sexta-feira, 29 de março de 2013

Legalidade ou impunidade?

Marcelo Pellegrini
Carta Capital


Para os delegados, é a PEC da Legalidade. Para os promotores, a PEC da Impunidade. A forma como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 37/2011) tem sido tratada fora do Congresso dá o tom do embate entre as policias civis e federal, encabeçados pela Adepol (Associação dos delegados de Polícia), e os integrantes do Ministério Público. O receio destes é justificado: o projeto, de autoria do deputado Lourival Mendes (PTdoB-MA), pretende retirar os poderes de investigação de promotores e procuradores da República. Por causa da proposta, têm circulado pelo Congresso cartilhas sobre as atribuições constitucionais da Polícia e do MP. Ao mesmo tempo, palestras dentro e fora das categorias interessadas são organizadas pelo País.
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Debate sobre se o Ministério Público deve ter poderes investigatório suscita teorias de um possível conta-ataque de parlamentares denunciados pelo órgão. Foto: José Cruz/Agência Brasil
De acordo com a Constituição, os únicos órgãos com permissão para tocar as investigações criminais são a Polícia Civil e Federal. No entanto, a exigência do Ministério Público se apoia em um tratado internacional do qual o Brasil é signatário e assegura seus direitos de investigação. Em uma carta assinada por diversas entidades ligadas ao MP defende-se que “sendo o Brasil subscritor do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional, fez opção no plano internacional por um modelo de Ministério Público investigativo, sendo impensável que no plano interno seja (…) impedido de investigar”.
De acordo com a carta, a PEC significaria, se aprovada, um desrespeito a princípios do direito internacional e isolamento brasileiro em relação aos demais 120 países subscritores do estatuto.
Para o vice-presidente do Ministério Público Democrático, Roberto Livianu, a PEC indica que os interesses que inspiram o Poder Legislativo nem sempre são democráticos. “A proposta é produto da reação de pessoas investigadas e processadas pelo Ministério Público e que querem cercear e enfraquecer a atuação do órgão”, argumenta Livianu. Segundo ele, a PEC é uma forma de reconhecimento, mesmo que distorcida, do trabalho do MP. Como exemplos, o promotor relembra grandes casos investigados pelo Ministério Público como o “mensalão”, os bicheiros do Rio de Janeiro e o Esquadrão da Morte, em São Paulo.
Em resposta, Paulo D’Almeida, presidente da Adepol, argumenta que acima de qualquer tratado internacional deve-se assegurar o que diz a Constituição Federal. Segundo ele, muitas vezes a Promotoria atravessa as investigações policias visando um retorno midiático. “O Ministério Público trabalha de forma seletiva e midiática nas escolhas das investigações”, afirma. “Além disso, a polícia deve ser fiscalizada pelo MP, mas quem fiscaliza a atuação e os procedimentos dos promotores?”, indaga.
Por lei, o Ministério Público deve agir como o fiscalizador da lei, titular da ação penal e o responsável pelo controle externo da polícia. As investigações sobre o MP, prevê a lei, devem ser averiguadas por uma comissão interna do próprio órgão.
Uma polícia fraca
Um dos principais pontos de atrito entre as entidades diz respeito à capacidade da polícia em cuidar dos processos investigatórios sozinha. Para Livianu, hoje não há recursos humanos e financeiros para a Polícia Civil e Federal tocarem as investigações sem o auxílio do Ministério Público. Por isso a proposta é chamada de PEC da Impunidade pelos promotores.
Outra questão-chave é a dependência da polícia em relação ao Poder Público local, em particular nos pequenos municípios. “A polícia não tem a força necessária para realizar os trabalhos investigatórios porque é um organismo que em seu estatuto não tem as garantias que o Ministério Público tem, como a vitaliciedade e a estabilidade profissional de ser um agente do Estado e não um servidor público”, explica o vice-presidente do Ministério Público Democrático.
A realidade de dependência dos promotores é admitida pelos delegados. No entanto, no entendimento da Adepol, um órgão não pode ser fortalecido em detrimento de outro. “O MP deve respeitar a atribuição da polícia e trabalhar para fortalecer o órgão e reivindicar nossas necessidades. Isso sim é trabalhar em cooperação”, diz o delegado D’Almeida.
Para ele, com o fortalecimento da polícia o Ministério Público trabalharia melhor e menos sobrecarregado. “Temos que fazer uma polícia de Estado e não de governo por meio do fortalecimento de nossas corregedorias. Concomitante a isso, o MP deve investigar improbidades e omissões da polícia”, defende. “Assim, cada um faz sua parte e todos cumprem o que a Constituição diz.”
Outro temor em relação à proposta é a possibilidade de todas as condenações obtidas por meio de investigações do MP serem cassadas após a investigação da PEC 37. No entanto, de acordo com D’Almeida, a PEC 37 assegura que, junto à sua aprovação, seja adicionado o artigo 98 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal. Este artigo garantiria o respeito às decisões jurídicas anteriores, baseadas em investigações do Ministério Público.
Tramitação
Até o momento, a PEC 37 já obteve o número mínimo de votos em uma Comissão Especial para ser votada no Plenário da Câmara, embora siga sem uma data estabelecida para a apreciação. A proposta ainda precisa ser votada em dois turnos no Plenário da Câmara antes de seguir para o Senado.
Caso seja aprovada na Câmara, o Ministério Público promete entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF).
O deputado federal Lourival Mendes (PTdoB-MA) não respondeu à reportagem até o fechamento da reportagem. A assessoria do parlamentar orientou a reportagem a obter eventuais esclarecimentos sobre a proposta com a Adepol, uma das partes interessadas do texto.

sexta-feira, 22 de março de 2013

A igreja de D. Paulo Evaristo

Mino Carta
Carta Capital


A rivalidade notória entre Brasil e Argentina não me emociona, embora avalie em toda a sua imponência o dissabor (digamos assim) dos torcedores nativos ao constatarem que, no confronto com a Seleção argentina, esta tem uma vitória a mais. Comparações me parecem descabidas em quaisquer outros gramados: trata-se de países profundamente diferentes, por história, formação, cultura, tradições, condições geográficas e econômicas. Não escapo a uma, contudo, a respeito do comportamento da Igreja Católica dos dois países durante suas ditaduras.
Dom Paulo. Personagem admirável por bravura e compaixão. Foto: Mabel Feres/AE
Dom Paulo. Personagem admirável por bravura e compaixão. Foto: Mabel Feres/AE
A igreja de Paulo Evaristo Arns, Aloisio Lorscheider, Helder Câmara, Ivo Lorscheiter, Pedro Casaldáliga, e de outros, foi de clara e desabrida contestação ao nosso exército de ocupação a serviço da casa-grande e de Tio Sam. A igreja de padre Bergoglio foi conivente. Papa Francisco era então um jovem prelado, mas cometeu seus pecados, como se lê nesta edição no texto assinado por Eric Nepomuceno, grande conhecedor das histórias da América Latina, e da Argentina, especificamente.
Faz pouco tempo, em duas entrevistas, o ditador Videla, velho, arrogante e condenado, manifestou seu agradecimento ao apoio recebido da igreja do seu país. Era o tempo em que o Núncio Apostólico, Pio Laghi, se opunha ao almirante Massera, da trinca golpista, integrada também pelo próprio Videla e pelo brigadeiro Agosti, nas quadras de tênis do clube mais elegante de Buenos Aires. No mais, endosso total.
No Brasil, até Eugênio Salles, conservador convicto que privava da intimidade de Antonio Carlos Magalhães, protegeu perseguidos políticos. Notável, entre as figuras de batina encarnada daquele tempo, dom Paulo Evaristo. Destemido, firme, determinado. Costumava visitá-lo no seu sobrado modesto do Sumaré e o encontro era sempre de muito alento para mim, tocado por sua fala pacata, fiel à verdade dos fatos, mas capaz de inflexões esperançosas.
De fato, imaginávamos um país bem diferente do Brasil pós-ditadura, entregue a uma pretensa redemocratização até hoje bastante discutível. Recordo o cardeal arcebispo de São Paulo, que oficiou o culto ecumênico na Sé, no sétimo dia da morte de Vlado Herzog, e me chamou à sacristia para me apresentar a Helder Câmara, lá estava ele à espera da função, ao lado do rabino Sobel e do pastor Wright, os outros dois oficiantes.
O desafio à ditadura é fato indelével, envolveu milhares de pessoas dispostas a alcançar a catedral, apesar da tentativa da Polícia Militar de estrangular o trânsito paulistano. A Praça da Sé recebeu uma multidão imprevista. As paredes dos palácios que a cercam eram riscadas pela sombra oblíqua dos fuzis dos atiradores de elite, postados atrás de cada janela.
No livro que acabo de publicar pela Editora Record, O Brasil, dom Paulo é personagem relevante e ali relato também uma conversa que tivemos, ele já aposentado, no fim dos anos 90, “em um casarão entre árvores murmurantes”, na periferia de São Paulo. E conto: “Falamos do passado, ele guarda uma boa lembrança do general Golbery que lhe levou uma lista de sumidos nas mãos de algozes do terror de Estado, e o chefe da Casa Civil de Geisel chorou”. De verdade, ele fez três visitas ao Mago Merlin do Planalto, todas com o mesmo propósito.
E mais: “De improviso, põe-se a imitar o papa João Paulo II, descreve-o quando da sua última visita a Roma, curva-se e projeta a cabeça como se, eliminado o pescoço, saísse diretamente do meio do peito, e dali extrai a voz do polaco na tonalidade e no ritmo precisos, arrastada, manquitolante e imperativa. Papa Wojtyla, pontífice estadista dos crentes da religião como garantia de um jogo que, intacto e permanentemente igual a dogma, mantém as coisas como estão, inalteradas. O papa da reação e do inextinguível fingimento, de inegável grandeza do mal, perdão, do Mal, ao se apresentar, sem admitir a dúvida da plateia, como representante do Bem”.
Paulo Evaristo, e alguns ainda, personagem de outra e admirável têmpera, em relação aos colegas argentinos.
P.S.: Reflexão de encerramento
Quando Ratzinger renunciou, a mídia nativa criticou asperamente a presidenta Dilma,
ré por não ter emitido nota oficial a respeito, tanto mais grave o pecado porque o Brasil é o maior país católico do mundo.

Agora a presidenta vai a Roma, e a mídia investiga febrilmente a respeito dos gastos da sua comitiva. Tudo bem, tudo muito bem, estamos no Brazil, zil, zil.
E haja isenção de um lado, do outro resignação. Sinais inequívocos da tradicional geleia geral.

segunda-feira, 18 de março de 2013

É possível um exercício do papado diferente

Leonardo Boff
Jornal do Brasil


A grave crise moral que atravessa todo o corpo institucional da Igreja fez com que  o Conclave elegesse alguém que tenha autoridade e coragem para fazer profundas reformas na Cúria romana e inaugurar uma forma de exercício do poder papal que seja mais conforme ao espírito de Jesus e adequado à nova consciência da humanidade. Francisco é o seu nome. 
A figura do papa é talvez o maior símbolo do sagrado  no mundo ocidental. As sociedades que pela secularização exilaram o sagrado, a falta de líderes referenciais e a nostalgia  da figura do pai como aquele que orienta, cria confiança e mostra caminhos, concentraram na figura do papa  estes ancestrais anseios humanos que podiam ser lidos nos rostos dos fiéis na Praça de São Pedro. Por isso é importante analisar o tipo de exercício de poder  que o papa Francisco vai exercer. Disse em sua primeira fala que vai “presidir na caridade” e não como os anteriores com poder judicial sobre todas as igrejas. 
Para os cristãos é irrenunciável o ministério de Pedro como aquele deve “confirmar os irmãos e as irmãs na fé” segundo o mandato do Mestre. Roma, onde estão sepultados Pedro e Paulo, foi desde os primórdios referência de unidade, de ortodoxia e de zelo pelas demais igrejas. Esta perspectiva é acolhida também pelas demais igrejas não católicas. A questão toda é a forma como se exerce tal função. O papa Leão Magno (440-461), no vazio do poder imperial, teve que assumir a governança de Roma. Tomou o título de papa e de sumo pontífice, que eram do imperador, incorporou o estilo imperial de poder, monárquico, absoluto e centralizado, com seus símbolos, as vestimentas e o estilo palaciano. Os textos atinentes a Pedro que em Jesus tinham um sentido de serviço e de primazia do amor foram interpretados como  estrito poder jurídico. Tudo culminou com Gregório VII, que com o seu “Dictatus papae” (a ditadura do papa) arrogou para si os dois poderes, o religioso e o secular. Surgiu a grande Instituição Total, obstáculo ao caminho da liberdade dos cristãos e da sociedade. 
A partir daí o papa emerge como um monarca absoluto com a plenitude de todos os poderes como o cânon 331 bem o expressa.  Levanta a pretensão de subordinar ao seu poder toda as demais igrejas. Esse exercício absolutista foi sempre questionado, especialmente, pelos Reformadores. Mas nunca foi amenizado. Como reconhecia João Paulo II, este estilo de exercer a função de Pedro é o maior obstáculo ao ecumenismo e à aceitação pelos cristãos que vem da cultura moderna dos direitos e da democracia. Para suprir esta falta, os últimos dois papas organizaram uma espetacularização da fé, com viagens e eventos massivos,  como a dos jovens a se realizar  no Rio. 
Esta forma monárquica e absolutista representa um desvio da intenção originária de Jesus, e agora com Francisco deve ser repensada à luz da intenção de Jesus. Será um papado pastoral e de serviço à caridade e à unidade e não mais um papado do poder jurídico absolutista. O Concílio Vaticano II estabeleceu os instrumentos para uma reformulação no governo da Igreja: o sínodo dos bispos, esvaziado e feito até agora apenas consultivo, quando foi pensado para ser deliberativo. Criar-se-ia um órgão executivo que com o papa governaria a Igreja. Criou-se pelo Concílio a colegialidade dos bispos, quer dizer, as conferências continentais e nacionais ganhariam mais autonomia para permitir um enraizamento da fé nas culturais locais, sempre em comunhão com Roma. Representantes do Povo de Deus, cardeais, bispos, clero e leigos e até mulheres ajudariam a eleger um papa para toda a cristandade. Faz-se urgente uma reforma da Cúria na linha da descentralização. Certamente o que fará o papa Francisco. Por que o Secretariado para as Religiões não Cristãs não pudesse funcionar na Ásia? O Dicastério da unidade dos cristãos em Genebra, perto do Conselho Mundial de Igrejas?  O das missões, em alguma cidade da África? O dos direitos humanos e justiça, na América Latina? 
A Igreja Católica poderia se transformar numa instância não autoritária de valores universais, do cuidado pela Terra e pela vida sob grave ameaça, contra a cultura do consumo, em favor de uma sobriedade  condividida, enfatizando a solidariedade e a cooperação a partir dos últimos contra a exacerbação da concorrência. A questão central não é mais a Igreja mas a Humanidade e a civilização que podem desparecer. Como a Igreja ajuda em sua preservação?  Tudo isso é possível e realizável, sem renunciar em nada à substância da fé cristã. Importa que o papa Francisco seja um João XXIII do Terceiro Mundo, um “Papa buono”. Só assim poderá  resgatar a credibilidade perdida  e ser um luzeiro de espiritualidade e de esperança para todos. 
* Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. - lboff@leonardoboff.com

domingo, 17 de março de 2013

A cultura na lata de lixo

Blog da REA


MARCELO GRUMAN*
    Na última terça-feira, dia 05 de março, a cidade do Rio de Janeiro foi atingida por um temporal que, em poucos minutos, a mergulhou, literalmente, num caos. Quase instantaneamente, ruas e avenidas transformaram-se em rios imundos, compostos de uma mistura fétida de lama, esgoto, galhos de árvores arrancados com a força do vento, lixo de todo tipo (garrafas pet, latas de todos os tamanhos, ferro-velho de modo geral), animais mortos. Dois dos principais túneis da cidade foram fechados, o prefeito recomendou que a população permanecesse onde estivesse até que a situação se “normalizasse” (como se o carioca, mesmo que quisesse, pudesse sair do lugar). As consequências do dilúvio foram conhecidas na manhã seguinte, carros largados no meio da rua, montanhas de lixo acumulado nas esquinas, toneladas de vegetação espalhadas por todo lado, porteiros tirando da frente dos prédios a sujeira que impedia a livre circulação da população pelas calçadas. Cinco pessoas morreram, em diferentes pontos da cidade. Aparentemente, fenômenos climáticos não têm relação com “fenômenos” culturais, mas, neste caso, há.
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Quando tragédias deste tipo acontecem, logo tentamos apontar culpados. Geralmente, o algoz preferido é o Estado ou, mais comumente, seus representantes, governador, prefeito, vereadores, invariavelmente “pegos para Cristo”, incorporando o Mal absoluto. É verdade que o poder público é poder exatamente por ter sido investido da prerrogativa de legislar e executar tudo aquilo que beneficie os responsáveis pela investidura, a cada quatro anos, a população. O Estado tem a obrigação de elaborar e bem executar políticas públicas, dentre elas, o planejamento urbano, fundamental em momentos de crise como o vivido na noite do dia 05 de março. Gestão de riscos, diriam os especialistas. Os representantes do Estado não admitem falhas no planejamento, preferem culpar São Pedro, e insistem que a estrutura dos órgãos públicos responsáveis pela contenção ou redução dos danos materiais e morais funcionou dentro do esperado. Concorde-se ou não com estas afirmações, é fato que o poder público é apenas parte do problema, devendo compartilhar responsabilidades com a própria população.
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A primeira constatação que se tem ao caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro é a da total falta de educação das pessoas com relação ao espaço público. Carros avançam o sinal vermelho como se estivessem em vias expressas, pedestres atravessam as ruas fora da faixa, ziguezagueando entre os carros, flertando com acidentes fatais. Homens (mulheres, excepcionalmente) assoando o nariz e descartando a sujeira nas calçadas, ou escarrando a secreção fruto de um resfriado mal curado ali mesmo. Restos de comida, de embalagens plásticas e de um sem-número de objetos são largados, mesmo que “inconscientemente”, nas calçadas, apesar de cestos de lixo espalhados por todos os cantos. Isto sem falar nos mijões. Muros de propriedades privadas, de prédios públicos, monumentos históricos, a própria paisagem natural transformada em patrimônio cultural, é vandalizada com pichações muitas vezes disfarçadas de arte gráfica. Não é de admirar, portanto, que o escoamento da água, em chuvas torrenciais, fique prejudicado ou, simplesmente, inviabilizado. Os bueiros estão, via de regra, entupidos. É um círculo vergonhoso: a empresa pública de limpeza os desobstrui, a população dá o mau exemplo e o entope novamente, num processo de enxugar o gelo.
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Ainda há muita dificuldade, na sociedade brasileira, em se reconhecer a especificidade do espaço público. Os péssimos exemplos descritos acima mostram que, para boa parte da população, o público é confundido com a expressão “de ninguém”, oposto ao espaço privado. Para ela, a existência enquanto indivíduo moral acontece apenas em “casa”, nas relações afetivas com a família e amigos, para além da qual nada lhe importa porque a proteção está deste lado do muro. Como se a dengue e a leptospirose fossem exclusividade daqueles que não tem acesso a saneamento básico, e que o direito de ir e vir não lhe atingisse, por exemplo, nas caóticas horas do temporal carioca.
O desprezo pelo espaço público também é um sintoma de que o conceito de cidadania moderna ainda não faz parte do vocabulário diário da população. Na realidade, ouvimos cada vez mais a exigência de “cidadania” para os marginalizados sociais, mas a compreensão do que isto significa é capenga porque pressupõe apenas a atuação do Estado, sem prever a contrapartida do cidadão, dotado de direitos e, no que importa aqui, deveres. Dever, por exemplo, de jogar o lixo no lixo, de guardar o papel de bala no bolso da calça até encontrar uma lata de lixo, respeitar para ser respeitado. O espaço público é de todos, compartilhado por todos, onde são estabelecidas relações sociais específicas, nem mais nem menos importantes daquelas do âmbito privado. Público e privado são complementares, não opostos e inimigos.
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Acusar o Estado de todos os males é típico de sociedades patriarcais, paternalistas e autoritárias, onde o “pai” é responsável pela resolução de todos os problemas. O autoritarismo funciona para cima e para baixo: submissão àqueles consideradas superiores na hierarquia social, arrogância e opressão àqueles considerados inferiores na mesma hierarquia. É comum a justificativa da má educação dos que jogam lixo na rua de que “o gari é pago para limpar a rua”. O sentido da frase é “ele é meu empregado, eu lhe pago e posso exigir dele o que bem entender”, como um senhor de engenho fazia com seu escravo.
Estamos diante de um desafio colossal, qual seja, o de transformar a própria forma que a sociedade pensa a si mesma, como vê o mundo, quais os valores que utiliza para dotá-lo de sentido, quais as categorias que utiliza para classificar a realidade, o que é certo e o que é errado, o que é público e o que é privado, o que é lixo e o que não é. Em resumo: trata-se de transformar sua cultura em seu sentido mais básico e genérico, seu sistema de representações.
É urgente enfrentarmos a resignação dos pessimistas que equivalem “cultura” a uma espécie de atavismo genético irrecuperável, incorrigível. Para isso, a educação formal tem papel fundamental, porque é desde cedo que os indivíduos devem aprender o significado da cidadania, do respeito ao outro. Precisamos urgentemente jogar na lata do lixo esta cultura, individualista, egoísta, sob pena de inviabilizarmos a médio e longo prazo a vida nas grandes cidades.

* MARCELO GRUMAN é Antropólogo e Especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura.

terça-feira, 5 de março de 2013

Stalingrado

Blog da REA

JEAN-JACQUES MARIE*

A batalha de Stalingrado foi um momento decisivo da Segunda Guerra Mundial. Foi a primeira derrota do Exército nazista, a que preparou sua derrota final. Além disso, foi o Exército Vermelho que esmagou o nazismo, enquanto os norte-americanos mediam forças com o Japão pelo controle do Pacífico e os ingleses se ocupavam prioritariamente em defender seu império colonial ameaçado. Mas esta vitória, que custou caro em vidas ao Exército Vermelho, foi obtida não graças a Stálin, mas apesar dele.
Desde 1937, Stálin fez de tudo para paralisar o Exército Vermelho. Em nome dos interesses de seu grupo de burocratas e de seu próprio poder, ele, entre 1937 e 1939, dizimou o alto comando do Exército Vermelho e o corpo de oficiais.
Em 1939, a partir da assinatura do pacto germano-soviético, Stálin proibiu a propaganda antifascista, a ponto de bloquear a difusão na Alemanha de um panfleto antifascista do Partido Comunista Alemão, reforçando assim um pouco mais o regime de Hitler.
Em 1º de dezembro de 1939, Stálin desencadeou a invasão da Finlândia por empurrar a fronteira da URSS cerca de 30 quilômetros para o norte. O Exército Vermelho, desorganizado pelos expurgos, privado de um comando experimentado, se paralisa longo tempo diante da forte linha Mannerheim (linha de defesa da Finlândia) e sofre duras perdas durante quatro meses. O Exército Vermelho perde então 126.875 homens, mortos, desaparecidos ou aprisionados, contra apenas 20 mil baixas do Exército finlandês. A URSS, revelando sua fraqueza militar, encoraja Hitler a atacar. Hitler tinha feito ataques esparsos à União Soviética algumas vezes, mas o comportamento vergonhoso do Exército Vermelho ajuda o nazista a convencer seu Estado Maior de que poderia atacar a URSS antes de pôr a Inglaterra de joelhos, em um momento em que a vitória parecia muito fácil… Eis porque, em dezembro, ele adota o plano Barbarossa de ataque à URSS.
Mas Stálin não toma nenhuma medida para preparar a defesa da URSS. Ele espera persuadir Hitler com sua passividade e com a pontualidade pela qual atende todos os pedidos da Alemanha nazista de minerais diversos. O marechal Joukov assinala: “Até o início da agressão à União Soviética, a esperança de adiar a guerra nunca abandonou Stálin”. Sua incompreensão total da política e da psicologia de Hitler levou-o a proibir qualquer medida que o nazista pudesse ver como uma provocação. Stálin ignora todas as advertências que lhe vêm de toda parte – de seu agente no Japão, Sorge; do residente da NKVD (polícia política, depois KGB) em Kichinev, Goglidzé; e do adido soviético-ad junto em Berlim, Khlopov. Stálin não reage aos 324 casos de violação do espaço aéreo soviético pela Luftwaffe (força aérea alemã) entre 1º de janeiro e 22 de junho de 1941. Pior ainda, ele – que vê espiões por todos os lados, inclusive entre seus auxiliares próximos – autoriza grupos de especialistas alemães a entrar no território soviético para fazer levantamentos topográficos, sob o pretexto de encontrar túmulos de soldados alemães da Primeira Guerra Mundial.
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As violações do espaço aéreo e os levantamentos feitos no solo permitem aos alemães mapear os locais que vão bombardear impunemente em 22 de junho. Stálin declara então ao marechal Timochenko: “A Alemanha não combaterá jamais sozinha contra a Rússia”.
Em 21 de junho, o chefe da NKVD, Beria, envia a Stálin duas notas. Sabendo que Stálin, julgando-se infalível, não suporta a menor critica, denuncia um informante soviético “que mente, afirmando que Hitler concentrou 170 divisões contra nós sobre nossa fronteira ocidental”, e conclui: “Mas eu e meus homens, Iossif Vissarionovicht [Stálin], nos apegamos firmemente em vossa sagaz previsão: Hitler não nos atacará em 1941”.
Assim que Stálin é informado, em 22 de junho de 1941, às 3 horas da manhã, que a Wermacht (Forças Armadas da Alemanha) havia entrado na URSS, ele se recusa durante horas a ordenar uma reação, e permite assim à aviação alemã destruir sem dificuldades cerca de mil aviões soviéticos em solo. Ele envia Molotov para verificar com o embaixador da Alemanha se seu país realmente declarou guerra à URSS antes de tomar a menor providência!
O avanço relâmpago da Wehrmacht, em face do despreparo de Stálin, permite que os alemães capturarem centenas de milhares de soldados soviéticos pegos de surpresa. Stálin, recolhido em seu escritório no Kremlin, qualifica de traidores essas vítimas de sua irresponsabilidade. Centenas de milhares de outros soldados se desorientam e fogem.
Numa estratégia genial, Stálin proíbe qualquer recuo em face do ataque em massa alemão. Em 29 de julho, Jukov, constatando que o Exército da frente sudoeste corre o risco de ser cercado pela Wehrmacht, propõe reagrupá-lo atrás do rio Dnieper e abandonar Kiev, a seu ver indefensável. Stálin o demite das funções de chefe do grande quartel-general do Exército Vermelho e exige de Khruschov que ele não recue de Kiev custe o que custar.
Em 10 de setembro, os blindados alemães abrem uma cunha no Exército Vermelho e ameaçam Kiev. Stálin proíbe que se evacue a cidade. Resultado: meio milhão de soldados soviéticos é feito prisioneiro. E foi assim até a batalha de Stalingrado.
Um relatório encaminhado a Beria pelo comissário da NKVD, Milstein, em outubro de 1941, informa que 657.364 desertores abandonaram suas unidades militares e foram capturados pelas seções especiais do NKVD, que fuzilaram 10.201. Quem é responsável por esta debandada, senão aquele que esperou a invasão para tomar alguma providência? Sem os erros catastróficos de Stálin, “o maior homem de todos os tempos e de todos os povos”, segundo a propaganda oficial, jamais as tropas alemães poderiam ter se aproximado da cidade. Em 1946, Jukov será acusado de haver declarado a alguns generais soviéticos: “Stálin era e ainda é um zé ninguém”.
À sua incompetência militar se somava uma prática política que consistia em resolver os problemas somente pelo terror. Os aviões soviéticos voam mal? Ele fez fuzilar Rytchagov, o chefe da aviação soviética. No entanto, os aviões não passaram a voar melhor! Em 1942, Stálin mandou fuzilar 32 generais acusados de serem os culpados por todas as derrotas que suas decisões causaram, e assim por diante…
Durante os cinco meses da batalha de Stalingrado, 13.500 soldados e oficiais acusados de covardia, deserção, recuo sem autorização e automutilação foram fuzilados pela NKVD.
Uma das lições da batalha de Stalingrado é a de que, para os povos, é de grande importância não ter como dirigentes homens que lhes fazem pagar muito caro por sua própria incúria, glorificada como a própria expressão de sua genialidade imaginária.
[Tradução: ANÍSIO G. HOMEM]

* JEAN-JACQUES MARIE, historiador francês, fundador da revista “Cahiers du Mouvement Ouvrier” (Cardernos do Movimento Operário), coordenador do Centre d’Études et de Recherches sur les Mouvements Trotskyste et Révolutionnaires Internationaux – CERMTRI (Centro de Estudos e Pesquisas do Movimento Trotskista e Revolucionário Internacional) e autor de biografias “Lénine: la révolution permanente”, “Trotsky: Révolutionnaire sans frontières”, e “Khrouchtchev: la réforme impossible”. Suas obras editadas no Brasil são “Stalin” (Babel), “O Trotskismo” (Perspectiva), “Os quinze primeiros anos da Quarta Internacional”, (Nova Palavra) e “Os Dissidentes Soviéticos” (Difel).
Artigo originalmente publicado na edição Nº 239 (21 a 27 de fevereiro de 2013) do  jornal “Informations Ouvrières” (Informações Operárias) do Parti Ouvrier Indépendant(Partido Operário Independente) francês.