Duas Lições de Transporte Coletivo
Arthur Dapieve
O Globo
07/08/2009
No dia 1º de dezembro de 1955, a costureira Rosa Louise McCauley Parks, de 42 anos, voltava para casa depois do trabalho, em Montgomery, Alabama, EUA. Embora já fosse uma ativista dos direitos civis dos negros, ela sentou-se, como mandava a lei local para as pessoas de sua cor, nos bancos traseiros do ônibus municipal. Rosa aboletou-se na primeira fila após os assentos reservados para passageiros brancos.
Conforme o ônibus avançava pelo centro de Montgomery, os passageiros brancos ocuparam todos os lugares a eles destinados, dois ou três até viajavam de pé na frente do veículo. Notando isso, o motorista decidiu, como era de praxe, aumentar a área reservada aos brancos em uma fileira. A fileira já ocupada por passageiros negros, inclusive Rosa Parks. Ele parou num ponto e acenou para que os quatro negros fossem para o fundo do veículo.
Três deles imediatamente acataram a ordem. Rosa trocou de assento, mas pulou para o da janela. O motorista branco, James F. Blake, ficou estupefato e perguntou se ela não iria se levantar e ceder seu lugar a um passageiro branco. Rosa respondeu que não: “Eu não acho que deva me levantar”. Ele então comunicou que chamaria a polícia. Ela disse que tudo bem, ele que fosse em frente. E assim foi feito. A costureira foi presa e fichada.
Apesar de não ter sido a primeira negra a se recusar a ceder lugar num ônibus americano a um branco, Rosa foi a primeira cujo ato ultrapassou a dimensão de revolta individual e alimentou todo o movimento pelas liberdades civis. O reverendo Martin Luther King Jr., de 26 anos, acorreu a Montgomery e coordenou o boicote da população negra- ou 75% dos usuários do sistema- aos ônibus da cidade. O protesto durou 381 dias.
A agenda dos manifestantes era moderada. Eles pleiteavam um tratamento cortês, a contratação de motoristas negros e a desobrigação de ceder lugar aos brancos. As autoridades ignoraram as reivindicações,e a reação dos racistas explodiu mais de uma casa na comunidade negra. O caso foi parar na Suprema Corte, em Washington, que declarou a inconstitucionalidade da segregação nos ônibus públicos. O resto é História, mas também é presente: Barack Obama, tal como o conhecemos, não existiria sem Rosa Parks.
No dia 28 de julho de 2009, a aposentada Luzia de Jesus de Oliveira, de 63 anos, entrou num ônibus de Rio Verde, Goiás, Brasil. Ela recusou-se a pagar a passagem de R$2, invocando recente lei municipal que concedera gratuidade a quem tem mais de 60 anos. O motorista Célio Martins e a trocadora exigiram que Luzia ou pagasse a tarifa ou saltasse do veículo. A aposentada declarou que não faria nem uma coisa nem outra.
Com o impasse, os outros passageiros desceram do ônibus, parado por 40 minutos. O motorista ligou para a empresa Paraúna e recebeu intruções de chamar a polícia. Quem também chegou ao local foi uma agente de trânsito, Idelma Lopes da Silva, que deu razão à aposentada, aplicou à empresa multa de R$150 (a quarta desde que a lei foi aprovada, em junho) e ordenou que o veículo seguisse viagem. Como era de se esperar, o patrão disse que nada teve a ver com a decisão de seu funcionário de desrespeitar o direito da idosa.
-Eu estou aqui mais é para defender a minha classe, que é de 60 anos, a nossa terceira idade- disse Luzia, ainda pela janela do ônibus parado, à equipe da afiliada da Rede Globo que registrou o seu protesto.- Não só os idosos de Rio Verde, ma de qualquer lugar do Brasil. Eles têm que aprender a respeitar a terceira idade!
Num momento em que a politicalha das “pessoas incomuns” esgota o estoque de Plasil nos postos de saúde, talvez fosse o caso de olhar mais para as pessoas comuns. Como Luzia. Tanto ela como Rosa Parks lutaram contra o preconceito. Uma contra o racismo, outra contra algo que não ousa dizer o seu nome, mas que poderíamos passar a chamar de “etarismo”. A principal diferença, porém, está em que a americana protestou contra uma lei injusta, ao passo que a brasileira teve de protestar a favor da justa aplicação da lei.
Isso diz muito sobre as duas nações.
Há dois outros aspectos particularmente interessantes no protesto de dona Luzia. O primeiro é o próprio protesto de uma cidadã consciente de seus direitos, coisa rara neste país tão passivo, no qual apenas entidades de classe às vezes se manifestam (quando não foram cooptadas pelo Estado, claro). Não surpreende, portanto, que os outros passageiros da viação Paraúna tenham apeado, conformados, sem na hora demonstrar solidariedade a Luiza (exceto, talvez, ligando para a redação da emissora de televisão).
Em Montgomery, há quase 54 anos, Rosa foi a única a bater o pé dentro do ônibus, mas na esteira do seu gesto elevou-se a onda da luta pelos direitos civis dos negros.
O segundo aspecto interessante no protesto de Luzia foi o uso que ela fez da palavra “classe”. Ela tem, literalmente, consciência de classe. Pois foi em nome de sua classe, “de 60 anos”, que marcou posição dentro daquele ônibus para do em Rio Verde. Essa tomada de consciência é condição imprescindível para a ação. Ou para a inação, que também pode ser revolucionária, no sentido mais puro, o de renovar mentalidades e comportamentos.
O ônibus no qual Rosa Parks recusou-se a se levantar hoje está no Museu Henry Ford, em Detroit, cidade para onde ela teve de fugir, em 1957, e onde morreu, aos 92 naos.
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