais grandioso, e, quem quer que nasça depois de nós, passará a fazer parte, mercê deste ato, de uma história superior a toda a história até hoje!
Abriu espaço aos ateus. Ser ateu no Brasil não é fácil, a declaração provoca reações que vão do espanto ao medo, passando pela incredulidade (crentes incrédulos?) como se o interlocutor fosse dotado de rabo e chifres (talvez seja…), um fruto exótico ou podre, uma anormalidade pensante. Ser ateu no Brasil significa ser parte de 0,4% da população, segundo os últimos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Talvez seja possível reivindicar cotas, sob o manto da intolerância, da perseguição, do bullying.
Os ateus sofrem bullying cotidianamente ao ligarem a TV aberta, concessão estatal, e se depararem, dependendo da hora do dia, com pregações religiosas em metade dos canais disponíveis; quando, num final de domingo melancólico, são obrigados a ouvir, de dentro de suas casas, os cantos e orações da igreja que fica bem longe, mas dotada de potentes alto-falantes; quando são obrigados a ouvir de um interlocutor que o parceiro teve de acabar com o relacionamento porque, sendo o interlocutor de outra religião, estaria fadado a viver em companhia do Coisa Ruim; quando veem grupos obscurantistas e intolerantes tomando de assalto o Congresso Nacional; quando tem cerceado seu direito constitucional de ir e vir, por conta de eventos religiosos propositadamente mal planejados com o intuito de “dar mídia”.
Devo confessar que invejo aqueles que creem, que tem em quê se apegar nos momentos difíceis, nunca estão sós. Quero ter fé, mas não consigo. Serei um caso perdido? Talvez parte da humanidade tenha substituído Deus pelos psicanalistas, talvez os psicanalistas sejam os deuses modernos, trocaríamos seis por meia dúzia e não aliviaríamos nossas angústias, nosso mal-estar.
Pensando bem, é preferível uma relação em que uma das partes possa ser demitida, com a qual temos uma relação afetiva, sim, mas, principalmente, pecuniária, do que uma relação em que uma das partes tem o direito de vida e morte sobre a outra. O difícil vai ser explicar pro meu filho que, depois daqui, voltamos ao pó.

* MARCELO GRUMAN é Doutor em Antropologia Social pelo PPGAS/MN/UFRJ, Antropólogo e Especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura.

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