segunda-feira, 22 de julho de 2013

Os cadáveres (e os fantasmas) insepultos da ditadura militar

Blog da REA

ANGELO PRIORI*
monumento
Um espectro incômodo e persistente acompanha a política e a sociedade brasileira atualmente. De vez em quando ele aparece nas páginas dos jornais, nas ondas dos rádios, nas telas das tevês e agiganta-se nas páginas da internet. Trata-se do “fantasma” dos mortos e desaparecidos políticos em confronto com a Ditadura Militar brasileira (1964-1985). Agora mesmo, ele reaparece com toda a força, trazendo consigo justificativas, debates, polêmicas, discursos e notas informativas (oficiais ou não), alimentando paixões de um lado e de outro, despertando sofrimentos e feridas que estavam lentamente se cicatrizando, reascendendo a chama por justiça e dignidade.

E reaparece de forma solene, com pompas e circunstâncias, no salão azul do Palácio do Planalto. Falo do lançamento do livro-relato, produzido pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos, através da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos: Direito à memória e à verdade.[1]
A Comissão Especial sobre os Mortos e Desaparecidos Políticos foi instituída pela Lei No. 9.140, de 04 de dezembro de 1995. O objetivo principal da comissão tinha como ponto de partida o reconhecimento de pessoas que participaram ou foram acusadas de participação em atividades políticas no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 [2], ou que faleceram em circunstâncias não naturais, em dependências policiais ou assemelhadas do Estado. Outros objetivos da comissão eram de envidar esforços para localizar as pessoas (ou os restos mortais) desaparecidas, além de emitir pareceres sobre possíveis requerimentos de familiares que solicitavam indenização. A lei No. 9.140 ainda reconhecia, oficialmente, 136 pessoas, que tinham sido mortas por participar ou acusadas de participar em atividades políticas no período estabelecido.[3]
Posteriormente foram publicadas mais duas leis sobre o assunto. A Lei No. 10.536, de 14 de agosto de 2002, que autorizou a Comissão Especial a ampliar o reconhecimento das pessoas que tivessem participado ou sido acusadas de participação nas atividades políticas no período de 02 de setembro de 1961 até 05 de outubro de 1988 (data da publicação da nova Constituição Brasileira). E a Lei No. 10.815, de 01 de junho de 2004, que ampliou os objetivos da Comissão Especial, autorizando que a mesma emitisse pareceres sobre as pessoas falecidas em virtude de repressão policial em manifestações públicas ou em conflitos com agentes do poder público; e ainda que tenham falecidas em decorrência de suicídio praticado na iminência de serem presas ou por seqüelas psicológicas resultantes de atos ou torturas praticados por agentes públicos.
O livro traz o relato do trabalho da Comissão Especial, que durante os 11 anos desde a sua instituição, analisou 339 casos de mortos e desaparecidos, além dos 136 casos constantes no anexo I da Lei No. 9.140, sendo que um deles foi excluído da relação, conforme informado na nota número 3. Além desses 474 casos, o livro traz informações de mais 30 pessoas (a grande maioria camponesas) que desapareceram em circunstâncias não esclarecidas durante a repressão à Guerrilha do Araguaia.
O livro está organizado cronologicamente. Num primeiro momento, faz uma breve análise dos casos de pessoas mortas ou desaparecidas antes do golpe militar de 1964. Depois, dedica mais de 2/3 das suas páginas para apresentar as vítimas da ditadura, entre os anos de 1969 e 1985. O livro rompe com o estilo cronológico em apenas dois momentos: quando apresenta as vítimas da Guerrilha do Araguaia, que faz em um único conjunto (p. 195 a 271) e quando dedica algumas páginas aos argentinos desaparecidos no Brasil.
Geralmente faz um breve histórico de cada pessoa, informando a data de nascimento e a data da morte ou do desaparecimento, qual tipo de militância que essa pessoa exercia (em partidos ou organizações de esquerda, em sindicatos, nas igrejas, nas organizações camponeses etc.). No breve histórico que apresenta de cada pessoa, o livro procura mostrar um pouco da história de vida e identificar as fontes que sustentam as suas atividades políticas e, conforme o caso, das sevícias e torturas sofridas pelos órgãos de repressão da Ditadura Militar.
É importante frisar que o livro também reconhece que os enfrentamentos entre os órgãos de repressão e os militantes políticos de oposição ao regime também produziram vítimas entre os militares. Embora uma coisa seja certa: estes tiveram a facilidade em recolher os seus mortos e sepultá-los com todas as honras e reverências imanentes desses casos.
Na realidade, do ponto de vista das informações, o livro não traz nenhuma novidade. Os casos já são sobejamente conhecidos e já foram detalhados em outras publicações, como por exemplo, nos livros: Brasil Nunca Mais e Dos filhos deste solo.[4] A única novidade e, diga-se, extremamente importante e histórica, é a publicação ser oficial. Ou seja, o livro-relato é um documento oficial produzido pelo Estado, reconhecendo que houve mortes e desaparecidos políticos durante a ditadura militar; e que essas “mortes” e “desaparecimentos” foram frutos das ações violentas e sanguinárias do Estado.
Como muito bem enfatizaram os editores do livro na apresentação [5], a publicação de um documento como esse mostra, de um lado, o fortalecimento das instituições democráticas do país nas últimas duas décadas, mas de outro, a dificuldade em superar os obstáculos de se evidenciar a verdade e os acontecimentos que ocorreram nos porões da ditadura e as lamentáveis atrocidades que ocorreram no nosso período recente.
O livro, evidentemente, é um primeiro passo importante. Mas só um primeiro passo. Existem dois outros que são profundamente necessários. Um, do ponto de vista humanitário: proceder a localização dos restos mortais das pessoas desaparecidas e entregá-los aos familiares, para que estes possam realizar os seus rituais religiosos de enterrar os seus entes queridos. E outro, do ponto de vista histórico e social: a abertura dos arquivos da repressão.
Uma sociedade que está construindo a sua democracia às duras penas, como a nossa, não tem o direito de esconder o seu passado. Ele precisa constantemente ser revisitado, estudado, esquadrinhado, para que os nossos erros sejam purgados, para que a nossa memória seja preservada, e para que, à luz da nossa história, possamos construir um futuro melhor. E não se trata apenas de buscar a abertura dos arquivos da ditadura militar, fundamental, enfim, para entender a nossa história recente. Existem muitos arquivos, públicos e privados, que precisam ser abertos.
Os arquivos militares guardam mais coisas do que apenas os acontecimentos durante o período da ditadura. Só para citar um exemplo que conheço bem: o arquivo (ou o depósito) da 5a. Região Militar, sediada em Curitiba, tem informações relevantes sobre a Guerra do Contestado, sobre as revoltas camponesas que ocorreram no Estado do Paraná e em Santa Catarina, sobre o período do Estado Novo, sobre a presença de italianos, japoneses e alemães durante o período da segunda Guerra Mundial, além evidentemente, das ações dos movimentos sociais e políticos durante o período militar. Mas essas informações não estão disponibilizadas para a sociedade. Um outro caso, são os arquivos das polícias políticas de diversos estados do país, que ainda não foram franqueados à sociedade e aos pesquisadores.
E por fim, mais um exemplo: quantas dificuldades os historiadores encontram para acessar os arquivos judiciais de cidades de zonas de fronteiras (negados, geralmente por juízes inescrupulosos), que revelam crimes do cotidiano, mas também a violência contra os camponeses, os posseiros e as populações pobres que labutam e lutam pela terra?
Trata-se, evidentemente, de um debate mais amplo e necessário. Nem tanto aos militares, que criticam o debate sobre a abertura desses arquivos, vendo-o como uma forma de vingança da “esquerda” ou, como eles rotulam: para facilitar “a indústria da indenização de criminosos políticos” [6]; e nem tanto a algumas organizações (entre elas a dos familiares que, aliás, tem os seus motivos) que acham que a punição dos culpados resolve tudo. A abertura dos arquivos é um direito da sociedade, que interessa, sobretudo, à política e à história. Não precisamos temer os nossos fantasmas. Cabe-nos o direito de exorcizá-los a favor de uma sociedade mais humana e democrática.

* 
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ANGELO PRIORI é Professor Associado da Universidade Estadual de Maringá, Paraná, Programa de Pós-Graduação em História e no Departamento de História; Doutor em História e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Publicado originalmente na REA, nº 76, setembro de 2007, disponível emhttp://www.espacoacademico.com.br/076/76priori.htm
[1] Brasil. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.Direito à memória e à verdade. Brasília: SEDH, 2007. 400p. Livro lançado oficialmente no Palácio do Planalto, no dia 29 de agosto de 2007. A versão eletrônica do livro pode ser consultada em:www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/.
[2] Esse período toma como referência as datas em que os militares tentaram impedir a posse de João Goulart, como presidente constitucional, até a publicação da Lei de Anistia.
[3] Posteriormente, uma pessoa das relacionadas no anexo I da Lei No. 9.140 foi encontrada viva e retirada da relação.
[4] ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: Nunca mais – um relato para a história. Petrópolis: Vozes, 1985. MIRANDA, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo – mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do estado. São Paulo: Fundação Perseu Abramo / Boitempo Editorial, 1999.
[5] A apresentação do livro foi realizada pelo Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi e pelo atual Presidente da Comissão Especial, Marco Antônio Rodrigues Barbosa.
[6] CANTANHEDE, Eliane. Militares criticam livro que acusa ditadura por torturas. Folha de S. Paulo. Caderno Brasil, p. A13. 28 ago. 2007.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

O povo voltou às ruas, Lamu!

Blog da REA

WLADIMIR POMAR*
Lamu é o nome que estou dando à uma cambada da cientistas políticos e associados que saíram à liça para criticar, por todos os lados, o retorno das manifestações populares. Para Lamu, essas manifestações seriam obra de grupos radicais de esquerda, de fora e de dentro do PT. E não seriam compatíveis com a democracia, por ficarem protestando difusa e romanticamente por questões econômicas, quando haveria outros assuntos mais importantes a tratar. Os reajustes dos ônibus teriam sido inferiores à inflação e, se houvesse insatisfação com os governos, os líderes das manifestações deveriam ter convocado a população para reclamar, em Brasília, dos preços dos alimentos.
Não contente em desqualificar as manifestações por supostos assuntos menores, Lamuse esforçou por desmerecer os próprios manifestantes. Seriam pessoas irritadas, procurando extravasar suas frustrações. Seriam baderneiros, prontos para depredar, espancar e realizar enfrentamentos. E seriam os quase invisíveis radicais de esquerda, sempre prontos a colocar gasolina, ou vinagre, no fogo, sem qualquer pauta sensata de reivindicações. Portanto, não passariam de pequenos grupos, cuja ação de quebra-quebra os levaria rapidamente ao fim, não só pela firme e correta ação policial, mas também pela falta de apoio popular.
Pobre Lamu, que viu ruir todas as suas análises científicas no dia 17 de junho, quando as manifestações em quase todo o país reuniram dezenas de milhares de manifestantes, demonstrando sua insatisfação. O povo voltou às ruas, Lamu, ao chamado do Movimento Passe Livre – MPL, não só para apoiar a reivindicação de revogação dos reajustes das tarifas de transportes urbanos, mas também para expressar sua oposição ao custo de vida, às prioridades dos investimentos, e ao autoritarismo dos governos que querem impor travas às reivindicações e manifestações populares.
Manifestações populares, em ruas e praças, são um direito reconquistado especialmente nas lutas contra a ditadura militar, no movimento das Diretas Já!, nas greves operárias do ABC, e nas passeatas pela anistia política e contra o custo de vida, nos anos 1970 e 1980. São conquistas democráticas, totalmente compatíveis com a democracia. Como compatível com a democracia é o direito de grupos, de esquerda, radicais ou não, de convocarem tais manifestações. Incompatível com a democracia, embora faça parte do aprendizado popular para saber tratar com esses fatos, é a ação secreta de policiais e provocadores, para promover quebra-quebras, e das tropas de choque, para realizar confrontos e reprimir violentamente os manifestantes, como aconteceu em várias capitais.
Insatisfações populares, Lamu, sempre se materializam, incialmente, em pequenas manifestações, tomando como ponto de partida um ou alguns aspectos da vida popular que mais incomodam. Conservadores e reacionários, como você, acham um absurdo essa espontaneidade popular que, no mais das vezes, tem a juventude, em especial a estudantil, como porta-bandeira. Como expressam, também em geral, a insatisfação de grandes massas da população, têm a capacidade de superar as repressões e provocações que procuram criminalizar as manifestações, e mobilizar grandes multidões não só pelos aspectos inicialmente apresentados, mas também pelo conjunto dos problemas que afligem as outras camadas populares.
Ao contrário do que proclamam os governos, os reajustes dos preços dos transportes são uma herança indexada dos anos 1990, cujo acumulado nos últimos anos é muito superior à inflação. É, portanto, uma aberração que sufoca tanto aos estudantes, que reivindicam passe livre, quanto a milhões de trabalhadores, para os quais um aumento de 20 centavos pode representar a gota d’água que arromba seus parcos rendimentos. Mas você, Lamu, que só anda em carro próprio e não conhece o sacrifício de viajar em transportes lotados e pouco seguros, não pode entender isso. Acha-a difusa e romântica, e é incapaz de enxergá-la como a ponta do iceberg do custo de vida.
Custo de vida que não se prende aos aumentos sazonais dos alimentos agrícolas e industriais, em parte causados pela crescente falta de apoio à agricultura familiar, responsável por mais de 80% de todos os alimentos que o povo consome. Num enorme descompasso com o financiamento do agronegócio, a agricultura familiar vem definhando e sendo expropriada  pelas grandes lavouras de commodities, o que se reflete em preços altos nas feiras e supermercados. Custo de vida que se reflete também nos preços de monopólio praticados pelas corporações industriais que produzem bens de consumo corrente. Na falta de concorrência, essas corporações tornaram os preços brasileiros um dos mais altos do mundo. Se se agregar os juros praticados no mercado, pode-se ter uma ideia do tamanho do bode que a maior parte das famílias brasileiras tem em sua sala.
Esses milhões de famílias, muitas das quais se beneficiaram com as políticas de elevação do salário mínimo, de crescimento do emprego e de transferência de renda para propiciar educação e saúde, também começaram a se dar conta das disparidades existentes nos investimentos. A rapidez dos investimentos em praças esportivas, para atender aos compromissos com as Copas de Futebol e as Olimpíadas, é flagrante. Como flagrante é a lerdeza dos investimentos em saneamento básico, na construção de moradias, na reforma e construção de ferrovias, portos e aeroportos, na melhoria dos transportes urbanos, na instalação de novas plantas fabris que mantenham o ritmo de criação de empregos, e na reestruturação da educação e da saúde.
Os governos podem até alegar que os novos estádios e instalações esportivas geraram emprego e renda para boa parte da população, como até Lamu reconhece. Mas cada um dos demais investimentos necessários para o Brasil sair da quebradeira herdada dos governos neoliberais também pode gerar o mesmo volume de emprego e renda, com a vantagem de que seus benefícios à população serão superiores. Em outras palavras, as manifestações estão chamando a atenção dos governos para o fato de que querem discutir as prioridades dos investimentos, o que Lamu considera um absurdo, incompatível com sua noção de democracia, segundo a qual essa é uma missão delegada pelas eleições, e não um direito romântico.
Nessas condições, se o governo federal se ressentia da falta de uma mobilização social massiva para avançar mais rapidamente nos planos de desenvolvimento, agora tem o dever não só de reconhecer como democráticas e legitimas as manifestações e as reivindicações populares. Ele precisará tomá-las como ponto de partida, e apelar a seu apoio, para desindexar a economia, tomar a sério o apoio estratégico à agricultura familiar, redirecionar investimentos para reestruturar a indústria de bens de consumo corrente, e agilizar os investimentos em infraestrutura. Ou seja, agir prioritariamente naqueles setores capazes de reduzir o custo de vida, e criar novos mecanismos de diálogo com a população em luta.
Ao voltar às ruas, o povo está criando uma nova conjuntura social e política, favorável à democracia e ao desenvolvimento econômico, social e ambiental. Para desespero deLamu e de todos os que não suportam cheiro de povo.

* WLADIMIR POMAR é escritor e analista político. Publicado no Correio da Cidadaniaem 19/06/2013 e aqui sob autorização do autor.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

As consoladoras mensagens cotidianas

Jornal do Brasil
Leonardo Boff

 Por mais que estudemos e pesquisemos, buscando decifrar os mistérios da vida e vislumbrar os desígnios do Criador, na verdade, somos guiados por poucas mensagens que costumamos colocar sob o vidro de nossa escrivaninha ou dependuramos à frente de nossa mesa de trabalho. Elas são sempre lidas e relidas e possuem uma força secreta de nos tirar da opacidade natural da vida. Outras vezes, são fotografias de entes queridos, de pais, de filhos e filhas que amamos e que nos aliviam no trabalho, geralmente fastidiante e até penoso. 

Assim, vi há dias na mesa do director de um banco uma frase que tirou da Imitação de Cristo, um livro que há mais de 800 anos ilumina tantas pessoas:”Ó Luz eterna, superior a toda luz criada, lançai do alto um raio que penetre o íntimo de meu coração. Purificai, alegrai, iluminai e vivificai o meu espírito com todas as suas potências para que a Vós se una em transportes de pura alegria”. Disse-me que, durante o dia, reza com frequência esta oração, entre negociações,  cálculos de taxas e de porcentagens de juros nos empréstimos.  
Eu, de minha parte, possuo dependurados à frente de minha escrivaninha, onde passo muitas horas pesquisando e escrevendo, vários cartões com mensagens que nunca deixam de me consolar e inspirar. 
Em primeiro lugar, uma imagem, tirada da famosa Sagrada Face de Turim mas retrabalhada com traços fortes.  O rosto é desfigurado, com sangue escorrendo pela testa e os cabelos desgrenhados pela tortura. Os olhos são profundos, cheios de enternecimento e com uma força tal que nos obrigam a desviar o olhar. Parece que nos penetram na alma e nos fazem sentir todos os padecimentos da humandiade sofredora na qual Ele está encarnado e sofrendo conosco, como diria Pascal, até o fim do mundo.  
Ao lado, uma foto de uma irmã querida, segurando ao colo, num gesto da Magna Mater, o filhinho pequeno, irmã arrancada da vida, aos trinta e três anos, por um enfarte fulminante. Aí há tanta ternura e serenidade que custa a conter as lágrimas. Por que uma flor foi quebrada quando ainda não acabara de desabrochar? Por quê? A resposta não vem de nenhum lugar. Apenas uma fé, que crê para além de todas as razoabilidades, sustenta o tormento desta pergunta.  
Logo acima, presa ao braço da lâmpada, uma mensagem em alemão que encontrei quando ainda fazia meus estudos no exterior e que me inspira durante toda essa fatigante existência: ”Eu passarei uma única vez por esta vida. Se eu puder mostrar alguma gentileza ou proporcionar alguma coisa boa a quem está ao meu lado, então quero fazê-lo já, não quero porstegá-lo nem negligenciá-lo, pois eu nunca mais voltarei a passar novamente por este caminho”. Aqui se diz uma verdade pura, simples e sábia.  
Viajo muito por muitos meios e por muitos caminhos. Nunca se está livre de riscos. Quantos não são aqueles que partem e nunca chegam? E aí leio num cartão à minha frente a frase tirada do Salmo 91,11: ”Deus ordenou a seus anjos que te protejam, pelos caminhos que tomares”. Não é consolodar poder ler esta mensagem como se tivesse sido escrita diretamente para você, um pouco antes de partir para uma viagem qualquer, sem poder saber se voltará são e salvo?  
Mais consolador é ainda este outro cartão, colocado num vaso cheio de canetas, no qual Deus pelo profeta Isaias me sussurra ao ouvido: ”Não temas; eu te chamei pelo nome; tu és meu” (43,1). Como temer? Já não me pertenço. Pertenço a Alguém maior que conhece meu nome e me chama e me diz  “tu és meu”. A alma serena, as angústias da humana existência se acalmam, apenas ressoa a palavra bem-aventurada: ”Tu és meu”. 
Aqui há algo que antecipa a eternidade quando Deus nos revela nosso verdadeiro nome. Segundo o Apocalipse, somente Deus e a pessoa  conhecem esse nome e ninguém mais. Aí seguramente Deus repetirá: ”Tu és meu”. E a pessoa retrucará: “Eu sou teu”. Essa comunhão do eu e do tu se prolongará pela eternidade afora, numa fusão sem distância nem limites pelos séculos dos séculos, sem fim. 
Não serão, por acaso, coisas singelas como estas que orientam nossa vida e nos trazem alguma luz no meio de tanta penumbra e de questões sem  resposta?  
* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é também escritor. Entre outros livros, escreveu 'Experimentar Deus: A transparência de todas as coisas' (Vozes. 2011). -  lboff@leonardoboff.comBoff