quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Revolução e Democracia

Revista Caros Amigos
Por Boaventura de Sousa Santos
Tenho vindo a escrever que um dos desenvolvimentos políticos mais fatais dos últimos cem anos foi a separação e até contradição entre  revolução e democracia como dois paradigmas de transformação social. Tenho afirmado que esse facto é, em parte, responsável pela situação de impasse em que nos encontramos. Enquanto no início do século XX dispúnhamos de dois paradigmas de transformação social e os conflitos entre eles eram intensos, hoje, no início do século XXI, não dispomos de nenhum deles. A revolução não está na agenda política e a democracia perdeu todo o impulso reformista que tinha, estando transformada numa arma do imperialismo e tendo sido em muitos países sequestrada por antidemocratas.
Esta tensão entre revolução e democracia percorreu todo o século XIX europeu mas foi na Revolução Russa que a separação, ou mesmo incompatibilização, tomou forma política. É debatível a data precisa em que tal ocorreu, mas o mais provável é que tenha sido em Janeiro de 1918, quando Lenine ordenou a dissolução da Assembleia Constituinte onde o Partido Bolchevique não tinha maioria. A grande revolucionária Rosa Luxemburgo foi a primeira a alertar para o perigo da ruptura entre revolução e democracia. Estando na prisão, Rosa Luxemburgo escreveu em 1919 um panfleto sobre a revolução russa cujo destino foi turbulento, só muito mais tarde tendo sido publicado na íntegra. Nesse texto, Rosa Luxemburgo escreve de modo lapidar que a liberdade só para os apoiantes do governo ou só para os membros de um partido não é liberdade. A liberdade é sempre e exclusivamente a dos que pensam diferentemente, e acrescenta: “Com a repressão da vida política no país todo, a vida dos sovietes (o poder popular ou conselhos de operários, camponeses e soldados) definhará mais e mais. Sem eleições gerais, sem total liberdade de expressão e de reunião, sem a disputa livre entre as opiniões, a vida morre nas instituições públicas, torna-se uma mera aparência de vida em que a burocracia é o único elemento activo. A vida pública adormece aos poucos, e uns poucos líderes partidários, dotados de uma energia sem limites e com grande experiência, são quem governa. Entre eles, apenas um pequeno numero de notáveis dirige enquanto a elite da classe operária é convidada de tempos a tempos a participar em encontros para aplaudir os discursos dos líderes e aprovar por unanimidade as resoluções propostas—no fundo, o trabalho de uma clique, uma ditadura, não certamente do proletariado, mas de um pequeno grupo de políticos… Estas condições causarão inevitavelmente a brutalização da vida pública: tentativas de assassinato, liquidação de reféns.” Um texto premonitório de alguém que seria, ela própria, assassinada dois anos depois.
Vivemos um tempo de possibilidades desfiguradas. A revolução seguiu uma trajectória que foi dando cada vez mais razão às previsões de Rosa Luxemburgo e foi levando a cabo uma transição que, em vez transitar para o socialismo, acabou por transitar para o capitalismo, como bem ilustra hoje o caso da China. Por sua vez, a democracia (reduzida progressivamente à democracia liberal) perdeu o impulso reformista e provou não ser capaz de se defender dos fascistas, como mostrou a eleição democrática de Adolfo Hitler. Aliás, o “esquecimento” da injustiça socio-económica (para além de outras, como a injustiça histórica, racial, sexual, cultural e ambiental) faz com que a maioria da população viva hoje em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas.
Se o drama político do século XX foi separar revolução e democracia, atrevo-me a pensar que o século XXI só começará politicamente no momento em que unir revolução e democracia. A tarefa pode ser assim resumida: democratizar a revolução e revolucionar a democracia. Vejamos como. Dados os limites de espaço, as orientações são formuladas em termos de princípios com escassa explicação.
Democratizar a revolução. Primeiro, são por vezes necessárias rupturas que quebram a ordem política existente. Esta, quando se auto-designa democrática, é certamente uma democracia de minorias para as minorias, em suma, uma falsa democracia ou uma democracia de baixíssima intensidade. A ruptura só se justifica quando não há outro recurso para pôr fim a este estado de coisas e o seu objectivo principal é o de construir uma democracia digna do nome, uma democracia de alta intensidade para as maiorias, com respeito pela acomodação das minorias. A revolução não pode correr o risco de se perverter na substituição de uma minoria por outra. Segundo, a ruptura, como o nome indica, rompe com uma dada ordem, mas romper não significa fazê-lo com violência física. No dia da tomada do Palácio de Inverno morreram poucas pessoas e os teatros funcionaram normalmente. Tal como na Revolução de 25 de Abril de 1974, em que morreram quatro pessoas e houve um ferido grave. Terceiro, os fins nunca justificam os meios. A coerência entre uns e outros não é mecânica mas devem equivaler-se nos tipos de acção e de sociabilidade política que promovem. Neste sentido, não é admissível que se sacrifiquem gerações inteiras em nome de um futuro radioso que hipoteticamente virá. O futuro daqueles que mais precisam da revolução são as maiorias empobrecidas excluídas, discriminadas e lançadas pela sociedade injusta em zonas de sacrifício. O seu futuro é amanhã e é amanhã que devem começar a sentir os efeitos benéficos da revolução. Terceiro, historicamente muitas revoluções foram rápidas em despolarizar as suas diferenças com os inimigos e antigas classes dominantes, ao mesmo tempo que polarizaram, por vezes de forma brutal, as suas diferenças com grupos revolucionários, cuja linha política fora derrotada. Chamou-se a isso sectarismo e dogmatismo. Esta perversão dominou toda a esquerda política do século XX. Quarto, a luta de classes é uma luta importante mas não é a única. As lutas contra as injustiças e discriminações raciais (colonialismo) e sexuais (hétero-patriarcado) são igualmente importantes, e a luta de classes nunca terá êxito se as outras também não tiverem. Vivemos em sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais e as três formas de dominação actuam articuladamente. Ao contrário, os homens e as mulheres que lutam contra a injustiça concentram-se, em geral, numa das lutas, negligenciando as outras. Enquanto as lutas se mantiverem separadas, nunca terão êxito significativo. Quinto, não há uma única forma de emancipação social. Há múltiplas formas e, por isso, a libertação ou é intercultural ou nunca será
Revolucionar a democracia. Primeiro, não há democracia, há democratização progressiva da sociedade e do estado. Segundo, não há uma única forma legítima de democracia, há várias, e o conjunto delas forma o que designo por demodiversidade. Tal como não podemos viver sem a biodiversidade, também não podemos viver sem demodiversidade. Terceiro, nos diferentes espaços-tempos da nossa vida colectiva, as tarefas de democratização têm de ser levadas a cabo de modo diferente, e os tipos de democracia serão igualmente distintos. Não é possível a democratização do estado sem a democratização da sociedade. Distingo seis espaços-tempo principais: família, produção, comunidade, mercado, cidadania e mundo. Em cada um destes espaços a necessidade de democratização é a mesma, mas os tipos e os exercícios de democracia são diferentes. Quarto, seguindo o pensamento político do liberalismo, as sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais em que vivemos reduziram a democracia ao espaço-tempo da cidadania, o espaço que designamos por político, quando todos os outros são igualmente políticos. Por isso, a democracia liberal é uma ilha democrática num arquipélago de despotismos. Quinto, mesmo reduzida ao espaço da cidadania, a democracia liberal, também conhecida por representativa, é frágil, porque não pode defender-se facilmente dos anti-democratas e dos fascistas. Para ser sustentável, tem de ser complementada e articulada com a democracia participativa, ou seja, com a participação organizada e apartidária de cidadãos e cidadãs na vida política muito para além do exercício do direito de voto, que obviamente é precioso; apenas não é suficiente. Sexto, os próprios partidos têm de se reinventar como entidades que combinam dentro de si formas de democracia participativa entre os seus militantes e simpatizantes, sobretudo na formulação dos programas dos partidos e na escolha de candidatos a cargos electivos. Sétimo, a democracia de alta intensidade deve distinguir entre legalidade e legitimidade, entre o primado do direito (que inclui os direitos fundamentais e os direitos humanos) e o primado da lei (direito positivado), ou seja, entre rule of law e rule by law. O primado da lei (rule by law) pode ser respeitado por ditadores, não assim o primado do direito (rule of law). Oitavo, hoje em dia governar democraticamente significa governar contra a corrente, já que as sociedades nacionais estão sujeitas a um duplo constitucionalismo: o constitucionalismo nacional, que garante os direitos dos cidadãos e as instituições democráticas, e o constitucionalismo global das empresas multinacionais, dos tratados de livre-comércio e do capital financeiro. Entre os dois constitucionalismos há enormes contradições, já que o constitucionalismo global não reconhece a democracia como um valor civilizacional. E o mais grave é que, na maioria das situações, em caso de conflito entre eles, é o constitucionalismo global que prevalece. Quem controla o poder do governo não é necessariamente quem controla o poder social e económico. É o que sucede com os governos de esquerda. Para que estes sustentem, não podem confiar exclusivamente nas instituições. Devem saber articular-se com a sociedade civil organizada e com os movimentos sociais interessados em aprofundar a democracia e dispor de meios de comunicação próprios que rivalizem com os média corporativos em geral subordinados aos ditames do constitucionalismo global.


Democratizar a revolução e revolucionar a democracia não são tarefas fáceis, mas são a única via para travar o caminho ao crescimento das forças de extrema-direita e fascistas que vão ocupando o campo democrático, aproveitando-se das debilidades estruturais da democracia liberal. A miséria da liberdade será patente quando a grande maioria da população só tiver liberdade para ser miserável.

sábado, 23 de dezembro de 2017

O golpe valeu a pena para 1% da população

Manfredo de Oliveira
O ano se aproxima do fim e a direção que está sendo dada ao país está tornando possível às pessoas entenderem que o que estava em jogo no afastamento do governo anterior era, na realidade, mais uma versão de uma característica do Brasil marcado, desde a primeira metade do século XX, pelas mudanças estruturais das sociedades modernas”, escreve Manfredo Araújo de Oliveira, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Como afirma Jessé Souza: “… a vida política do Brasil, desde então, é dominada por golpes de Estado movidos pela elite do dinheiro com o apoio da imprensa e da base social da classe média, sempre que a soberania popular ameaçar ou efetivar, por pouco que seja, interesses das classes populares”. Trata-se sempre de um amplo acordo de interesses entre as diversas elites que agora é comandado pela elite financeira.
Por isto, o primeiro interesse a ser considerado é o interesse econômico uma vez que a elite econômica pode comprar todas as outras elites através de diferentes estratégias. Por exemplo, ela apoiou sua sócia no saque da sociedade, que é a mídia, e tentou comprar as eleições através do financiamento das campanhas e pela cooptação de um aliado de ocasião dentro do Estado, o aparato jurídico-policial. Para ele, o golpe não teria acontecido sem a politização do judiciário o que agora aparece em nova luz: a Constituição é deixada de lado, direitos são negados. Isto faz aparecer a natureza do que se articulou: a junção de capitalismo selvagem de rapina e do enfraquecimento das garantias democráticas. A execução do plano foi um jogo de mestres: em nome da justiça e da moralidade se fez um violento ataque à democracia e às garantias constitucionais. Uma vez consumado o golpe, todos os interesses articulados partem para a rapina e o saque do espólio: vender as riquezas brasileiras, em primeiro lugar o petróleo, cortar gastos sociais já que o que  vale primeiro é o interesse do 1% mais rico.
Onde ficam os pobres neste projeto? No esquecimento, na marginalidade, com salários aviltantes por serviços à classe média e às empresas dos endinheirados. Os juros bancários estão entre os maiores do mundo e constituem uma espécie de taxa universal que se adiciona a todos os preços de mercado, pesando arbitrariamente sobre todas as classes sociais, proporcionalmente mais sobre os pobres, a fim de drenar o produto do trabalho de todos para o bolso da elite do dinheiro. Como diz Dowbor: “Os bancos e outros intermediários financeiros demoraram pouco para aprender a drenar o aumento da capacidade de compra do andar de baixo da economia, esterilizando em grande parte o processo redistributivo e a dinâmica e o crescimento estimulado  pela demanda”.
Esta é, diz Jessé, a verdadeira “corrupção brasileira”, escandalosa, mas invisível, que faz com que o trabalho de todos vá parar no bolso de menos de 1% e privilegiados “que não apenas vampirizam a sociedade e sua capacidade produtiva, mas colonizam a democracia e a sociedade para seus fins”. Estes podem afirmar tranquilos: o golpe valeu a pena!

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Uma nova Idade Média e o seu fim inevitável, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro
Fonte: GGN

Um dos aspectos mais curiosos da crise brasileira é a aparente unidade das Forças Armadas do Brasil. O programa de modernização da Marinha, baseado na construção de submarinos nucleares, foi abortado pela Lava Jato com a condenação e prisão do Almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva. O projeto de renovação da Força Aérea está sendo ameaçado pelo MPF. Mesmo assim, os almirantes e brigadeiros sempre aparecem sorridentes ao lado do comandante do Exército.
Dentro do Exército as coisas são ainda mais estranhas. Num dia centenas de generais se reúnem reforçando o discurso oficial de preservação da democracia (muito embora ela tenha sido atropelada por um golpe parlamentar/judicial). No outro, um general falastrão vai à imprensa cogitar a possibilidade de intervenção militar(eufemismo utilizado para disfarçar o aprofundamento do golpe de 2016). A estranha tranquilidade que reina entre os militares, não pode ser vista nem no Legislativo nem no Supremo Tribunal Federal.
No Legislativo o mal-estar é provocado pelo crescimento da candidatura de Lula e pela proposta do ex-presidente petista de realizar um plebiscito para revogar todas reformas neoliberais impostas ao Brasil pelos golpistas. No STF, que certamente será convocado a decidir sobre a possibilidade e/ou validade do resultado do plebiscito desejado por Lula caso ele seja realizado, as acusações e ofensas trocadas por membros Corte durante sessões de julgamento se tornaram mais frequentes, bizarras e desagradáveis. Todavia, as discussões entre os Ministros do STF não resultaram em rompimento (ou seja, nenhum deles convocou militares para prender seus adversários).
Tudo isso, parece confirmar a opinião de professor da Faculdade de Direito de Lyon que tentou interpretar o Brasil:
“A solução de um conflito entre o Exército e a Marinha poderia ter conseqüências mais perigosas. O Govêrno dos Juízes pode ser meio durável de governo, porque no interior de tribunais imiscuídos na política, a lei da maioria permite suprimir os conflitos ou sumprimi-los de maneira muito mais segura e pacífica do que em outras assembléias. Quando os chefes de um Exército são levados a tomar decisões políticas, a lei da maioria dificilmente pode evitar os conflitos de opinião e, mesmo conseguindo impor-se, o espírito militar sairia enfraquecido.” (Os Dois Brasis, Jacques Lambert, Brasiliana - volume 335, Companhia Editora Nacional, 1969, p. 273/274)
Lambert, porém, não deixou de fazer uma advertência importante. Quando os juízes assaltam o poder político “... a diversidade de opinião dêstes últimos não oferece grandes perigos, a não ser talvez, para a serenidade da justiça.” (Os Dois Brasis, Jacques Lambert, Brasiliana - volume 335, Companhia Editora Nacional, 1969, p. 273). O estudioso francês, porém, não foi capaz de perceber o verdadeiro alcance de um regime político centralizado nas mãos do Poder Judiciário.
Os juízes brasileiros constituíram casta e vem sua atividade como uma espécie de sacerdócio que passa de pai para filho. Eles preferem se manter apartados da população e cultuam uma exagerada fidelidade corporativa. No Brasil, o corporativismo dos juízes chega a ser tóxico. Tanto que eles defendem um privilégio que não existe em nenhum outro lugar: a aposentadoria remunerada compulsória como maior punição  imposta a um juiz que comete crimes no exercício da função.
Ciosos dos privilégios senhoriais que desfrutam, os juízes alimentam a crença de que pertencem a uma elite, de que eles são o que existe de melhor intelectual e moralmente na sociedade. Em razão de sua origem familiar e econômica, os juízes brasileiros demonstram arraigada aversão à Política e ódio à Democracia. Eles desejam limitar o espaço da primeira e controlar a livre expressão da segunda, pois no imaginário deles ambas (Política e Democracia) são ou podem ser fontes daquilo que eles mais temem: uma inversão na hierarquia social. Eles gostam de julgar, mas detestam ser julgados. Não foi por acaso que eles apoiaram o golpe de 2016.
A mim parece evidente que, com exceção da hereditariedade, os juízes se assemelham, de certa maneira, aos clérigos da Idade Média. Isso explica os métodos medievais que alguns deles passaram a usar para destruir lideranças petistas e interromper programas de inclusão sociais criados pelo PT. E já que estamos falando desse assunto nunca é demais lembrar as palavras de outro estudioso:
“... a próxima Idade Média deveria durar cerca de um século. A duração deveria ser ligeiramente maior nos Estados Unidos, onde a nova era se iniciará antes do que outros lugares. O renascimento seguinte poder-se-ia iniciar quase que em qualquer lugar - no Brasil, no México, na Argentina, na China, no Japão, na Suécia - mas parece mais provável que se verifique uma convergência de fenômenos similares em lugares muito distantes uns dos outros, já que, verossimilmente, um dos frutos da presente civilização que não se desperdiçará será o das comunicações rápidas, pelo menos, por via do rádio (ainda que não por meio do satélite, porque não mais existirá uma organização capaz de assegurar a periódica substituição dos satélites ‘estáveis’ para telecomunicações). E se as idéias poderão ser comunicadas rapidamente, a nova civilização poderá surgir com aspectos uniformes em países diversos e longínquos, visto que o único renascimento que poderemos imaginar deve implicar necessariamente na existência de um movimento de idéias novas.
Nos primeiros meses de 1971, algum indício econômico sugeriu que a retração experimentada em grande parte do Ocidente poderia encaminhar-se para o seu final: se, em lugar disso, o slump continuar, a crise final poderá ser retardada por alguns anos. Após a retração, ver-se-á um novo boom e isso (o que se verificará a seguir) poderá levar à instabilidade e ao abalo.
Entre 1985 e 1995, a Idade Média já estará se iniciando.” (A Próxima Idade Média, Roberto Vacca, Pallas S/A, Rio de Janeiro, 1975, p. 128)
A nova Idade Média chegou, mas pelas mãos do neoliberalismo e não por causa da crise sistêmica do capitalismo imaginada por Roberto Vacca. A catástrofe que nós vivemos não é fruto de uma hecatombe econômica  e sim do colapso da idéia da igualdade social. A desigualdade crescente entre ricos e pobres começou nos EUA durante o governo Ronald Reagan (anos 1980) e de lá se espalhou pelo Ocidente. Nos países em que essa desigualdade já existia e começava a declinar (caso do Brasil), a chegada da nova Idade Média ocorreu pelas mãos dos juízes: foram eles que em 2016 se encarregaram de apoiar e legitimar a interrupção do processo de inclusão social e de construção da igualdade social por intermédio da Política e da Democracia.
Toynbee acreditava o o homem “...deveria viver para amar, compreender e criar.” (A Sociedade do Futuro, Zahar Editores, 3a. edição, Rio de Janeiro, 1976, p. 13) e que o “... amor verdadeiro é um sentimento que supera o egocentrismo, que se expressa numa atividade extrapessoal em benefício dos outros.”  (A Sociedade do Futuro, Zahar Editores, 3a. edição, Rio de Janeiro, 1976, p. 15). Mas ele também sabia que o “...sentimento racial é uma ameaça à paz mundial e um obstáculo à unidade da humanidade.” (A Sociedade do Futuro, Zahar Editores, 3a. edição, Rio de Janeiro, 1976, p. 160).
Movidos pelo egoísmo, os juízes brasileiros criaram um regime infame que se apóia tanto no racismo criminoso quanto no ódio à igualdade social manifestado pelos neo-escravocratas que apoiam as reformas neoliberais. A guerra movida aos pobres e aos seus líderes fica mais evidente quando prestamos atenção na maneira como os juízes se posicionam. Lula foi condenado por um crime que ele não cometeu e não poderia ter cometido (o Triplex era da construtora e havia sido dado em garantia a CEF), os juízes delatados como beneficiários de propinas pagas no âmbito da Lava Jato nem foram investigados. Os juízes apoiam a reforma da previdência, desde que os benefícios previdenciários deles (que já são maiores do que os dos demais cidadãos) não sofram qualquer corte.
A presidenta do STF disse há algum tempo que um estudante custa 13 vezes menos do que um preso. A racionalidade do argumento econômico que ela utilizou em favor da educação esconde algo importante. Se não existisse uma guerra movida contra a juventude brasileira pelas gerações mais velhas (inclusive e principalmente a dos juízes) os jovens não seriam vistos como um peso para a sociedade. Advogado, jornalista, professor e político, Freitas Nobre disse que:
“O jovem vive da esperança e do ideal.
Não matemos nele o que a juventude sempre traz de melhor, para que a sociedade não venha a morrer de tédio nem afogar-se na melancolia do arrependimento tardio.
Ou compreendemos o jovem na sua função renovadora e nas responsabilidades de todas as épocas pelas mais justas mudanças da estrutura social, ou estaremos matando na sua fonte, o espírito de atualização que é a característica dos moços de todas as épocas.” (Constituinte, Freitas Nobre, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1978, p. 120)
A nova Idade Média imposta ao Brasil pelos juízes adeptos do neoliberalismo é ainda mais cruel em relação aos jovens pobres. Os investimentos em educação foram congelados e as universidades públicas estão sendo sucateadas, mas os empregos criados após a Reforma Trabalhista não proporcionam e não proporcionarão renda suficiente para que eles possam pagar universidades privadas. Vítimas do racismo e da violência policial e ruralista, os jovens de origem indígena, mestiços e negros são os que se tornaram mais vulneráveis após o golpe neoliberal legitimado por juízes medievais. Eles não tem mais o direito de sonhar com a libertação através da educação.
Abandonados à própria sorte pelo regime neoliberal infame criado com ajuda dos juízes medievais, os jovens brasileiros que recorrerem à violência serão processados, condenados e encarcerados por homens brancos, cultos e bem-sucedidos de meia idade. O perfil socioeconômico da magistratura brasileira (transcrito abaixo) revela um dado importante: gostemos ou não, no Brasil a guerra entre o Judiciário e a sociedade é sobretudo uma guerra racial e programaticamente racista.
“A magistratura brasileira é composta majoritariamente por homens. Segundo os números preliminares do Censo dos Magistrados, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no final do ano passado, 64% dos magistrados são do sexo masculino. Eles chegam a representar 82% dos ministros dos tribunais superiores. Os dados foram divulgados nesta segunda-feira (16/6), no Plenário do CNJ, durante a 191ª Sessão Ordinária do Conselho.
Realizado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ/CNJ) entre 4 de novembro e 20 de dezembro de 2013, o levantamento também aponta que a maioria da magistratura é casada ou está em união estável (80%) e tem filhos (76%). A idade média de juízes, desembargadores e ministros é de 45 anos. Na Justiça Federal estão os juízes mais jovens, com 42 anos, em média. Em geral, a carreira dos magistrados começa aos 31,6 anos de idade, enquanto a das magistradas começa aos 30,7 anos.
Em relação à composição étnico-racial da carreira, juízes, desembargadores e ministros declararam ser brancos em 84,5% dos casos. Apenas 14% se consideram pardos, 1,4%, pretos e 0,1%, indígenas. Segundo o censo, há apenas 91 deficientes no universo da magistratura, estimado em pouco mais de 17 mil pessoas, segundo o anuário estatístico do CNJ Justiça em Números, elaborado com base no ano de 2012.”
O que fazer? A resposta dos golpistas ao previsível aumento da criminalidade juvenil nos próximos anos será o aumento da repressão policial e do encarceramento.  A supremacia do Direito Penal do Inimigo sobre os princípios constitucionais do Direito Penal e do Direito Processual Penal já era uma triste realidade antes do golpe de 2016. Tudo indica que isso vai piorar, razão pela qual segue sendo relevante a advertência feita por um eminente político norte-americano:  
“Alguns - talvez já agora uma maioria de americanos - apregoarão que a resposta ao nosso problema criminal está em ‘ser duro’ com os criminosos, voltando aos tempos em que os métodos de repressão estavam inteiramente fora do âmbito da supervisão judicial. Há uma crença amplamente difundida que ‘tribunais estão mimando os criminosos’ e que os ‘direitos do indivíduo estão destruindo os direitos da sociedade’. êstes pontos de vista, por mais preponderantes que sejam são errôneos e perigosos. São errôneos porque consideram a relação entre liberdade individual e crime; são perigosos porque ameaçam direitos constitucionais vitais, sem fornecer nenhuma solução real ao aumento do crime.” (Decisões para uma década, Edward M. Kennedy, Editora Expressão e Cultura, Rio de Janeiro, 1968, p. 81/82)
A única solução viável para o Brasil é resgatar a dignidade da Política e da Democracia proporcionando inclusão social inclusive e principalmente pela expansão e melhoria do sistema público de educação. E o sistema de justiça brasileiro - notoriamente caro, ineficiente e programaticamente racista - terá que ser obrigado a ajudar a pagar esta conta. A guerra movida aos pobres, pardos, índios e negros com ajuda dos juízes tem que necessariamente resultar numa ampla reforma do Poder Judiciário, com a extinção de privilégios, redução dos salários nababescos, equivalência previdenciária entre as autoridades judiciárias e os demais servidores públicos e a punição efetiva e dura dos abusos que foram e que serão praticados pelos sacerdotes togados da nova Idade Média brasileira. Mas para que isso ocorra, a esquerda terá que contar com o apoio das Forças Armadas ou, pelo menos, da maioria dos oficiais das três armas.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

"A Operação Condor foi um pacto criminal dos regimes militares"

Entrevista - Cleonildo Cruz

Fonte: Carta Capital
por Marsílea Gombata — publicado 22/08/2016 04h58, última modificação 22/08/2016 10h15
Em documentário, diretor brasileiro resgata atrocidades cometidas no âmbito da aliança entre países do Cone Sul
martin almada
Martin Almada revelou nos anos 1990 o maior acervo documental já descoberto sobre a ditadura de Alfredo Stroessner no Paraguai (1954-1989) e a Operação Condor
Desvendar a aliança entre países do Cone Sul que, com apoio logístico e financeiro dos Estados Unidos, perseguiram, torturaram e mataram militantes de esquerda contrários aos regimes militares desses países é uma tarefa necessária para contar a história do continente. Não apenas para mostrar a confluência ideológica entre vizinhos, mas a maneira como a tomada de decisões – a exemplo da tortura pelas mãos do Estado – foram orientadas pelo governo americano.
Foi na tentativa de resgatar evidências e a complexidade da aliança que o cineasta Cleonildo Cruz viajou para Argentina, Uruguai, Paraguai, Peru, Chile e Bolívia, onde pesquisou à exaustão documentos e realizou entrevistas com sobreviventes e parentes das vítimas. O resultado foi o filme Operação Condor - Verdade inconclusa, primeiro documentário a percorrer todos os países que compactuaram com os EUA.
Foi na tentativa de resgatar evidências e a complexidade da aliança que o cineasta Cleonildo Cruz viajou para Argentina, Uruguai, Paraguai, Peru, Chile e Bolívia, onde pesquisou à exaustão documentos e realizou entrevistas com sobreviventes e parentes das vítimas. O resultado foi o filme Operação Condor - Verdade inconclusa, primeiro documentário a percorrer todos os países que compactuaram com os EUA.
Apesar de elogiar a Comissão Nacional da Verdade brasileira, Cruz observa em entrevista a CartaCapital que o Brasil ainda tem muito a esclarecer sobre a aliança, que simbolizou a atuação dos EUA por trás das ditaduras latino-americanas.
Cruz considera que estamos atrasados em relação aos nossos vizinhos no que diz respeito à responsabilização dos algozes do Estado. Repassar o passado, para ele, é o primeiro passo para compreender o presente e não repetir violações no futuro.
“Não podemos nos calar frente às arbitrariedades dos órgãos de repressão que praticam a criminalidade estatal”, diz. O filme, que foi lançado em novembro no Chile e teve pré-estreia em São Paulo, agora será exibido em nova sessão de pré-estreia no próximo dia 24, no Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte
CartaCapitalComo surgiu a ideia de fazer o documentário?
Cleonildo Cruz: Realizar Operação Condor - Verdade Inconclusa foi algo inexorável. Na condição de cineasta que é historiador, venho descortinando o regime militar no Brasil e não poderia fechar o ciclo sem tratar da Operação Condor para desvendar bastidores e verdades não reveladas da aliança político-militar entre vários regimes militares da América do Sul: Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Paraguai e Uruguai, com apoio logístico e financeiro dos EUA, formalizada em 1975, em Santiago do Chile.
É um complemento, ao lado do documentário Olhares Anistia, finalizado neste mês com a jornalista Micheline Américo. O filme revisitará o movimento de luta pela anistia, seus desdobramentos históricos e questões ambíguas durante a sua aprovação ambientada ainda na ditadura, em 28 de agosto de 1979, até sua recente polêmica validação pelo Supremo Tribunal Federal. 
CCQual foi o processo para a execução do filme em termos de entrevistas e viagens?
CC: O processo foi denso e envolveu as etapas de pré-produção, produção e pós-produção, totalizando mais de 30 entrevistas. Realizamos várias pesquisas primárias e secundárias nos sítios históricos do Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Peru, Chile e Bolívia. Tenho plena certeza que Condor é o melhor que temos na filmografia da América Latina sobre o tema. Além do componente da pesquisa histórica, temos o emocional, que é muito forte. 
Buscamos documentos, relatos, ouvindo familiares e vítimas sobreviventes das torturas dentro da Operação Condor. Quando estamos frente a frente com cada um dos entrevistados, temos de ter controle emocional para ouvir, perguntar e conduzir a filmagem. Mas quando estamos na etapa de pós-produção não conseguimos segurar a emoção e choramos profundamente. 
O filme é dedicado aos familiares latino-americanos que, com seus testemunhos, recompilam o que foi a Operação Condor: Aide Rita, Sara Basso, Elisa Cerqueira, Edgardo Binstock, Lilian Celiberti, Roberto Perdia, Andrés Habegger, Gustavo Molfino Giannetti, Julio Abreu, Alicia Cadenas Ravela, Elba Rama, Roger Rodriguez,Mateo Gutiérrez, Sofia Prats, Fran Uruguay, Macarena Gelmán, Martin Almada, Flor Hernandez Zazpe, Dora Careno, Laura Elgueta, Errandonea, Paulina Veloso e Juan Pablo Letelier. 
CCO que ainda falta ser esclarecido sobre a Operação Condor?
CC: Acredito que falta esclarecer a verdade sobre muitos latino-americanos sequestrados, torturados e assassinados, assim como seus restos mortais, para que suas famílias possam colocar um ponto final à história. Não restam mais dúvidas que a Operação Condor foi um pacto criminal dos regimes militares do países do Cone Sul. 
Imagem que representa morto e desaparecido político no Museu da Memória: Ditadura e Direitos Humanos, do Paraguai (Foto: Reprodução)
CCConhecer melhor a Operação Condor pode trazer que tipo de esclarecimento sobre o presente?
CC: Mostra que não podemos nos calar frente às arbitrariedades dos órgãos de repressão que praticam a criminalidade estatal ou pela omissão de órgãos designados para investigar e encaminhar os responsáveis à Justiça. Quando um agente do Estado comete arbitrariedades criminalizando movimentos sociais e prendendo inocentes está cometendo o mesmo crime hediondo que foi praticado nos porões da ditadura no Brasil.  
CC: O quanto a Comissão Nacional da Verdade brasileira conseguiu avançar para desvendar o que ocorreu na Operação Condor, em sua opinião? 
CC: A Comissão Nacional da Verdade é um órgão de governo estabelecido para determinar os fatos, causas e consequências de violações de direitos humanos sobre o passado recente. Mas muito falta a ser esclarecido sobre a Operação Condor.
Trago o exemplo do sequestro da argentina Noemí Molfino. Obtive acesso ao documento que revela que a ditadura brasileira participou do sequestro da militante no Peru em 12 de junho de 1980, que apareceu morta dia 19 de junho de 1980 em seu apartamento em Madri. A ação da Operação Condor envolveu o Brasil, e seu filho, Gustavo Molfino, espera até hoje uma resposta da Comissão Nacional da Verdade.
CCComo enxerga as investigações de outros países da região em relação ao período ditatorial? Eles avançaram mais do que nós? 
CC: O Brasil foi o último país a criar uma Comissão Nacional da Verdade. Só esse ponto explica o resultado de apenas esclarecer os fatos e resgatar a memória do que foi o regime civil-militar no País. Os outros países avançaram muito mais que nós. Talvez seja essa a explicação de não termos caminhado para a responsabilização dos agentes do Estado que praticaram a criminalidade estatal.
Vivemos um regime entre 1964 e 1985. Tivemos a Lei de Anistia 6.683 de 1979, a Constituição de 1988, e as leis 9.140/95 e 10.559/02, pela implantação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e da Comissão de Anistia. O conceito de justiça de transição, no entanto, vai muito além da busca pela verdade e memória, da reparação às vítimas do regime civil-militar.
Significa a responsabilização dos agentes do Estado que agiram criminalmente sequestrando, torturando, assassinando e ocultando os mortos. A Comissão Nacional fez a opção mais cômoda de apenas resgatar a verdade e a memória como política de Estado. É preciso caminharmos para uma justiça de transição efetiva e não apenas um resgate histórico. 
CCAlém de aliados políticos, o que ganhavam os EUA apoiando governos de direita em nome da luta contra o comunismo? 
CC: O controle hegemônico da política e economia do mercado de capitais da região. A interligação dos aparatos repressivos dos vários regimes militares da América do Sul (como Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Paraguai e Uruguai) não seria possível sem o apoio logístico e financeiro dos EUA. Embaixadas interligadas em comunicados permanentes, trocas de correspondências e monitoramentos. Tinham todos os movimentos da esquerda na América Latina monitorados. Era tempo da Guerra Fria, e a Doutrina de Segurança Nacional norteou a unificação dos aparatos repressivos de forma oficial em 1975.
É uma grande mentira dizer que essa relação dos EUA com as ditaduras na região se deu de forma mais efetiva após a oficialização da Operação Condor, em 25 de novembro de 1975. Os EUA gestaram em suas embaixadas todos os golpes militares dos países da América Latina, agindo além das suas fronteiras para desestabilizar as democracias.
CCQual a herança que nos deixa a Operação Condor? Como superá-la?
CC: Existe a herança do pacto criminal que foi a Operação Condor, que ainda hoje carregamos não só subjetivamente, mas com a prática do autoritarismo dentro das nossas corporações políticas e policias. É uma constatação de que os direitos humanos não são convertidos em política de Estado na América Latina. 





sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Os brasileiros têm uma percepção equivocada da realidade?

por Caroline Oliveira — publicado 07/12/2017 17h01      Carta Capital
O Brasil está entre os primeiros países em que a população menos tem noção da realidade em que vive, segundo a pesquisa “Os Perigos da Percepção”

Intervenção MilitarNo Brasil, acredita-se que a cada 100 pessoas presas, 18% são provenientes de outro país, quando o dado oficial é de apenas 0,4%. Assim como acredita-se que o percentual de garotas entre 15 e 19 anos que dão à luz anualmente é de 48%, mas na realidade é de 6,7%.

As comparações são da pesquisa “Os Perigos da Percepção”, divulgada nesta quarta-feira, 6 de dezembro, e realizada pelo Instituto Ipsos Mori, que mede do Índice de Percepção Equivocada. Dentre 38 nações, os brasileiros são a segunda maior população com uma percepção do contexto da sociedade diferente da realidade do País.
Segundo Danilo Cersosimo, diretor da Ipsos Public Affairs, o deslocamento da realidade a partir da percepção está relacionado à desigualdade no acesso à formação educacional e cultural. “Quando observamos os itens da pesquisa, como população carcerária, imigração e gravidez entre jovens, vemos que a população não se apropria desses temas”, afirma Cersosimo, cuja análise também aponta a falta de acesso à informação como um dos pontos estruturantes deste quadro.
“Existe uma questão crônica de falta de debate, que deveria começar na escola para formar pessoas com mais senso crítico. Qual modelo de sociedade estamos formando? Quais ferramentas o Brasil está provendo para seus cidadãos?”, questiona.

Para realizar a pesquisa, entre setembro e outubro de 2017, mais de 29 mil pessoas ao redor do mundo responderam a perguntas sobre dados da realidade, posteriormente comparados aos números oficiais. Ainda que as perguntas fossem diferentes em 2016, naquele ano o Brasil alcançou a posição do sexto lugar.
“A mudança de perguntas é uma maneira de tornar a pesquisa dinâmica de um ano para o outro. Mas a lógica é a mesma: testar a percepção em relação à realidade, até porque nem todos os dados mudam anualmente. Existem informações do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas) que serão atualizadas daqui a dez anos”.
Cersosimo explica que o perigo maior da percepção equivocada é o “tornar-se um cidadão vulnerável a qualquer tipo de discurso e informação que não necessariamente seja correta”, ainda mais em um contexto de novas tecnologias.
“Os Perigos da Percepção”
Segundo a pesquisa, no Brasil acredita-se que num universo de 100 pessoas do sexo feminino, entre 15 e 24 anos, 24% cometeram suicídio. O dado oficial é 4,3%. Quando analisadas pessoas do sexo masculino, a percepção sobe para 25% e o número real desce para 3,3%.
Quando do assunto é acesso a itens eletrônicos. Os brasileiros têm a percepção de que, num universo de 100 pessoas, 47% possuem smartphones. Quando na realidade, o dado oficial cai para 38%.
Quanto a homicídios, 76% dos entrevistados acreditam que atualmente a taxa é maior do que no ano 2000. No entanto, o percentual é igual ao daquele ano.
"Em todos os 38 países analisados, cada população erra muito em sua percepção. Temos percepção mais equivocada em relação ao que é amplamente discutido pela mídia, como mortes por terrorismo, taxas de homicídios, imigração e gravidez de adolescentes", afirmou Bobby Duffy, diretor de pesquisas do instituto, em entrevista à Folha de S. Paulo.
Na mesma esteira de percepção da realidade, uma pesquisa realizada pela Oxfam e o Instituto DataFolha mostra que para 46% dos brasileiros é necessário ter uma renda de pelo menos 20 mil reais para fazer parte dos 10% mais ricos do País. Quando o valor oficial é de apenas três salários mínimos, 2.811 reais.
Perfil
A pesquisa foi realizada online, o que limita o alcance do estudo à percepção da população com acesso à Internet no País. De acordo com a Pnad do IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), o Brasil alcançou 102,1 milhões de pessoas na Internet. Essa amostragem tende a ser urbana, estar mais presente em capitais e regiões metropolitanas. No entanto, “isso não significa que não tenham sido contempladas cidades do interior”, afirma Cersosimo.

Os números representam “o público conectado, ou seja, da classe A e B majoritariamente. É uma população, digamos, com um perfil de mais acesso à informação, o que é contraditório se olharmos para a posição do Brasil no ranking”
.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

"Mídias sociais favoreceram a imbecilidade"

Cortella comenta a cultura do ódio que se disseminou pelo país: na internet todos têm uma opinião, mas poucos têm fundamentos para ancorá-la
Fonte: Carta Capital
Por Renata Martins
A instantaneidade e conectividade das mídias sociais fomentam um ambiente hostil em que todos têm "alguma opinião sobre algo, mas poucos têm fundamentos refletidos e ponderados para iluminar as opiniões", diz o filósofo e professor universitário Mario Sergio Cortella, em entrevista à DW Brasil. 
Cortella é uma figura influente na sociedade brasileira como palestrante, debatedor e comentarista de rádio. Com mais de um milhão de livros vendidos entre seus 33 títulos lançados, Cortella traduz à linguagem coloquial e adapta à realidade atual do Brasil complexos temas filosóficos, existenciais e políticos como "se você não existisse, que falta faria?" ou "o caos político brasileiro". Nesta entrevista, ele analisa como a cultura do ódio é alimentada por "analfabetos políticos".
DW Brasil: Etimologicamente, a palavra "cultura" (culturae, em latim) originou-se a partir de outro termo, colere, que indica o ato de "cultivar". Podemos considerar que a "cultura do ódio", que se vê eclodir na sociedade brasileira, é algo que já estava presente nas relações sociais, vem sendo cultivado e agora encontrou o tempo ideal para a "colheita"?
Mario Sergio Cortella: O ódio é uma possibilidade latente, mas não é obrigatório. Contudo, não havia tanta profusão de ferramentas e plataformas para que fosse manifestado e ampliado como nos tempos atuais no Brasil. A instantaneidade e a conectividade digital permitiram que um ambiente reciprocamente hostil – como o da fratura de posturas nas eleições gerais do final de 2014 – encontrasse um meio de expressão mais veloz e disponível, sem restrição quase de uso e permitindo que tudo o que estava aprisionado no campo do indivíduo revoltado pudesse emergir como expressão de discordância virulenta e de vingança repressiva.
DW: Qual o papel das redes sociais nesse fenômeno? Você concorda com Umberto Eco, para quem as mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis?
MSC: As mídias sociais favoreceram, sim, o despontar de um palanque também para a imbecilidade e a idiotia. Antes delas, era preciso, para se manifestar, algum poder mais presente ou a disponibilidade de uma tribuna mais socialmente evidente. Agora, como efeito colateral da democratização da comunicação, temos o adensamento da comunicação superficial, na qual todos têm (e podem emprestar) alguma opinião sobre algo, mas poucos têm fundamentos refletidos e ponderados para iluminar as opiniões. Como dizia Hegel: "quem exagera o argumento, prejudica a causa".
DW: Por que pensar e se expressar de forma distinta daquilo "com o que eu concordo" passou a ser o estopim para reações de ódio exacerbado no Brasil?
MSC: Uma sociedade antes fragmentada concentrou-se em ser mais dividida. Isto é, dois lados em confronto, agora dispondo de arsenais mais contundentes de propagação e, por outro lado, vitimadas por poderes comunicacionais dos quais desconhece a face e o interesse. O salvacionismo moral sugerido por alguns em meio a uma crise de valores republicanos e à degradação econômica encontrou fácil disseminação. Como se diz em português: "para quem está com o martelo na mão, tudo é prego..."
DW: Como explicar casos de "cidadãos de bem" sendo atores de ações de censura, de extrema intolerância e violência, verbal e física, contra outros cidadãos, igualmente "de bem"?
MSC: O "cidadão de bem", entendido como aquele que não faz o que faz por maldade, é a encarnação do que Bertolt Brecht chamava de "analfabeto político". Isto é, alguém que, portador de boas intenções, age em consonância desconhecida com as más intenções de quem almeja uma situação disruptiva e oportunista.
DW: Quem se beneficia dessa explosão de ódio?
MSC: Todos os "liberticidas" e todos os "democracidas" são herdeiros dessa seara incendiadora que exclui o conflito (divergência de ideias ou posturas) e alimenta o confronto (busca de anulação do divergente).
DW: Aonde essa cultura do ódio e intolerância no país pode nos conduzir? Tempos sombrios estão por vir?
MSC: Tempos sombrios podem vir, sempre. Contudo, podem ser evitados se houver uma aliança autêntica em meio às diferenças entre aqueles e aquelas que recusam a brutalidade simbólica e física como instrumento de convivência. Não há um caminho único para o futuro. Não há a impossibilidade de esse caminho parecer único. Não há inevitabilidade de que um caminho único venha.
DW: "Até nos tempos mais sombrios temos o direito de ver alguma luz", disse a filósofa alemã Hanna Arendt. Qual seria a luz para começar a responder a essa cultura do ódio?  
MSC: A luz mais forte é a da resistência organizada e persistente de quem deseja escapar das trevas e não quer fazê-lo sozinha, nem excluir pessoas e muito menos admitir que impere o malévolo princípio de "cada um por si e Deus por todos". Seria praticando cotidianamente o "um por todos e todos por um". Afinal, como dizia Mahatma Ghandi, "olho por olho, uma hora acaba.

domingo, 26 de novembro de 2017

A Diva Negra

 carioca que enfrentou o racismo e virou cantora lírica

Rio - O sorriso largo da foto ao lado e o carinhoso beijo do tenor francês Albert Lance retratavam a triunfante volta por cima de Maria D'Apparecida. A cantora lírica carioca nascera Maria de Aparecida Marques em 1935 e, até se firmar na difícil e excludente música erudita, enfrentou o racismo sem jamais desistir de seu sonho. D'Apparecida retornava ao Brasil em agosto de 1965 para a montagem da ópera 'Carmen', de Bizet. Eram tantas as expectativas e os elogios que o Theatro Municipal teve de programar uma apresentação extra. Os ingressos se evaporaram em questão de horas.

Maria D'Apparecida e o tenor Albert Lance, EM entrevista na Maison de France, no Rio, um dia da estreia companhia da Opera de Paris no Theatro Municipal, com 'Carmen'Arquivo O Dia

Maria foi criada na Tijuca, por uma família que a adotou. Professora formada no tradicional Instituto de Educação, chegou a lecionar em uma escola pública na Pavuna e ainda trabalhou como modelo e locutora de rádio, funções 'toleradas' para uma jovem negra na segunda metade do século 20. Mas o desejo de cantar era maior. Maria se formou no Conservatório Brasileiro de Música do Rio, apesar de ouvir de muitos que uma negra não poderia ser cantora de ópera do Municipal.
Foi aí que começou a metamorfose de Maria em D'Apparecida. A mezzo-soprano foi em 1961 para a França, onde adotou o nome artístico pomposo que, no entanto, não lhe tirou o amor pela cultura brasileira e ajudou a moldar seu repertório.

Maria aos 30 anosArquivo O Dia

Lá fora, cantou eruditos brasileiros como Villa-Lobos e Ernani Braga. Com o disco 'Chants Brésiliens', com participação do músico Turíbio Santos, conquistou em 1967 o prêmio Orfeu de Ouro da Academia Nacional de Disco Lírico de Paris. Também foi condecorada com a Medalha da Legião de Honra, entregue pelo presidente François Mitterrand.
O jornalista Henrique Marques Porto tinha 15 anos naquele 1965 e estava na plateia com o pai, Marques Porto, então crítico de música do DIA. "Era um desafio, e ela fez uma Carmen absolutamente original, uma Carmen negra, com a sensualidade da mulher carioca", lembra.
Um acidente de carro nos anos 1970, que lhe custou cirurgias em um dos olhos acabou por afastar a cantora da música erudita, mas a aproximou da música popular brasileira. Gravou um disco com Baden Powell em 1977. Ao Brasil voltou algumas vezes, para reencontrar irmãos e sobrinhos,e em uma delas, 1981, foi jurada do desfile das escolas de samba.
O fim de Maria foi melancólico. Ela morreu este ano, em 4 de julho, sozinha em Paris, aos 82 anos. Seu corpo correu o risco de ser sepultado como indigente. O funeral só ocorreu dois meses depois por causa da demora em se localizar um familiar dela no Brasil.
Reportagem da estagiária Luana Dandara, sob supervisão de Eduardo Pierre