segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Duas tragédias, dois pesos e duas medidas

Blog da REA

Pe. ALFREDO J. GONÇALVES, CS
Duas tragédias, ambas ocorreram quase ao mesmo tempo. A primeira, na escola primária de Sandy Hook, cidade de Newtown, em Connecticut, Estados Unidos: Adam Lanza, jovem de apenas 20 anos, fortemente armado, entra na sala de aula e causa um massacre de 20 crianças e 6 adultos, incluindo a própria mãe, a diretora e uma psicóloga. A segunda, no longínquo mar Egeu naufraga um barco com imigrantes, causando a morte de dezenas de pessoas que tentavam passar da Turquia para a Grécia, como caminho para a Europa.
A primeira, tragédia já repetida, notória e conhecida de países como os Estados Unidos, está estampada em todos os sites de notícias de mundo, ocupa páginas e páginas dos principais jornais, ganha amplo espaço na mídia falada, escrita e televisionada. Com inteira razão, mereceu um pronunciamento de Barack Obama, presidente do país mais rico e poderoso do planeta, e até algumas lágrimas de comoção, ao transmitir às famílias enlutadas as condolências de todo um país enlutado.
A segunda, porém, aparece timidamente, numa espécie de “nota de rodapé” dos noticiários jornalísticos das grandes redes de televisão e rádio, como também nas páginas dos jornais e revistas. Uma notícia como que acanhada e envergonhada, em que não se divulgam nomes e, aparentemente, desvincula-se de qualquer laço familiar. Os imigrantes, neste caso, mais parecem seres errantes, sem raiz, sem nome e sem rumo, aventureiros de uma saga que a humanidade insiste em encobrir. Sim, um tímido lembrete noticioso diante da enorme repercussão e espetacularização da imagem de crianças tão cruelmente assassinadas, de famílias tão brutalmente feridas, por um jovem que mal deixara a adolescência.
Estas linhas não pretendem encobrir o massacre assustador de que foram vítimas as crianças e respectivas famílias nos Estados Unidos. Imagens chocantes e gravíssimas, que nos deixam estarrecidos, onde as palavras sobram ou faltam, e onde grita mais forte o sangue de inocentes e o sentimento de dor e revolta. Ao contrário, estas linhas querem carregar as tintas no tom de indignação que semelhante barbárie deixa em todo ser humano. Mais ainda, erguem-se em alto e bom som no combate a todo tipo de violência, venha ela de onde vier, perpetrada por quem quer que seja.
Ao mesmo tempo, porém, estas linhas se questionam sobre o desinteresse, às vezes descaso ou desconhecimento, de dezenas e centenas, talvez milhares e milhões, de imigrantes que morrem antes de alcançar o destino. Pessoas sem vez e sem voz, mudas e mutiladas como cidadãos dos próprios países. Numa luta desesperada pela sobrevivência e por uma vida de maior qualidade, arriscam uma travessia cheia de perigos, adversidades e humilhações. Mortes que, via de regra, caem no mesmo anonimato em que viviam, na pobreza, miséria e fome dos lugares de origem, quando não vítimas indefesas de guerras e conflitos violentos.
Seres humanos que, tentando fazer da fuga uma nova busca, afogam-se com uma frequência alarmante nos mares Egeu, Mediterrâneo, Golfo do México ou do Caribe, ou morrem de fome e sede nos desertos entre México e Estados Unidos e em tantas outras travessias marcadas, simultaneamente, pela esperança e pelo desespero. Pessoas que desaparecem tão anônima e ignoradamente como haviam vivido. Transformam-se em números, estatísticas, tabelas, porcentagens.
É como se uma vida nos Estados Unidos ou na Europa tivesse um valor consideravelmente superior a uma vida nos países da Ásia, da África ou da América Latina e Caribe. Daí merecerem maior destaque, seja no padrão vida que adotam cotidianamente, seja no momento de morte trágica. Cidadãos de diferentes categorias: classe A e classe B, andar de cima e andar de baixo, Casa Grande & Senzala, na linguagem do sociólogo brasileiro Gilberto Freire. Isso para sequer tocar nos temas da discriminação, preconceito, racismo ou xenofobia – que hoje parecem reacender-se em plena vigência do pluralismo cultural e religioso.
Vale insistir, o massacre de Connecticut (EUA) deve ser repudiado com toda força. Conhecer suas causas pode ser conditio sine qua non para a repetição ou extinção de semelhantes tragédias. Mas a mídia e a opinião pública não podem e não devem fechar os olhos e ouvidos para outros tipos de tragédias. Aquelas que nos chegam dos porões da sociedade contemporânea, onde a vida está mais frágil, esquecida e ameaçada. Por exemplo, conflitos implícitos ou sangrentos e formas de violência que “produzem”, aos milhares, imigrantes, refugiados, prófugos, desplazados, expatriados, migrantes internos, itinerantes… Aqui o grito é tanto mais forte e estridente quanto mais silenciado e silencioso.
Mudanças socioeconômicas e deslocamentos humanos são duas faces da mesma moeda. As ondas na superfície do oceano costumam, ao mesmo tempo, esconder e revelar correntes subterrâneas ocultas e profundas. As migrações são muitas vezes o lado visível de um fenômeno invisível. Fluxos de ondas humanas que, simultaneamente, velam e desvelam transformações de ordem social, econômica, política e cultural. É assim que os migrantes, imigrantes ou desplazados aparecem, não raro, como uma espécie de termômetro das mudanças em curso.
Nesse prisma, resulta que, da mesma forma que as crianças mortas nos Estados Unidos são mártires de um tipo de violência estúpida e absurda, os imigrantes que se afogaram no mar Egeu também são mártires de grandes transformações históricas. Mártires de uma política econômica internacional globalizada, centralizada e excludente. Em conclusão, a morte de civis e inocentes é comparável à morte anônima de trabalhadores que lutam por um futuro mais promissor longe de sua pátria. Em ambos os casos está em jogo a negação de uma cidadania digna, sustentável e solidária, ou, em termos positivos, a justa distribuição dos benefícios do progresso tecnológico.

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