domingo, 9 de dezembro de 2012

A Burrice Desenhada


Blog da REA
LOÉISO PAULO*
Infinitus est numerus stultorum.Eclesiastes, 1-15, citado por Erasmo, Pascal, Cervantes e Machado de Assis)
A burrice, apesar de tantos negarem sua existência, existe de se pegar. João Guimarães Rosa, provavelmente sem essa intenção, evidencia no conto “O burrinho pedrês” a inadequação do substantivo, já que o dito ruminante, nessa narrativa, revela-se muito mais prudente e sagaz que o garboso cavalo no enfrentamento de uma enchente. Mas o uso do substantivo abstrato está de tal modo consagrado que não convém contrariar seu, por assim dizer, direito consuetudinário semântico. Fica aqui, portanto, “burrice” definindo a pouca inteligência em suas várias manifestações, com a devida ressalva à inteligência prática dos burros de quatro patas.
Por que se nega a burrice, em nome do que ela é negada? Há um certo discurso pseudo-democrático que, a propósito de repudiar todas as opressões, a começar pela do Logos (o qual, aliás, tem grande papel emancipador no início de qualquer vida intelectual), confunde liberdade com vale-tudo. Não devia ser bem essa a intenção dos iniciadores da desconstrução das “grandes narrativas”, mas o problema não importa aqui. O que importa é que eles eram muito bem alfabetizados em suas línguas maternas, ao contrário de boa parte dos que hoje se consideram seus seguidores. Em nome da produtividade intelectual, erroneamente medida apenas pelo critério das ciências naturais, justifica-se todo tipo de inacabamento formal e epistemológico. (Sim, isso foi um eufemismo.)
Há vários tipos de burrice. A primeira delas é o déficit intelectual propriamente dito, o qual não merece nenhum reparo, pois não tem remédio nem seu portador tem por ele qualquer responsabilidade. Existe uma burrice passional, muito difundida, que é a do cara que mata a mulher porque se descobre corno. E muitas, muitas outras! Vamos nos restringir à burrice tecnicamente chamada de ideologia, um tipo de auto-engano em que se misturam contingências psicológicas e desinformação. Nada impede que diversas burrices se sobreponham num caso concreto, mas aqui trataremos apenas desse tipo.
Está uma reduzida plateia universitária assistindo a uma conferência. A conferencista, encerrada sua fala, ouve a estranha pergunta. Um estudante quer saber se é “pecado” um crítico gostar de sertanejo universitário. A professora faz um confuso voo circular, no qual comete o sacrilégio de invocar o santo nome de Noel Rosa à pocilga estética mencionada na pergunta. Afinal, não responde coisa alguma. Daí que um circunstante, desconfiado de que ela não tinha nenhuma notícia do que fosse “sertanejo universitário”, atribua-se o direito de tentar sua própria resposta. Aqui vai.
Confuso moço, sua pergunta está mal formulada desde o significado da palavra “crítico”. Crítica significa quebra, separação. Ora, o fenômeno cancionista mencionado na pergunta é a perfeita inversão do conceito de crítica: em vez de separar, junta num sintagma contraditório, paradoxal mesmo, duas palavras de sentidos opostos. A ver, mais adiante. Além disso, a própria pergunta associa uma atividade tipicamente intelectual, a crítica, a um efeito tipicamente afetivo, o gostar.
É difícil para quem nasceu numa terra de cegos acreditar que outra pessoa seja dotada do sentido da visão. Existe um conto de H.G. Wells a respeito: no final, os cegos matam o coitado que enxergava. Millôr, bem mais cínico, preferiu sacanear o provérbio e dizer que “em terra de cego, quem tem um olho é caolho”. Todos somos, em algum grau, vítimas do tempo e do lugar em que nascemos. O Zeitgeist, em qualquer época e qualquer país, talvez possa ser resumido à ideologia, palavra, ao que se diz, usada pela primeira vez por Napoleão e estabelecida no discurso filosófico por Marx e Engels. O esloveno Slavoj Jijek (o teclado não permite usar a grafia correta, faz-se aqui uma transliteração) empreende ampla revisão do conceito no seu livro Um mapa da ideologia. Remeto a ele os interessados num detalhamento maior da questão.
Ocorre que alguns indivíduos, seja por disposição natural do espírito ou pela formação intelectual que recebem, frequentemente pelos dois motivos, resolvem não ser caudatários do Zeitgeist. Não lhe estarão totalmente infensos, porque vivem naquele mundo que ele impregna. Quando alguém resolve passar pelo crivo da própria reflexão as ideias dominantes em seu meio, merece ser adjetivado de “crítico”. Obviamente, é muito mais cômodo fazer parte do “gado imóvel da maioria”, expressão cunhada por Ray Bradbury em Fahrenheit 451, romance transformado em um interessante filme de François Truffaut.
Desde o século XVIII, alguns pensadores resolveram especializar-se em crítica. Podemos dizer que os filósofos eram críticos gerais e que as demandas da sociedade burguesa incluíam o surgimento de críticos especializados. Entre eles, é claro, o crítico literário.
Claro, da crítica literária à crítica da canção popular vai uma certa distância. De qualquer modo, a primeira há uns 20 anos foi confinada à academia, e a segunda praticamente não existe no Brasil. Daí a dificuldade de, como pretendia o perguntador referido, relacionar os dois domínios. Mas isso não significa que a crítica literária seja totalmente desaparelhada para se debruçar sobre um fenômeno como o “sertanejo” universitário. Afinal, as literaturas geralmente nascem como cultura oral e texto musicado; no caso da língua portuguesa, a gênese de nossa lírica está, como todos sabem, nas canções dos trovadores galego-portugueses. Há, portanto, uma intersecção que seria viável explorar.
Mas, como o objeto da discussão é um fenômeno atual, talvez fosse útil primeiro passar a vista por seus antecedentes históricos mais imediatos. Convém lembrar que aquilo que no Brasil, desde pelo menos Chitãozinho e Xororó, é chamado de música sertaneja constitui, na realidade, manifestação típica da periferia mental urbana. As pessoas da roça mesmo gostavam era de Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Dino Franco e Mouraí. O pseudo-sertanejo, com suas letras falando de telefone e fio de cabelo no paletó, pedindo pra riscar um nome da agenda… Levante a mão, por favor, quem conhece uma pessoa representativa do meio rural que use agenda. Essa manifestação, datada do início dos anos 1980, merece sem dúvida um estudo, e provavelmente existem acadêmicos encarregando-se dele. Feito honestamente, ele só poderá mostrar, ainda no âmbito da História, que o “sertanejo” é uma produção empurrada para o público à base de muito jabaculê. Para quem não sabe, jabaculê é o nome que se dá ao suborno das emissoras – de rádio, originalmente – pelas gravadoras, que assim fazem tocar dia e noite aquilo que programaram para vender. Quem é ingênuo pode continuar pensando ser coincidência uma dupla de existência nunca sabida por ninguém aparecer de repente tocando em todos os canais de grande audiência.
Como se vê, é preciso ter uma perspectiva histórica. Não é possível discutir o fenômeno medindo-o com uma régua apenas capaz de alcançar 10 anos. E essa é exatamente a situação de quem não se dispõe a transcender, pela compreensão de que o mundo não começou anteontem, o círculo de giz da própria existência incipiente (e insipiente, a menos que o carinha seja um Rimbaud).
O que teria um crítico literário a ver com a questão? Poderia, por exemplo, valorar as letras dessas canções “populares” à luz daquilo que sempre foi considerado uma letra de qualidade poética (sem ser, claro, poesia). Digamos, para usar algum rigor: um espectro que vá de Cole Porter a Caetano Veloso. Este, por sinal, cunhou em Sampauma epígrafe perfeita para nossa discussão: “É que Narciso acha feio o que não é espelho” – vê-se logo, tradução erudita do anexim versando sobre o cego que se recusa a ver, também tema do conto de H. G. Wells. Os críticos musicais, por sua vez, caso se dignassem chafurdar nesse brejo das almas e dos ouvidos (por onde alguns, incluído o signatário, creem que o Espírito possa emprenhar), ganhariam a chance de demonstrar, por exemplo, como grande parte da música sertaneja a.CX (antes de Chitãozinho e Xororó) não passava da imitação de berreiros mexicanos, por sinal muito superiores à famigerada Jovem Guarda, que parece ser o modelo de muitos “sertanejos” atuais; outros, desde a vestimenta, optam por imitar descaradamente ocountry, pátria de eleição dos cantores fanhosos (“You are always on my mind”, escutem aí em suas infelizes memórias musicais).
A canção popular que faz sucesso de público no Brasil de hoje é apenas e tão somente uma produção industrial. A difusão de música por meio do rádio e da TV foi sempre determinada por critérios industriais, sendo a escala produtiva (nunca a cromática, muito menos a dodecafônica) o principal deles. E não vamos esquecer a facilidade: poucos acordes, vocabulário simplório. Do contrário, simplesmente não daria lucro. Mas chegamos, nesta última década, ao paroxismo de chamar “sertanejo universitário” aquilo que nunca foi sertanejo e universitário jamais seria, caso nossa universidade cumprisse seu papel de dar uma formação intelectual – e não apenas tecnocientífica – à juventude. Os pobres dos estudantes, o mais das vezes, infelizmente ecoam a saborosa expressão caipira no que tange ao desenvolvimento do intelecto e da cultura: “Entrou burro e saiu cavalo.” Ainda que deem excelentes cirurgiões ou químicos, além de eficazes reprodutores da espécie e do Capital.
O artigo não pretende esgotar o assunto. Seria necessário que ele fosse ainda mais comprido e se detivesse um pouco mais no funcionamento da produção de ideologia. Isso nos levaria tão longe quanto a Goebbels e Zdanov, ou ainda Saulo de Tarso. Mas talvez valha ao menos como um rascunho que ajude alguém a iniciar-se na compreensão dessa burrice crismada muito equivocadamente de “sertanejo universitário”. Da qual pode gostar quem quiser, só não pode ao mesmo tempo pretender-se crítico de coisa alguma: a ausência de senso crítico já é patente na aceitação de um sintagma absurdo, não o fosse a simples admissão de uma “música” que não existe para ser ouvida.

* ELOÉSIO PAULO é professor da Universidade Federal de Alfenas (MG) e autor do livro Os 10 pecados de Paulo Coelho.

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