MARCELO GRUMAN*
Na última terça-feira, dia 05 de março, a cidade do Rio de Janeiro foi atingida por um temporal que, em poucos minutos, a mergulhou, literalmente, num caos. Quase instantaneamente, ruas e avenidas transformaram-se em rios imundos, compostos de uma mistura fétida de lama, esgoto, galhos de árvores arrancados com a força do vento, lixo de todo tipo (garrafas pet, latas de todos os tamanhos, ferro-velho de modo geral), animais mortos. Dois dos principais túneis da cidade foram fechados, o prefeito recomendou que a população permanecesse onde estivesse até que a situação se “normalizasse” (como se o carioca, mesmo que quisesse, pudesse sair do lugar). As consequências do dilúvio foram conhecidas na manhã seguinte, carros largados no meio da rua, montanhas de lixo acumulado nas esquinas, toneladas de vegetação espalhadas por todo lado, porteiros tirando da frente dos prédios a sujeira que impedia a livre circulação da população pelas calçadas. Cinco pessoas morreram, em diferentes pontos da cidade. Aparentemente, fenômenos climáticos não têm relação com “fenômenos” culturais, mas, neste caso, há.
Quando tragédias deste tipo acontecem, logo tentamos apontar culpados. Geralmente, o algoz preferido é o Estado ou, mais comumente, seus representantes, governador, prefeito, vereadores, invariavelmente “pegos para Cristo”, incorporando o Mal absoluto. É verdade que o poder público é poder exatamente por ter sido investido da prerrogativa de legislar e executar tudo aquilo que beneficie os responsáveis pela investidura, a cada quatro anos, a população. O Estado tem a obrigação de elaborar e bem executar políticas públicas, dentre elas, o planejamento urbano, fundamental em momentos de crise como o vivido na noite do dia 05 de março. Gestão de riscos, diriam os especialistas. Os representantes do Estado não admitem falhas no planejamento, preferem culpar São Pedro, e insistem que a estrutura dos órgãos públicos responsáveis pela contenção ou redução dos danos materiais e morais funcionou dentro do esperado. Concorde-se ou não com estas afirmações, é fato que o poder público é apenas parte do problema, devendo compartilhar responsabilidades com a própria população.
A primeira constatação que se tem ao caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro é a da total falta de educação das pessoas com relação ao espaço público. Carros avançam o sinal vermelho como se estivessem em vias expressas, pedestres atravessam as ruas fora da faixa, ziguezagueando entre os carros, flertando com acidentes fatais. Homens (mulheres, excepcionalmente) assoando o nariz e descartando a sujeira nas calçadas, ou escarrando a secreção fruto de um resfriado mal curado ali mesmo. Restos de comida, de embalagens plásticas e de um sem-número de objetos são largados, mesmo que “inconscientemente”, nas calçadas, apesar de cestos de lixo espalhados por todos os cantos. Isto sem falar nos mijões. Muros de propriedades privadas, de prédios públicos, monumentos históricos, a própria paisagem natural transformada em patrimônio cultural, é vandalizada com pichações muitas vezes disfarçadas de arte gráfica. Não é de admirar, portanto, que o escoamento da água, em chuvas torrenciais, fique prejudicado ou, simplesmente, inviabilizado. Os bueiros estão, via de regra, entupidos. É um círculo vergonhoso: a empresa pública de limpeza os desobstrui, a população dá o mau exemplo e o entope novamente, num processo de enxugar o gelo.
Ainda há muita dificuldade, na sociedade brasileira, em se reconhecer a especificidade do espaço público. Os péssimos exemplos descritos acima mostram que, para boa parte da população, o público é confundido com a expressão “de ninguém”, oposto ao espaço privado. Para ela, a existência enquanto indivíduo moral acontece apenas em “casa”, nas relações afetivas com a família e amigos, para além da qual nada lhe importa porque a proteção está deste lado do muro. Como se a dengue e a leptospirose fossem exclusividade daqueles que não tem acesso a saneamento básico, e que o direito de ir e vir não lhe atingisse, por exemplo, nas caóticas horas do temporal carioca.
O desprezo pelo espaço público também é um sintoma de que o conceito de cidadania moderna ainda não faz parte do vocabulário diário da população. Na realidade, ouvimos cada vez mais a exigência de “cidadania” para os marginalizados sociais, mas a compreensão do que isto significa é capenga porque pressupõe apenas a atuação do Estado, sem prever a contrapartida do cidadão, dotado de direitos e, no que importa aqui, deveres. Dever, por exemplo, de jogar o lixo no lixo, de guardar o papel de bala no bolso da calça até encontrar uma lata de lixo, respeitar para ser respeitado. O espaço público é de todos, compartilhado por todos, onde são estabelecidas relações sociais específicas, nem mais nem menos importantes daquelas do âmbito privado. Público e privado são complementares, não opostos e inimigos.
Acusar o Estado de todos os males é típico de sociedades patriarcais, paternalistas e autoritárias, onde o “pai” é responsável pela resolução de todos os problemas. O autoritarismo funciona para cima e para baixo: submissão àqueles consideradas superiores na hierarquia social, arrogância e opressão àqueles considerados inferiores na mesma hierarquia. É comum a justificativa da má educação dos que jogam lixo na rua de que “o gari é pago para limpar a rua”. O sentido da frase é “ele é meu empregado, eu lhe pago e posso exigir dele o que bem entender”, como um senhor de engenho fazia com seu escravo.
Estamos diante de um desafio colossal, qual seja, o de transformar a própria forma que a sociedade pensa a si mesma, como vê o mundo, quais os valores que utiliza para dotá-lo de sentido, quais as categorias que utiliza para classificar a realidade, o que é certo e o que é errado, o que é público e o que é privado, o que é lixo e o que não é. Em resumo: trata-se de transformar sua cultura em seu sentido mais básico e genérico, seu sistema de representações.
É urgente enfrentarmos a resignação dos pessimistas que equivalem “cultura” a uma espécie de atavismo genético irrecuperável, incorrigível. Para isso, a educação formal tem papel fundamental, porque é desde cedo que os indivíduos devem aprender o significado da cidadania, do respeito ao outro. Precisamos urgentemente jogar na lata do lixo esta cultura, individualista, egoísta, sob pena de inviabilizarmos a médio e longo prazo a vida nas grandes cidades.
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